explicar tantas vitórias contra os povos nativos da América. Assim, na ilha de San Juan, o
cacique Urayoan, que dominava o povo Yacuaca, resolveu tirar a prova desta dúvida e
atestar a imortalidade dos espanhóis. Conseguiu atrair ao seu povoado o espanhol Salzedo,
que cruzava por suas terras para chegar ao local onde os espanhóis já estavam instalados.
Ganhando a confiança daquele homem, Urayoan ordenou à sua gente que o alimentassem
e tratassem bem, conduzindo-o até o seu caminho, acompanhado de uma comitiva de 15
indígenas. Quando Salzedo teria que cruzar um rio, estes homens ofereceram-se para
carregá-lo evitando que o mesmo se molhasse. Durante a travessia afogaram-no,
esperando durante dias que o corpo mostrasse uma transformação diferente da humana.
Mas depois de três dias, perceberam que Salzedo não voltava à vida e que seu corpo
apodrecia da mesma forma que eles, mostrando sua natureza genuína humana. Já que não
eram imortais, xamãs ou deuses, os espanhóis poderiam ser derrotados, acreditava
Urayoan e, por isso, declarou guerra aos invasores. (OVIEDO, 1547, Folios CXXIII verso –
CXXIIII)
Bruno Latour [2018 (2004)] retomou mais uma vez a passagem acima, reiterando o
caráter científico da investigação que o cacique Urayoan e seu povo fizeram do corpo
espanhol. Por meio desta passagem, Latour visa confirmar sua hipótese, de que os povos
indígenas atuam segundo suas cosmopolíticas. Isso significa dizer que os indígenas
interpretam e agem sobre o mundo segundo visões que articulam várias esferas,
envolvendo os mundos dos vivos e dos mortos, dos humanos e de outros seres, do corpo
material e da dimensão etérea, não corpórea. Esta é uma questão clássica que alimentou
muitos outros antropólogos, como Claude Lévi-Strauss [2017(1955)], Eduardo Viveiros de
Castro (1996) e Anthony Pagden (1982).
Assim, desde o início da invasão da América, acompanhando a morte e a devastação
que promoveram entre os indígenas, os ocidentais vêm tentando traduzir e decifrar os
pensamentos ameríndios. No cenário atual, com toda a humanidade vivendo uma onda
epidêmica, como inúmeras daquelas que vitimaram milhões de vidas indígenas no passado,
é interessante reverberar algumas de suas visões. De acordo com o escritor e ativista
indígena Ailton Krenak, a impossibilidade da humanidade controlar o vírus da COVID-19
poderia ser encarado como um alerta:
Todos precisam despertar. Se, durante um tempo, éramos nós, os
povos indígenas, que estávamos ameaçados de ruptura ou da
extinção dos sentidos das nossas vidas, hoje estamos todos diante da
iminência de a terra não suportar a nossa demanda. Tomara que,
depois de tudo isso, não voltemos à chamada “normalidade”, pois se