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FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº2, p. 06-31, jul.-dez., 2014.
Fabrício Pinto Monteiro
casos um encanto mais de sedução, um quê de morbidezza na carne
bonita, a angelicidade de um belo e gordo animal; para os siologicamente
deformados e desgraçados (a maioria dos mortais) uma tentativa de
ver-se como “bons demais” para este mundo, uma forma abençoada de
libertinagem, sua grande arma no combate à longa dor e ao tédio; para
os sacerdotes, a característica fé sacerdotal, seu melhor instrumento de
poder, e “suprema” licença de poder; para os santos, enm, um pretexto
para a hibernação, sua novissima gloriae cupido, seu descanso no nada
(“Deus”), sua forma de demência. Porém, no fato de o ideal ascético
haver signicado tanto para o homem se expressa o dado fundamental
da vontade humana, o seu horro vacui: ele precisa de um objetivo – e
preferirá ainda querer o nada a nada querer – Compreendem?... Fui
compreendido?... “Absolutamente não, caro Senhor!” – Então comecemos
do início (NIETZSCHE, 2002, p.87-88).
Esse longo aforismo é o início da dissertação, mas, ao mesmo tempo, ex-
põe a conclusão, as respostas a que Nietzsche chegou a respeito de sua questão
inicial: “O que signicam ideais ascéticos?”. Para cada categoria exposta, como sa-
cerdotes, mulheres, eruditos ou santos, o autor chega a um signicado diferente para
tais ideais. Essa lista de signicados contida no aforismo sintetiza, em uma visão
histórica da argumentação do texto, seu presente, seu ponto nal. Nietzsche, como
autor, conhece os caminhos percorridos por ele mesmo para a composição da argu-
mentação – conhece as problemáticas elaboradas e as tensões surgidas na formu-
lação de suas respostas. Podemos dizer que, no processo de composição narrativa
(inicial, manuscrita em seus próprios cadernos antes da publicação do livro), o aforis-
mo inicial é completamente contemporâneo a Nietzsche.
Por outro lado, seu leitor imaginário, que se manifesta ao nal do
aforismo, e certamente o leitor real, não consegue compreendê-lo de pronto. A
resposta apresentada por Nietzsche em sua forma perfeita, presente, sobre “o que
signicam ideais ascéticos?” não diz muita coisa ao leitor. Ele não compreende seu
passado. Não teve acesso aos caminhos conituosos percorridos por Nietzsche na
construção de sua escrita, em suma, não tem acesso a sua história. Dessa forma,
o texto é estéril e não pode também ter um uso efetivo ou tornar-se alicerce para
construções futuras. Tendo consciência disso, Nietzsche propõe-se a ensinar ao
leitor como destrinchar suas conclusões, elaborando sua genealogia.
Um dos instrumentos utilizados nessa tarefa é o lançamento de questões
sobre suas próprias armações: “Wagner virou o seu oposto. O que signica um
artista virar seu oposto?” (NIETZSCHE, 2002, p.88). Ou, “compreende-se muito
bem que quando desgraçados suínos são levados a adorar a castidade – e existem
tais suínos! -, eles verão e adorarão nela apenas o seu oposto, o oposto do suíno
desgraçado [...] Mas para quê?” (NIETZSCHE, 2002, p.89)
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. Assim, pouco a pouco,
18 Ver ainda outros aforismos p.89-90 (Af.3), p.91 (Af.4), p.91-93 (Af.5), p.94-95 (Af.6), p.97
(Af.7), p.99 (Af.8), p.103 (Af.9), p.105 (Af.10), p.106 (Af.11), p.108-109 (Af.12), p.110 (Af.13),
p.111 e 114 (Af.14), p.115 (Af.15), p.119 (Af.17), p.126-127 (Af.19), p.128 e 131 (Af.20), p.131-
132 (Af.21), p.134 (Af.22), p.135-136 (Af.23), p.137-140 (Af.24), p.140 e 142-143 (Af.25), p.144
(Af.26), p.147-148 (Af.27), p.148-149 (Af.28).