TONINI, Andrei
*
https://orcid.org/0000-0003-3940-1031
RESUMO: Visando apresentar um meio de
diálogo entre teoria e pesquisa na História,
buscou-se a produção de um texto articulando
as possibilidades do uso de teoria,
metodologia, conceitos e categorias, partindo
da escola metódica do início do século XIX até
os mais recentes teóricos, e relacionando as
ideias demonstradas com a hipótese de
pesquisa entre o envolvimento do regionalismo
com Poder Judiciário, somado às relações
entre Poder Local e Poder Central.
Aprofundou-se na necessidade de uso das
fontes históricas, da construção de problemas
e hipóteses acerca dos documentos, com um
uso adequado dos conceitos e definições a fim
de evitar anacronismos. O objetivo principal,
que aqui é proposto, é o de que o leitor
compreenda a necessidade de que a escrita da
história esteja amparada de cientificismo.
PALAVRAS-CHAVE: Estudo teórico-
metodológico; História do Poder Judiciário;
História Cultural; Regionalismo; Poder Local.
ABSTRACT: Aiming to present a means of
dialogue between theory and research in
History, we sought to produce a text
articulating the possibilities of using theory,
methodology, concepts and categories,
starting at the methodical school in beginning
of the 19th century to the most recent
theorists, and relating the ideas demonstrated
to the research hypothesis between the
involvement of regionalism with the Judiciary,
in addition to the relations between Local and
Central Government. We deepened in the need
to use historical sources, construction of
problems and hypotheses about documents,
with an adequate use of concepts and
definitions, in order to avoid anachronisms.
The main objective is for the reader to
understand the need to make all historical
work scientifically supported.
KEYWORDS: Theoretical-methodological
study; History of the Judiciary; Cultural
history; Regionalism; Local power.
Recebido em: 23/06/2020
Aprovado em: 24/08/2020
* Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo-RS. Mestrando
em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo-
RS. Bolsista CAPES PROSUP II. Email: andreifronzatonini@gmail.com.
Este é um artigo de acesso livre distribuído sob licença dos termos da Creative Commons Attribution License.
Introdução
A realização de um estudo histórico se concretiza a partir da observância de
alguns pilares: teoria, metodologia e conceito. Poder entendê-los significa uma maior
aproximação ao sucesso da pesquisa e do trabalho a ser realizado. Para tanto, é
necessário que em algum ponto do estudo, o historiador busque encontrar em seu
trabalho onde os mencionados pilares encontram-se, e, a partir deles, desenvolver todo
seu projeto.
O desafio que se apresenta aqui é justamente este: o de cada pesquisador poder
olhar para a pesquisa sendo desenvolvida e observar quais teorias, métodos e conceitos
estão em uso. Com isso, questionar-se acerca da possibilidade de relacionar seu objeto
de pesquisa com textos e lições de grandes pensadores da História, e como melhorá-lo a
partir dessa análise.
No caso, ao se propor estudar o regionalismo por meio do Poder Judiciário, as
relações entre Poder Local e Poder Central e a visão do Poder Judiciário do Rio Grande
do Sul sobre o tradicionalismo de forma empírica acaba se abordando um vasto campo
de conceitos e teorias que se impregnam e tornam-se essenciais para a pesquisa. Com a
crescente abordagem da interdisciplinaridade nos caminhos da pesquisa histórica,
ocorre a necessidade de expor que a teoria própria da história não pode ser atenuada ou
deixada de lado. Por mais que essa teoria não faça muito sucesso entre os historiadores,
principalmente aqueles que alegam que ela tira tempo de campo e da pesquisa, ela é
certamente, um dos pilares de qualquer trabalho na área.
A teorização aqui proposta, como já mencionada, parte dessa articulação entre os
meios disciplinares em epígrafe. Escrever sobre as ligações entre a cultura de uma região
e o poder político-jurídico de um Estado é um desafio, principalmente do ponto de vista
teórico. Não da pesquisa de campo pode viver o historiador, mas é imprescindível que
se possa organizar a pesquisa de forma clara e objetiva dentro de um trabalho em que o
que mais deve aparecer é a cientificidade.
Para demonstrar que é possível adaptar qualquer pesquisa não qualquer ideia
mirabolante, mas a pesquisa histórica, aquela com temática e fonte, que é possível e
pode existir à teoria da história, caminhou-se pelas escolas teóricas do século XIX e
XX. Da mesma maneira, buscou-se acrescentar algumas lições sobre o uso dos
conceitos. De Ranke até Reis, o objetivo proposto neste trabalho é claro: usar a teoria da
história para abordar o modo de ser do Judiciário sul-rio-grandense, e, como a história
regional está intrinsecamente ligada ao poder local, mesmo que esse tenha que seguir
atos e normativos provindos de outros Órgãos centrais.
Se antes os tópicos que insuflavam as discussões teóricas da história eram entre
romancistas e positivistas, hoje, mais do que nunca, novos problemas e um novo modo
de ver (e fazer) história provieram após a revolução proposta pelos Annales. O texto que
o leitor encontrará a seguir é um incentivo à reflexão, para que cada historiador possa
dedicar-se ao amparo teórico-metodológico de seu trabalho.
Longe de ser um grande estudioso da área ou um renomado historiador, espero
poder apresentar uma ótima articulação de ideias, para demonstrar como amparar-se em
grandes trabalhos teóricos pode alimentar a pesquisa. O relacionamento da proposta
desse artigo com a pesquisa da relação entre regionalismo e Poder Judiciário é
exemplificativo, dependendo de cada um dos pesquisadores que realizem a leitura deste
trabalho poder relacionar seu próprio trabalho com a ideia apresentada.
A prática histórica e necessidade das fontes históricas
Se esse artigo fosse adepto à corrente romântica da história, seria possível
começar escrevendo a justificativa deste estudo do mesmo modo como Chateaubriand
1
iniciou seu prefácio dos Études Historiques. Como não nada de romantismo neste
estudo, aqui não se escreve para a glória do país, nem por outro motivo de regozijo
pessoal. O que se espera alcançar, então? Apenas a demonstração de como história
cultural e história política se relacionam nos jogos de poder do Judiciário sul-rio-
grandense através de particularidades aqui encontradas e que não se repetem no
restante do país.
Juízes que se caracterizam como gaúchos
2
e vão à praça pública realizar
audiências judiciais em “gauchês”, entidade tradicionalista incendiada após decisão
judicial que determinava a realização de casamento homoafetivo em seu interior,
1
Chateaubriand inicia sua obra escrevendo que: “Heródoto começou sua história declamando os motivos
que o fizeram empreendê-la; Tácito explicou as razões que lhe colocaram a pena na mão. Sem ter os
talentos desses historiadores, posso imitar seu exemplo; Posso dizer, como Heródoto, que escrevo para a
glória de minha pátria e porque vi os males dos homens. Mais livre que tácito, não amo nem tanto os
tiranos. Agora isolado sobre a terra, não esperando nada de meus trabalhos, encontro-me na posição mais
favorável para a independência do escritor, pois já convivo com as gerações das quais invoquei as sobras”.
(2010, p. 119-120).
2
Érika Fernanda Caramello cita Oliven (1989) para definir o gaúcho: “Assim como os demais mitos, o do
gaúcho também foi construído. A meados do século XIX, o termo gaúcho era pejorativo, advindo do
termo guasca e, posteriormente, de gaudério, nome este dado aos contrabandistas de gado oriundos do
estado de São Paulo. Depois, se transformou num substantivo gentílico. “O que ocorreu foi uma
ressemantização do termo, através do qual um tipo social que era considerado desviante e marginal foi
apropriado, reelaborado e adquiriu um novo significado positivo, sendo transformado em símbolo de
identidade regional”. (OLIVEN, 1989). Comparando o gaúcho ao perfil de soldado, os estancieiros
conseguiram mobilizar os peões para os combates da Revolução Farroupilha e demais guerras ocorridas
nos países vizinhos da região sul do Brasil. Trata-se essencialmente de um fenômeno ideológico o
processo de construção do gaúcho como campeador e guerreiro, inserindo-o num espaço histórico onde
os atributos de coragem, virilidade, argúcia e mobilidade são exigidos a todo momento, transportando-o ao
plano do mito. E não há caso em que transpareça tão claramente a vitória da ideologia.”. (2004, p. 03).
divergências jurisprudenciais entre Tribunais Regionais e seus Tribunais Superiores...
coisas estranhas se passam e acontecem através da história recente do Poder Judiciário
sul-rio-grandense.
Do exposto, surge a dúvida: por que juízes decidem de forma diversa, sendo a
mesma lei que vigora igualmente a todos no mesmo tempo histórico
3
pesquisado? E por
que as reações sociais que sucederam aquela atitude judicial se deram de forma diversa
em locais diferentes? Tais questões fazem parte do enriquecimento da pesquisa.
A escola histórica alemã, através de Leopold von Ranke, apresenta algumas
exigências para a prática histórica. A primeira exigência é o que o autor chama de amor
pela verdade, necessidade de distinguir a história da ficção. É reconhecer que o
historiador adquire certo apreço por aquilo que estuda, no entanto, se antecipar isso em
sua imaginação, irá contrariar seu propósito e investigar aquilo que é reflexo de seus
pensamentos e de sua subjetividade. A segunda exigência é uma análise profunda dos
documentos, seguido por um interesse universal. E, por fim, a terceira exigência é a
investigação do nexo causal, buscando a conexão existente entre acontecimentos
simultâneos e que afetam uns aos outros. (RANKE, 2010, p. 147-148).
Pode-se, então, dizer que a pesquisa histórica, para Ranke, se desenvolve pela
narrativa dos fatos, feita com uma exigência de imparcialidade, advinda por uma análise
documental profunda e intrínseca, buscando atingir um certo grau de interesse social
(universal) e correlacionando os eventos que ocorrem naquele mesmo tempo ou que lhe
antecederam, e que podem ter interferência no objeto da pesquisa.
Realocando tais critérios para os trabalhos, objetos de pesquisa dos historiadores,
surge a necessidade de algumas adequações nas pesquisas. Usando-se o exemplo de
estudo já mencionado: narrar os fatos ocorridos no Poder Judiciário, realizados por
magistrados, ou, até mesmo, os eventos desencadeados na sociedade a partir deles, sem,
todavia, realizar uma análise parcial adquirir apreço ou lado, é uma tarefa árdua. No
entanto, necessária.
3
José Carlos Reis (2005, p. 179-206) discorre sobre o que seria o tempo histórico e sua construção em
Ricoeur Koselleck e nos Annales. O historiador busca alcançar uma articulação possível entre os três
conceitos. O escritor reflete que deve existir um “terceiro tempo” criado pelo historiador para existir entre
o tempo da consciência e o tempo da natureza. Assim, o autor usa o tempo calendário, de Ricoeur, como
primeira perspectiva de tempo histórico como “terceiro tempo”. Passando pela ideia de Koselleck, que em
sua concepção “estamos em pleno tempo humano, num tempo que possui sobretudo as características de
consciência. [...] A referência ao calendário continua essencial, mas apenas operatória também. Tem-se
uma noção mais crítica do conceito do calendário, o que aumenta sua eficácia. A ênfase temporal é a da
coordenação dos eventos entre si.” E por fim, trata da ideia de tempo histórico nos Annales, que “articula
mudança e estrutura, sucessão e simultaneidade”. A partir dos três conceitos diferentes, Reis tenta
alcançar uma mediação possível entre ele, e assim, explicar o tempo histórico.
A análise documental, que partiria apenas do uso de processos judiciais, tem o
leque de fontes aumentado também para reportagens de jornais que possam demonstrar
os acontecimentos sociais que se deram a partir de sentenças de juízes, que também
mostrariam a correlação e o nexo causal entre os eventos. O interesse universal abrange
a busca pela caracterização de meios de relação entre regionalismos e Poder Judiciário
através do Rio Grande do Sul, servindo de hipótese de pesquisa para demais regiões do
Brasil.
Ademais, os critérios de Ranke, nos prelúdios da escola alemã do século XIX, não
são taxativos, apenas advindos da construção da ciência histórica. Se optar por
continuar pelos trilhos do século XIX, encontra-se a escola metódica e novas exigências
para a pesquisa.
Como um dos grandes nomes da escola metódica, Charles Seignobos leciona no
sentido de que todo fato histórico deixa um rastro, no qual o historiador aplicará sua
investigação para encontrá-lo. Sem nenhum rastro deixado, seria impossível conhecer os
atos que são objetos de estudos dos historiadores. (SEIGNOBOS, 2010, p. 384).
Como muitas vezes os atos deixam rastros, e rastros materiais, a partir disso o
historiador pode debruçar-se sobre sua investigação. Os rastros nada mais são do que os
documentos. Então, o método histórico nada mais é do que examinar os documentos
para se alcançar a determinação dos fatos passados. Ao contrário do que ocorre nas
outras ciências, o método histórico não observa os fatos diretamente, mas sim,
indiretamente, através da reflexão sobre as fontes documentais. Assim, como método
científico, o método histórico possui a função de estudar os documentos e determinar
quais foram os fatos que ocorreram no passado e que deixaram esse documento como
rastro, bem como, após descobrir os fatos e estabelecê-los, “aglomerá-los numa
construção metódica para descobrir suas relações mútuas”. (SEIGNOBOS, 2010, p. 384).
A escola metódica aparenta uma característica subjetiva, que parece estar
intrínseca ao homem: buscar a verdade. A busca utópica de poder dizer o que aconteceu,
nos mais ricos detalhes, fez com que as pesquisas da escola positivista ignorassem
circunstâncias e fatos não documentados e que formavam uma “nova” verdade. A crítica
que se a seguir segue essa linha de pensamento: nem tudo que está escrito, foi. Nem
tudo que foi dito, é.
A crise do historicismo e uma reflexão acerca do uso dos documentos
Até aqui foi observado a forma como que vinha sendo construída a ciência
histórica, uma história cada vez mais cientificada, positivada em documentos que
representam para os historiadores toda a verdade do passado. O documento retrataria o
que aconteceu, ele existe por si mesmo. A necessidade de interpretação e de
investigação restariam sem sentido nessas hipóteses.
No entanto, o curso positivista que a história tomou, somado a outras tantas
circunstâncias, fizeram com que ocorresse a crise do historicismo, tratada por Troeltsch
como residente no pensamento histórico-filosófico que alterou “sentimento vital” da
história, impondo-a a ânsia pela plenitude e totalidade, sem que isso fosse algo
imprescindível para o estudo histórico. (TROELTSCH, 2010, p. 454).
Quando Nietzsche (2005, p. 273) chama de homens históricos todos aqueles que
olham o passado para se estimularem ao futuro, realiza uma crítica ao uso da história:
olhar para trás para justificar sua esperança em um mundo melhor, que a felicidade e a
justiça ainda estão por vir, demonstra como a-históricos eles seriam. Esse olhar para
o processo histórico não estaria a serviço do conhecimento, mas da vida.
Se a história ficar apenas a serviço da vida, estará também “a serviço de uma
potência a-histórica”, e, dessa maneira, jamais conseguirá se tornar uma ciência pura,
como, no exemplo de Nietzsche, a matemática. Então, para que seria útil para nós nos
ocuparmos do passado? A História auxilia na criação da ideia da realização do
impossível. Ao vislumbrar atos de grandeza outrora realizados, os homens acreditariam
ser possível repeti-los, se repetissem a história. Assim, a História mostraria ao ser
humano a possibilidade de conseguir realizar o impossível, pois ele foi feito antes.
Entretanto, a comparação presente passado é inexata para Nietzsche. Para realizar
essa comparação, quantas diferenças precisarão ser negligenciadas, também seria
necessário destruir toda e qualquer individualidade do passado. (NIETZSCHE, 2005, p.
274).
A reflexão proposta por Nietzsche se torna crítica quando ele expõe seu
descontentamento com a necessidade de se colocar a história como ciência de qualquer
maneira “pela ciência, pela exigência de que a história seja ciência”. O autor chama a
história de ciência do vir-a-ser universal” e argumenta como “perigosa audácia” o lema
escolhido pelos historiadores da época, o “haja a verdade, pereça a vida”. (NIETZSCHE,
2005, p. 277). A ideia da crítica é clara: a transformação dos documentos em verdade nua
e crua destrói a vida. Seguindo o pensamento do autor, é preciso atentar para as rias
fontes e construções que o processo histórico possui, e só assim construir a utilidade da
história.
Para que essa utilidade da história se concretiza, Nietzsche argumenta:
Formemos agora uma imagem do evento espiritual que se produziu, com isso,
na alma do homem moderno. O saber histórico jorra de fontes inexauríveis,
sempre de novo e cada vez mais; o que é estrangeiro e desconexo entre si se
aglomera; a memória abre todas as suas portas e no entanto ainda não está
suficientemente aberta; a natureza se esforça ao extremo para acolher esses
hóspedes estrangeiros, ordená-los e honrá-los, mas estes mesmos estão em
combate entre si, e parece necessário dominar e vencer todos eles, para não
perecer, ela mesma, nesse combate entre eles. (NIETZSCHE, 2005, p. 277).
O que aconteceu nos Annales, Nietzsche havia proposto em discussão muitos
anos antes, cada vez mais novas fontes e novas temáticas se mostram para a história.
Isso demonstra como a história entrou em crise, ao se voltar para um positivismo
exagerado deixa de olhar para hipóteses subjacentes.
Somado à crise do historicismo, os historiadores empiristas também se mostram
contrários ao debate teórico-metodológico, pois isso afastaria o historiador do que
realmente lhe importaria: os fatos e acontecimentos passados. Um teórico não seria um
historiador, pois deixou de lado a pesquisa documental para lançar-se sobre obras
literárias e filosóficas nas bibliotecas. (REIS, 2011, p. 05).
Realizar a pesquisa apenas sobre os documentos resultaria em conclusões
equivocadas. As fontes nem sempre são confiáveis. É necessária a existência de
hipóteses e problemáticas acerca dos documentos. O documento por si só não i
produzir um resultado de estudo crítico satisfatório. Segundo Reis, a objetivação da
prova documental não é suficiente para se buscar a “verdade histórica”. Conforme o
autor, “as fontes, além de não falarem por si mesmas, chegam ao presente arruinadas,
fragmentadas, lacunares ou excessiva/estranhamente eloquentes. É o historiador quem
vai ao arquivo com suas questões e as desenvolve apoiando-se nas fontes”. (REIS, 2011,
p. 08).
Veja-se um exemplo contido nas hipóteses de pesquisa de relação entre
regionalismo e Poder Judiciário: o Tribunal Regional do Trabalho da 4º Região,
responsável pelos recursos nos processos trabalhistas do Rio Grande do Sul, vinha
decidindo que a contribuição sindical
4
contida em convenção ou acordo coletivo é
devida, mesmo que os funcionários não façam parte do rol dos sindicalizados
5
. Tal
posicionamento contraria a própria Lei trabalhista e o entendimento de seu Tribunal
Superior (Tribunal Superior do Trabalho)
6
.
4
Também chamado de imposto sindical. É a contribuição devida pelo trabalhador que opta por ser
associado ao sindicato ou outra classe social. O valor corresponde a um dia-salário e é descontado sempre
no mês de março. Era obrigatório a todos os trabalhadores sindicalizados até a Reforma Trabalhista,
ocorrida em 2017, passando a ser opção após as mudanças nas Leis Trabalhistas.
5
Súmula 86 do Tribunal Regional do Trabalho da Região - CONTRIBUIÇÃO ASSISTENCIAL.
DESCONTOS. NÃO FILIADO. A contribuição assistencial prevista em acordo, convenção coletiva ou
sentença normativa é devida por todos os integrantes da categoria, sejam eles associados ou não do
sindicato respectivo.
6
PROCEDENTE NORMATIVO 119 DO TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO. CONTRIBUIÇÕES
SINDICAIS - INOBSERVÂNCIA DE PRECEITOS CONSTITUCIONAIS (mantido) - DEJT divulgado em
Se no futuro alguém decidir realizar uma pesquisa histórica acerca da
contribuição sindical no Brasil, tendo como recorte temporal os primeiros anos após a
reforma trabalhista, usando como fontes a Lei (Consolidação das Leis do Trabalho) e as
decisões do Tribunal Superior do Trabalho, e tendo como norte que o documento é a
verdade, certamente apresentaria decisões equivocadas, pois afirmaria que os
funcionários não sindicalizados não deviam a contribuição a seu respectivo sindicato.
Assim, com a ausência de hipóteses e problemas sobre tais fontes, o historiador não
observaria as particularidades que estariam acontecendo nos judiciários de diversas
regiões de seu recorte espacial, como por exemplo, o Rio Grande do Sul.
Desse modo, o historiador não pode debruçar-se sobre os documentos e os ter
como verdade, ou como a “história oficial”. As fontes são a própria história, e não pode
existir pesquisa sem elas. No entanto, o historiador deve questioná-las, criando
problemas sobre elas, e fazendo com que a ciência consiga alcançar melhores objetivos.
A necessidade de cientificismo histórico e do uso correto dos conceitos
Em outro ponto, poderia se perguntar qual seria o interesse de juristas pela
ciência histórica. Qual seria a motivação de advogados e juízes em se tornarem
historiadores e desbravarem as portas dos arquivos da justiça para estudar os eventos
envolvidos pelos processos judiciais? Para responder, volta-se até o século XIX e para as
lições de Gabriel Monod.
O autor trata de justificar o despertar pela curiosidade da ciência histórica na
França, ocorrida no século XVI. As causas, segundo Monod foram várias, desde o
movimento da Reforma, o crescimento da atividade cultural, o livre pensamento, a livre
investigação científica e as lutas políticas. (MONOD, 2010, p. 336).
Tais causas foram responsáveis em fazer com que os envolvidos nas lutas
políticas procurassem armas na história. Dessa maneira, a maioria dos desenvolvedores
de trabalhos históricos no final do século XVI eram juristas. (MONOD, 2010, p. 336). Isso
demonstra que o interesse de indivíduos provenientes da área jurídica pela história não
se trata de um fenômeno novo, mas que vem ocorrendo reiteradamente. A principal lição
retirada disso é que quando um jurista opta por realizar uma pesquisa histórica, deixa de
25.08.2014 "A Constituição da República, em seus arts. 5º, XX e 8º, V, assegura o direito de livre
associação e sindicalização. É ofensiva a essa modalidade de liberdade cláusula constante de acordo,
convenção coletiva ou sentença normativa estabelecendo contribuição em favor de entidade sindical a
título de taxa para custeio do sistema confederativo, assistencial, revigoramento ou fortalecimento sindical
e outras da mesma espécie, obrigando trabalhadores não sindicalizados. Sendo nulas as estipulações que
inobservem tal restrição, tornam-se passíveis de devolução os valores irregularmente descontados.".
ser um jurista, e torna-se historiador, devendo se sujeitar a teoria, metodologia e regras
da ciência histórica. Deixa-se de lado o direito e escolhe-se pela história.
Monod ainda alerta para como as paixões e o posicionamento político podem
intervir na pesquisa do historiador. Por tais motivos, surge a exigência de o estudo estar
envolvido pelas fontes, de forma que se torne sólida, o autor fala sobre a necessidade de
“[...] ensinar os historiadores a se servirem de documentos”. (MONOD, 2010, p. 337).
A falta de cientificismo faz com que historiadores se deixem influenciar por suas
paixões, acarretando a imparcialidade. Isso pode fazer com que a história seja usada a
serviços políticos. (MONOD, 2010, p. 337). O expresso anteriormente demonstra, mais
uma vez, como deve se atentar na busca de uma pesquisa sem achismos, com o uso de
metodologia e teoria histórica, que a solidifique como pesquisa científica.
Por mais que faça parte da corrente positivista da história, e retentor de muitas
críticas, os ensinamentos de Gabriel Monod ao se juntaram aos ensinamentos de outros
teóricos, fazem com que qualquer pesquisa possa alterar de rumo e metodologia. A
busca pelo cientificismo e por enquadrar a pesquisa que aqui se relaciona em fontes
sólidas passaram a se tornar prioridades em um primeiro momento, dando novos ares ao
estudo que vem sendo realizado.
Ademais, outro ensinamento que fica das leituras orientadas a partir da disciplina
de Estudos Historiográficos V, é em relação ao uso dos conceitos. O diferencial da
História frente às demais ciências é que é nela que os conceitos se apresentam em
dois níveis de concomitância, pois ela trata de duas temporalidades distintas, quais
sejam, a época do historiador e a qual se refere ao objeto de estudo da pesquisa.
(BARROS, 2016, p. 139).
O uso dos conceitos fora do contexto histórico resulta em anacronismos, que
podem resultar na perda de todo o sentido conceitual. Os anacronismos podem ocorrer
em conceitos de hoje aplicados ao ontem, ou nos conceitos de ontem aplicados ao hoje.
A aplicação correta dos conceitos é um detalhe de importância relevante a ser
observado, sendo que o historiador deve tomar os cuidados necessários para fazer com
que não crie anacronismos. (BARROS, 2016, p. 161-182). Regionalismo e tradicionalismo
são exemplos de conceitos que pode gerar anacronismos na pesquisa em andamento,
principalmente pelo fato de que se trata de história do tempo presente.
Em busca de se aproximar do problema, José D’assunção Barros aborda o
“potencial generalizador”, o que ele chama de “[...] elemento sine qua non de todo
conceito”. Quando se pensa no potencial generalizador de um conceito através do tempo
se remete a duas divisões: potencial generalizador diacrônico e potencial generalizador
sincrônico. (BARROS, 2016, p. 164).
O potencial generalizador diacrônico refere-se aos conceitos cuja extensão pode
ser aplicada a vários períodos de tempo, ou seja, o conceito atravessará tempos
distintos. Conceitos com baixo potencial generalizador diacrônico são aqueles cuja
extensão é menor, e são aplicáveis apenas a um determinado período de tempo.
(BARROS, 2016, p. 164-170).
o potencial generalizador sincrônico refere-se quando o conceito se desdobra
em um mesmo período de tempo, mas é aplicado a espaços físicos ou sociais diferentes.
(BARROS, 2016, p. 172). As designações apresentadas para o potencial generalizador de
um conceito fazem com que, se observadas, diminuam as chances de anacronismos na
dissertação. Claro que aqui foi apenas repassada a forma simplificada das lições de José
D’Assunção Barros, mas em uma totalidade, ajudarão a montar um trabalho com
resultados muito mais satisfatórios, sem que ocorram riscos do uso equivocado de
conceitos e anacronismos.
Fontes judiciárias: uma atenção especial
Como tratado nos diálogos entre os autores que foram até aqui apresentados, a
necessidade da atenção para as fontes é uma das sustentações teóricas da pesquisa.
Embora na pesquisa, a qual usa-se como exemplo, se trabalhe com História Cultural,
História Regional e também com História Política, as fontes primárias (e principais) são
as judiciais. Poder estudar a cultura de um povo através do Poder Judiciário é algo que
desperta a curiosidade, e pode render ótimos frutos.
Entretanto, para poder alcançar bons frutos é preciso fazer um bom uso das
fontes. Assim, para massificar este estudo, junto com a articulação feita sobre a pesquisa
e as teorias da história, atento agora para como as fontes judiciais podem ser usadas
como fontes históricas.
Ao que pese a burocracia do Judiciário brasileiro, todas as decisões prolatadas são
escritas, publicadas e tornadas públicas, independentemente do grau. Com o advento da
justiça eletrônica, muitos Acórdãos são encontrados nos arquivos digitais dos
Tribunais, nos casos onde não é possível encontrar tais decisões por meio eletrônico,
elas estão arquivadas no arquivo físico do Tribunal ao qual pertence. Em relação à
pesquisa judicial através dos respectivos arquivos, Carlos Bacellar evidencia que a
importância dos arquivos judiciários para a pesquisa histórica é evidente, embora o
Poder Judiciário não trate eles como prioridade, causando danos aos documentos.
(BACELLAR, 2008, p. 35).
Cada vez mais, novas discussões acerca do tema da interdisciplinaridade devem
aparecer, denotando pesquisas com fontes judiciais, e, apesar das barreiras existentes, a
aproximação da história e do Direito é essencial para produzir novos conhecimentos. Em
conclusão de sua ideia, Ironita Policarpo Machado leciona que “para a historiografia, a
interdisciplinaridade é importante no sentido de se buscar maior conhecimento sobre a
atuação da Justiça no processo histórico”. (MACHADO, 2013, p. 10).
O próprio Direito considera suas fontes históricas, sendo que seu estudo é de
grande importância para as disciplinas jurídicas, uma vez que é através dele que se
entende a evolução do Direito e de como surgiu a legislação em vigor. É na história que
muitas vezes o jurista justifica pareceres e teses atuais, e entende que a legislação atual
possui raízes no passado. (NUNES, 1998, p. 10).
Axt (2004) afirma que as fontes judiciais vêm cada vez mais atraindo os olhares
dos historiadores, em função do crescimento do interesse da sociedade em entender o
funcionamento do Poder Judiciário e do próprio Estado. Sem contar que os processos
possuem grandiosas informações de relações sociais e de poder de épocas passadas.
Para Axt:
Portanto, as fontes judiciais, além de permitir o acesso a uma nova perspectiva
do Estado, o que é fundamental para o fortalecimento da democracia e para o
estímulo construtivo à harmonização entre os Poderes, têm servido para
reconstituir e ressignificar uma experiência social, não apenas perdida, mas,
também, muitas vezes, deliberadamente, ocultada por uma memória coletiva
politicamente construída, geralmente elitista, excludente e comprometida com
os esquemas de dominação. (AXT, 2004, p. 341-342).
Entender o histórico político do Judiciário brasileiro é encontrar soluções para o
futuro. Embora não pareça interessante para os estudiosos do Direito buscar a
compreensão histórica do ativismo judicial no Brasil, através do caminho da
interdisciplinaridade, é pelo seguimento histórico que se pode achar uma compreensão
maior para tal fenômeno.
Ainda sobre o uso da interdisciplinaridade:
A obtenção de nova leitura do fenômeno jurídico enquanto expressão de ideais
e instituições implica a reinterpretação das fontes do passado sob o viés da
interdisciplinaridade (social, econômico e político) e da reordenação
metodológica, em que o Direito seja descrito sob uma perspectiva
desmistificadora. (WOLKMER, 2003, p. 1).
Desse modo, o uso de fontes jurídicas é extremamente relevante ao historiador,
uma vez que proporciona um arcabouço de informações acerca de relações e conflitos
sociais e de poder, no caso deste estudo, a importância das fontes jurídicas está em seu
conteúdo propriamente dito: o caráter político, possuidor de possibilidade de influência
social, que contém os votos dos Ministros togados.
As fontes jurídicas são usadas por muitos historiadores como fontes principais
de seus trabalhos, como trata Bacellar:
Diversos são os trabalhos que se utilizam primordialmente da documentação
judiciária. Boris Fausto, em Crime e cotidiano, traça um impressionante perfil da
criminalidade na São Paulo utilizando como Fontes históricas fonte de pesquisa
os processos do Tribunal de Justiça. Márcia Motta, em Nas fronteiras do -poder,
se vale dos processos de embargo para interpretar os litígios de terra no
sudeste cafeeiro. Silvia Hunold Lara recorre aos arquivos judiciários de
Campos, Rio de Janeiro, para discutir questões relativas à escravidão e à
violência, em seu clássico Vassouras, analisa a cafeicultura nesse município do
Vale do Paraíba fluminense graças aos processos, testamentos e inventários que
pôde localizar há mais de meio século. (BACELLAR, 2008, p. 36-37).
Em um terceiro plano, a utilização das fontes impressas, através de reportagens
sobre decisões dos Tribunais, entrevistas da mídia com Ministros togados e comentários
em artigos de jornais e revistas apresentam importância ao estudo, uma vez que podem
apresentar uma justificativa política dos interesses dos magistrados, além de
proporcionar a visão de como a sociedade recebe a informação acerca das decisões de
cunho político da Suprema Corte.
Sobre a importância da fonte impressa para a história política, os jornais, as
revistas ou os programas midiáticos, muitas vezes, são palco do embate acerca da
disputa pelo poder. (LUCA, 2008, p. 128). Para melhor compreensão dos impressos, deve
existir uma análise detalhada de seu local de inserção e uma delineação de abordagem de
seu conteúdo, permitindo a tais documentos serem ao mesmo tempo fontes e objeto de
pesquisa historiográfica. (LUCA, 2008, p. 141).
Outras possibilidades de estudos sobre as peculiaridades das fontes jurídicas são
encontradas no ensaio de André Rosemberg e Luís Antônio Francisco de Souza (2009).
Os autores trabalham com perspectivas teórico-metodológicas sobre o uso dos arquivos
jurídicos, dando enfoque aos processos criminais e trazendo considerações sobre o uso
da análise do discurso sobre sentenças e demais manifestações. Ainda, os historiadores
buscam apresentar em seu artigo duas correntes historiográficas sobre o uso das fontes
jurídicas provindas dos processos crimes. Na primeira, existiria a possibilidade de se
estudar e reconstruir “aspectos do cotidiano de uma população normalmente
marginalizada dos feixes oficiais do poder”. (ROSEMBERG; SOUZA, 2009, p. 160).
Também é possível que as fontes jurídicas auxiliem no estudo do imaginário
social
7
. Isso ocorre através da tentativa de se compreender como os problemas sociais
7
Conforme Kalina Vanderlei Silva e Maciel Henrique Silva, “imaginário significa o conjunto de imagens
guardadas no inconsciente coletivo de uma sociedade ou de um grupo social; é o depósito de imagens de
memória e imaginação. Ele abarca todas as representações de uma sociedade, toda a experiência humana,
podem ser demonstrados a partir do Poder Judiciário. Quem defende tais possibilidades é
Ednéia Aparecida Ribeiro. A autora busca entender o crime de sedução
8
analisando as
fontes jurídicas existentes nos processos penais. (RIBEIRO, 1997, p. 59-60).
Outro grande historiador, que não apenas defende e busca expandir o
conhecimento teórico-metodológico sobre o assunto, mas utiliza da análise exaustiva
sobre as fontes jurídicas é Boris Fausto. A ideia de Fausto consiste em demonstrar que o
processo judicial é uma batalha em que o Poder Judiciário e o acusado lutam para fazer
valer sua “verdade” perante a sociedade e ao próprio processo.
Fausto, ao tratar da materialidade do processo penal, explica que ali estão dois
fatores diversos. Primeiro, é possível verificar a conduta do réu que infringiu a norma
vigente à época e, após, verifica-se a instauração da investigação e do seguinte processo
de punição. A partir desse último fato, o objetivo do aparelho repressivo passa a ser
estabelecer “a verdade”, de onde resultará a sentença, seja ela condenando ou
absolvendo o réu. (FAUSTO, 1984, p. 32).
Porém, processos e fatos delituosos possuem relação que não pode ser entendida
a partir de “critérios de verdade”. Do processo é plausível e com potencial apenas os
dois fatos provindos de sua materialidade, ou seja, a possível conduta crime e a batalha
iniciada pelo Estado para punir ou absolver o denunciado. (FAUSTO, 1984, p. 33).
Esse uso das fontes judiciais para diversas pesquisas na história começou a
ganhar maior protagonismo a partir da influência do materialismo dialético de Marx
9
. A
ideia de que a base da sociedade é a sua estrutura econômica e que a luta de classes traz
novo sentido à história, fez com que os historiadores, que até então dedicavam-se quase
que exclusivamente à história política e às grandes personagens, começassem a se
debruçar sobre novas fontes históricas. (JANOTTI, 2008, p. 11).
coletiva ou individual: as ideias sobre a morte, sobre o futuro, e sobre o corpo. (SILVA; SILVA, 2009, p.
213).
8
O polêmico crime de sedução estava previsto no art. 217 do Código Penal, e segundo a redação típica
assim se aperfeiçoava o ilícito: “seduzir mulher virgem, menor de dezoito anos e maior de catorze, e ter
com ela conjunção carnal, aproveitando-se de sua inexperiência ou justificável confiança”.
9
Sobre o marxismo como teoria da História, Kalina Vanderlei Silva e Maciel Henrique Silva explicam que:
“O marxismo como teoria da História apontou rumos não pensados e valorizados até então. Vivendo um
período de efervescente transformação econômica, de avanço do Capitalismo pelo mundo, Marx cunhou
uma teoria fundamentada no princípio de que toda sociedade deve assegurar a produção das condições
materiais de sua existência. Depois de Marx, nenhum pensador pode pensar a história deixando de lado
esses aspectos fundamentais: a economia (as condições materiais de existência), a divisão do trabalho e a
organização social que a ela estão ligadas. Sendo a produção uma das tarefas essenciais na história, é
sobre ela que Marx constrói sua teoria. Marx de fato elaborou uma teoria histórica que privilegiava as
forças produtivas (ou a técnica), cujo desenvolvimento se daria de modo autônomo em relação ao restante
das relações sociais. Assim, explicações da realidade que tomem como ponto de partida não a base
material da sociedade, mas a construção das representações sociais, a cultura, o imaginário, a memória,
sem dúvida constituem abordagens cujo eixo de análise não é o marxismo”. (SILVA; SILVA, 2005, p. 269).
Foi assim que se iniciou uma nova coleta e interpretação de fontes, passando a se
analisar documentos sobre a atividade econômica e até mesmo intelectual. Processos
judiciais, contratos de trabalho, etc., serviram para que os historiadores formassem uma
nova historiografia, voltada ao estudo social e econômico, que acabou sobrevindo a
antiga corrente historiográfica voltada à história política. (JANOTTI, 2008, p. 11).
É evidente que o uso das fontes judiciais não limita o historiador apenas ao estudo
do próprio Poder Judiciário. As sentenças, despachos, atas de audiências e demais
documentos processuais podem auxiliar no entendimento do imaginativo social, da
formação socioeconômica, das lutas de classe, e, como na hipótese de pesquisa
apresentada, na construção cultural regional. Ainda, a própria história política e luta pelo
poder pode ter seus bastidores encontrados em arquivos judiciais. O mundo processual,
com sua contínua disputa de discursos realizados pelos interlocutores (advogados,
partes, juízes, promotores, testemunhas, peritos e etc.), é um espelho social de sua época
em que existe uma luta entre o aparato governamental e grupos sociais ou políticos, e
ambos procuram fazer prevalecer a sua verdade.
Dentre as novas perspectivas para o uso das fontes judiciais que este ensaio traz,
como hipótese de pesquisa, a possibilidade de identificar particularidades regionalistas
em sentenças e manifestações judiciais dentro de determinado recorte espacial. Mesmo
fazendo parte de um mesmo Poder Judiciário e sobre a jurisdição de uma mesma lei, os
padrões de decisões e procedimentos podem ser diferentes de uma região para outra,
como, por exemplo, a realização das chamadas “audiências crioulas”
10
, no Poder
Judiciário do Rio Grande do Sul.
Considerações finais
Buscou-se aqui abordar a temática que envolve a pesquisa no Poder Judiciário e
sua relação com algumas teorias da história. Como meio de abordagem, proporcionou
um modo que facilitasse ao leitor uma forma de poder imaginar seu próprio estudo na
mesma análise. Para tanto, realizou-se uma construção textual a partir dos ensinamentos
da primeira escola histórica alemã e de suas contribuições para a prática histórica.
Após, observou-se a necessidade de a pesquisa histórica ser construída sobre
fontes históricas, os documentos. Serão as fontes que darão ao historiador seu caminho.
Entretanto, deve haver o cuidado de evitar um positivismo exagerado. Também deve ser
10
A ideia consiste em levar para a população a realização de um ato processual, mostrando o
funcionamento do Judiciário, do Ministério Público e da Advocacia aos cidadãos. Realizadas para
comemorar a Semana Farroupilha, no mês de setembro, o ato, manifestações e sentença são feitas em
versos e as partes trocam o terno e a gravata pela pilcha tradicional do “gaúcho”, tudo acontecendo em
processo judicial em andamento.
realizada a construção de hipóteses e reflexões sobre os documentos e dispensar a
teoria de que o contido nas fontes se trata da “verdade histórica”.
Ademais, embora se possa (e deva!) apresentar questionamentos acerca das
fontes de pesquisa, também não pode o historiador trabalhar com achismos e
suposições. A pesquisa deve ser embasada em cientificismo e seguir o processo teórico-
metodológico correto. É importante saber distinguir a teoria e metodologia da história
mais do que a de outras áreas do saber, pois embora a dissertação use de temas do
Direito, deve ser produzida por historiador, e não jurista.
Ainda, é importante se fazer o uso correto dos conceitos, dentro de seu tempo
histórico, a fim de evitar anacronismos, o que seria um grande erro para o historiador. A
observância desses detalhes garante um estudo produzido com maior sucesso. Os
estudos historiográficos permitem uma reflexão mais aprofundada acerca das teorias,
metodologias, conceitos e categorias de pesquisa, fazendo com que tenha se conseguido
realizar as mudanças necessárias no andamento da dissertação, adaptando-a à ciência
histórica.
Estudar personagens e fatos em um determinado tempo para poder compreender
a sua cultura, seu modo de viver, os jogos de poder que os envolviam, entre outras
coisas, é o que configura o processo histórico. Mais do que olhar para as fontes em
busca de encontrar verdades históricas, é necessário questioná-las, pensar sobre quem
as fez, o contexto no qual foram criadas. A problematização das fontes é a linha que
separa o trabalho de um historiador e um simples relato documental produzido por
qualquer outra pessoa. Como exposto, a partir da crise do historicismo, é preciso
pensar os documentos. Não pensar por pensar, até mesmo essa reflexão deve seguir um
método teórico-metodológico, o que configura mais uma vez a importância para o
historiador em estudar teoria, embora muitos ainda acreditem que isso exclua tempo e
dedicação que poderiam estar sendo dedicados para a pesquisa e trabalho em arquivos.
Essa articulação proposta é um exercício simples, mas necessário. Não é retirar o
foco de qualquer pesquisa, mas enriquecê-la. Dependendo das fontes documentais com
que o historiador vir a se deparar, poderá pensar em mais problemas, mais formas de
abordagens e em uma maneira melhor de desenvolver sua pesquisa.
Ademais, conclui-se que não existe pesquisa na história se essa não for envolvida
de cientificismo, sem documentos. Se isso não ocorrer, o historiador corre o risco de se
tornar um literato, um simples redator de documentos, ou uma pessoa que escreve
guiado pelas suas paixões. A teoria e o método fazem parte do ofício, são inerentes à
vida do historiador.
Em especial, tentou-se aqui relacionar teoria e pesquisa, dando ênfase para
alguns ensinamentos que enriquecem o trabalho do historiador, como a abordagem das
fontes documentais e o uso correto dos conceitos. Foi usada uma hipótese de pesquisa
que relaciona regionalismo e Poder Judiciário como forma de exemplificação e, também,
atentou-se para o uso das fontes judiciárias.
O Poder Judiciário é um rico arquivo que se mostra cada vez mais presente nos
estudos e pesquisas dos historiadores, os documentos são incontáveis e possuem uma
grande riqueza de contribuição para diversas áreas. Entretanto, esses documentos
devem ter um olhar especial, pois na maioria das vezes foram escritos por terceiros, pelo
escrivão, pelo advogado, pelo servidor judicial. É a palavra da parte, suas ideias, os fatos
de sua vida, relatados por outro. Mas, com o devido cuidado, os documentos judiciais
fazem com que surjam pesquisas cada vez mais inéditas, e contribuem sempre mais para
um enriquecimento da história social, política e cultural.
Referências
AXT, Gunter. Algumas reflexões sobre os critérios para a identificação e guarda dos
processos judiciais históricos. Justiça & História, Porto Alegre, v. 4, n. 7, p. 329-375,
2004.
BARROS, José D´Assunção. Parte IV - Os conceitos na História. In: BARROS, José
D´Assunção. Os conceitos: seus usos nas ciências humanas. Petrópolis: Vozes, 2016. p.
136-191.
BACELLAR, Carlos. Fontes documentais: uso e mau uso dos arquivos. In: PINSKY, Carla
Bassanezi. Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2008. p. 23-80.
BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Precedente Normativo n° 119, CONTRIBUIÇÕES
SINDICAIS - INOBSERVÂNCIA DE PRECEITOS CONSTITUCIONAIS (mantido) - DEJT
divulgado em 25 ago. 2014. Disponível em:
http://www3.tst.jus.br/jurisprudencia/PN_com_indice/PN_completo.html#Tema_PN119.
Acesso em: 12 fev. 2020.
BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região. Súmula n° 86, CONTRIBUIÇÃO
ASSISTENCIAL. DESCONTOS. NÃO FILIADO. Disponível em:
https://www.trt4.jus.br/portais/trt4/sumulas. Acessado em: 01 fev. 2020.
CARAMELLO, Érika Fernanda. O gaúcho e a fronteira no mundo virtual. Intexto, Porto
Alegre: UFRGS, v. 2, n. 11, p. 1-12, jul./dez., 2004. Disponível:
https://seer.ufrgs.br/intexto/article/view/4082. Acesso em: 22 jul. 2019.
CHATEAUBRIAND, François-René. Prefácio (Études historiques). In: MALERBA, Jurandir
(org.). Lições de história: o caminho no longo século XIX. Rio de Janeiro: Editora FGV,
2010. p. 113-132.
FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano. A criminalidade em São Paulo (1880-1924). São Paulo:
Brasiliense, 1984.
JANOTTI. Maria de Lourdes, O livro Fontes históricas como fonte. In: PINSKY, Carla
Bassanezi. Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2008. p. 09-33.
LUCA, Tania Regina de. Fontes impressas: história dos, nos e por meio dos periódicos. In:
PINSKY, Carla Bassanezi. Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2008. p. 111-154.
MACHADO. Ironita Adenir Policarpo. Algumas considerações sobre a pesquisa histórica
com fontes judiciais. Revista Métis: história & cultura. vol. 12, n. 23. Disponível em:
http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/metis/article/view/1730> Acesso em: 25 ago.
2019.
MONOD, Gabriel. Do progresso dos estudos históricos na França desde XVI. In:
MALERBA, Jurandir (org.) Lições de história: o caminho da ciência no longo século XIX.
Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010. p. 323-352.
NIETZSCHE, Friedrich. Da utilidade e desvantagem da história para a vida. São Paulo:
Editora Nova Cultural, 2005. (os pensadores).
NUNES, Maria Thétis. A importância dos arquivos judiciais para a preservação da
memória nacional. Revista CEJ, Brasília, v. 2 n. 5, p. 109116. mai./ago. 1998. Disponível
em: http://www.cjf.jus.br/ojs2/index.php/revcej/article/viewArticle/911. Acesso em: 26
ago. 2019.
OLIVEN, Ruben George. A parte e o todo: a diversidade cultural no Brasil-nação.
Petrópolis: Vozes, 1992.
RANKE, Leopoldo Von. Sobre o caráter da ciência histórica. In: MALERBA, Jurandir
(org.). Lições de história: o caminho no longo século XIX. Rio de Janeiro: Editora FGV,
2010. p. 133-154.
REIS, José Carlos. O conceito de tempo histórico em Ricoeur, Koselleck e nos Annales:
uma articulação possível. História & Teoria: historicismo, modernidade, temporalidade e
verdade. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2005. p. 179-206.
REIS, José Carlos. O lugar da teoria-metodologia na cultura histórica. Revista de Teoria
da História. Ano 3, n. 6, p. 04-26, dez/2011.
ROSEMBERG, André; SOUZA, Luís Antônio Francisco de. Nota sobre o uso de
documentos judiciais como fonte de pesquisa histórica. Revista Patrimônio e memória.
vol. 5, n. 2. p. 159-173. dez 2009. Disponível em:
http://pem.assis.unesp.br/index.php/pem/article/view/175. Acesso em: 15 ago. 2020.
RIBEIRO, Edméia Aparecida. Fonte judicial na pesquisa histórica: o crime de sedução.
História & Ensino. vol.3. 1997. p. 57-71. Disponível em:
http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/histensino/article/view/12691. Acesso em: 15
ago. 2020.
SEIGNOBOS, Charles. O método histórico aplicado às ciências sociais. In: MALERBA,
Jurandir (org.) Lições de história: o caminho da ciência no longo século XIX. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2010. p. 375-392.
SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de conceitos históricos. 2ª.
ed. 2ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2009.
TROELTSCH, Ernest. A crise atual da história. In: MALERBA, Jurandir (org.). Lições de
história: o caminho no longo século XIX. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010. p. 433-457.
WOLKMER, Antônio Carlos. História do Direito no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2003.