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FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº2, p. 49-63, jul.-dez., 2014.
O ser e a história: Uma análise da ontologia histórica em A memória, a história, o
esquecimento de Paul Ricoeur
conturbado desenvolvimento do capitalismo ocidental. Para Ricoeur, essa nova
conguração política do mundo trazia ainda mais questionamentos acerca da
questão da subjetividade, na medida em que, mais do que nunca, colocava
o indivíduo no centro de inúmeras tensões: como governar, como me portar
perante o mundo, como evitar o mal, como criar uma utopia do viver-juntos-
bem, enm, longe de abolir o sujeito, para Ricoeur o m da bipolarização trouxe
uma multiplicação das subjetividades, das formas de relacionar-se consigo
mesmo e com os outros.
Trabalharei mais detidamente o último livro de Ricoeur A memória,
a história, o esquecimento (RICOEUR, 2000) por aproximar a discussão do
ser da história. A memória, a história, o esquecimento traz, em seu título, as
principais linhas que Ricoeur seguiu ao longo de suas obras: a memória remete
à fenomenologia, em como uma multiplicidade de sensações, pensamentos,
imagens que se moldam, refazem-se de modo sempre relacional. A história,
por sua vez, diz respeito à armação de uma intriga, à elaboração da narrativa
a partir das operações mnemônicas. Por m, o esquecimento traz à tona a
questão da subjetividade, de um processo humano que associa os dois termos
anteriores, na medida em que questiona como memória e história podem ser
esquecidas, até mesmo perdoadas. Assim, o título do livro já indica uma fórmula
hermenêutica, cujo modelo fora proposto em Tempo e narrativa, pondo em jogo
a memória (mimese I, campo comum de compreensão), a história (mimese II,
campo de conguração, elaboração da narrativa) e o esquecimento (mimese
III, recepção, uma forma do indivíduo se relacionar, de agir em relação aos
campos anteriores)
3
.
Cabe destacar que A memória, a história, o esquecimento tem sido
abordado com certa frequência por historiadores, especialmente aqueles
interessados nos conceitos de memória e esquecimento/perdão
4
. A proposta
deste artigo é trazer uma leitura mais pormenorizada dos aspectos subjetivos
3 Sobre a questão do título, Ricoeur o explicou em uma conferência apresentada em 2003
na cidade de Budapeste intitulada “Memory, history, oblivion”: “O o condutor do meu livro
é a escrita da história de acordo com a denição lexical da história como historiograa. Daí
a ordem seguida pela temática: em primeiro lugar, a memória enquanto tal; depois, a histó-
ria enquanto ciência humana, e o esquecimento como dimensão da condição histórica de
humanos que somos. A memória, segundo esta construção linear, era vista simplesmente
como matriz da história, enquanto a historiograa desenvolvia o seu próprio percurso além
da memória, desde o nível dos testemunhos escritos conservados nos arquivos, até ao
nível das operações de explicação; depois, até à elaboração do documento histórico como
obra literária. O esquecimento era, neste caso, tratado, sobretudo como uma ameaça para
a operação central da memória, a reminiscência, a anamnesis dos gregos, e, logo, como
um limite da exigência do conhecimento histórico de providenciar uma narrativa que ligue
os acontecimentos passados. Do ponto de vista da escrita da história, a noção de passado
histórico parece ser a última e irredutível referência de todo o trabalho da historiograa” (RI-
COEUR, 2003, p. 1). Disponível em http://www.uc.pt/uc/lif/publicacoes/textos_disponiveis_on-
line/pdf/memoria_historia [Acessado em 20/07/2014].
4 Poderíamos citar, a título de exemplo, artigos recentes de pesquisadores brasileiros:
(MELO, 2010); (NETO, 2011); (OLIVEIRA; TEDESCHI, 2011).