FACES DA HISTÓRIA
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Recebido em: 10 de novembro de 2014
Aprovado em: 24 de novembro de 2014.
CAMARGO, Daisy de. Alegrias engarrafadas: os álcoois e a embriaguez
na cidade de São Paulo no nal do século XIX e começo do século XX.
São Paulo: Editora Unesp, 2012. 220 p.
BOTARO, Luis Gustavo Martins
Nos últimos anos têm crescido o número de pesquisas e trabalhos
acadêmicos que envolvem a cidade e o espaço urbano enquanto objeto de
reexão
1
. Sob diversos aspectos, as cidades são discutidas enquanto pano de
fundo de disputas políticas, relações sociais e culturais em distintos momentos
históricos. Entre essas diferentes perspectivas de análise, há de se destacar
o enfoque sob uma abordagem cultural, por meio das representações criadas
sobre o urbano, despertando a atenção dos pesquisadores. Sendo assim, a
pesquisa de doutorado da historiadora Daisy de Camargo, publicada, em livro,
em 2012, aborda os espaços, materiais e práticas da embriaguez da cidade de
São Paulo na virada do século XIX para o século XX. A pesquisa perpassa as
transformações e reformas urbanas da cidade naquele período que atingem,
também, o cotidiano, modos e costumes da população.
Seu objetivo geral é compreender o consumo de bebidas alcoólicas
na cidade de São Paulo, os espaços onde as mesmas eram consumidas,
as relações sociais nesses locais, os gestos e práticas da embriaguez. As
analogias desses espaços e práticas com as propostas e reformas urbanas
para a cidade de São Paulo: a emergência de uma nova dinâmica urbana que
ganha vida com as transformações urbanas desejadas de um lado e, por outro,
as interferências e controle dos espaços onde se comercializava e consumia
as bebidas alcoólicas, no cotidiano e nas práticas daqueles que frequentavam
esses locais da embriaguez.
Daisy de Camargo, atualmente, dedicou-se à história material e
das sensibilidades. Produziu seu texto a partir do gênero narrativo, mas sem
abandonar os conceitos e a linguagem acadêmica. Tratou sobre as reformas
urbanas da cidade de São Paulo na virada do século, tema muito explorado
pelos pesquisadores. Contudo, o diferencial de sua obra são os personagens
e as fontes com os quais ela dialogou.
Leitora de Walter Benjamin e de Baudelaire, a autora destaca que o
trabalho do historiador é selecionar os cacos do passado e, nesse processo,
exercer uma ressignicação do mesmo. Esse processo se a partir do
cruzamento de distintos registros históricos, ou seja, a partir da seleção de
símbolos elaborados por homens num determinado tempo histórico. Para
1 Podemos destacar aqui alguns trabalhos, como: Nicolau Sevenko (1992), Sidney Chalhoub (1996),
Sandra Pesavento (2002), Fransérgio Follis (2004), Heloísa Barbuy (2006), Marshall Berman (2007).
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representar suas experiências, o historiador estabelece um diálogo dele com
os “trapos” do passado e, nesse processo, reelabora-o e ressignica-o. A
autora também utiliza, como aporte metodológico, a micro-história, proposta
por Carlo Ginzburg, visto que, ao tratar sobre os “retalhos” do passado, os
dados marginais são considerados reveladores e permitem levar a um quadro
histórico mais profundo (CAMARGO, 2012, p.16).
Para composição desses vestígios do passado, a autora utilizou
uma gama heterogênea de fontes históricas. Vale ressaltar os documentos
produzidos por instituições do Estado como: relatórios dos chefes da polícia,
inquéritos policiais, inventários de bens post-mortem, plantas das cidades e
dos espaços em que se comercializava e se consumia bebidas alcoólicas.
Camargo também utilizou, em seu trabalho, os romances de memorialistas,
jornais da época, imagens como pinturas, fotograas e caricaturas.
Com as fontes e a metodologia denida, Daisy de Camargo dividiu
o seu trabalho em duas partes: num primeiro momento, a autora elencou os
espaços de venda e consumo das bebidas alcoólicas, como os armazéns de
secos e molhados, as tabernas e quiosques. Mapeando todos os locais onde
se encontravam tais estabelecimentos, como, por exemplo, a Rua Esperança,
um dos principais pontos de embriaguez, posteriormente “engolido” pelas
reformas urbanas da cidade de São Paulo. Numa segunda etapa, a autora
retratou os agentes sociais da ebriedade, a perseguição aos seus costumes e
a restrição à embriaguez, bem como algumas imagens que possibilitam uma
leitura crítica sobre suas práticas.
Um dos objetivos de Daisy de Camargo foi escrever uma história
material da embriaguez, na cidade de São Paulo, na virada do século XIX para
o XX. Sendo assim, a partir de inventários post-mortem, a autora conseguiu
reconstruir os espaços das tavernas: a variedade de tipos de bebidas para
diferentes ocasiões, os distintos objetos para o consumo de álcool, copos de
tamanhos variado sendo cada qual para um tipo especíco de bebida. Ainda
sobre os materiais que compõe um espaço da ebriedade e sociabilidade,
Camargo destacou os móveis (como o balcão, mesas, cadeiras e bancos)
que podem ser, constantemente, rearranjados segundo os interesses de cada
grupo e a ocasião. Além de espaços para a venda e consumo de álcool, Daisy
de Camargo ressalta que, em alguns casos, tavernas eram, também, locais de
produção de bebidas, fazendo alusão a alguns materiais e produtos descritos
nos inventários, como pequenos alambiques e rótulos de bebidas.
Baseada nos registros de memorialistas, nos códigos de postura e na
imprensa paulista, a autora identicou que, em meados de 1850, já havia uma
preocupação das autoridades públicas na scalização das tavernas e tascas
da cidade de São Paulo. Segundo a autora estes locais eram representados
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CAMARGO, Daisy de. Alegrias engarrafadas: os álcoois e a embriaguez na cidade de
São Paulo no nal do século XIX e começo do século XX. São Paulo: Editora Unesp,
2012. 220 p.
como ambientes sem as condições mínimas de higiene, espaços de baixa
moralidade, de vícios e da embriaguez, frequentado por gente de toda sorte,
entendidos enquanto desqualicados (CAMARGO, 2012, p. 58-65).
Uma das consequências da scalização sobre as tavernas e tascas da
cidade de São Paulo, por exemplo, foi o “desaparecimento” nos almanaques de
tais estabelecimentos comerciais, ou seja, a categoria de “tavernas” ou “fábricas
e destilação”
2
. Entretanto, não signicava um desaparecimento efetivo, devido
à perseguição, mas a mudança da designação que o caracterizava, passando
a ser denominado por “armazéns de secos e molhados”. A scalização e
atenção do poder público, nos anos subsequentes, ganhou ainda mais força,
concomitante com os ideais de higiene, moralidade, racionalidade, modernidade
e progresso desejados pela elite para toda a sociedade paulistana.
Entre os últimos anos do século XIX e início do século XX, a
perseguição às tavernas e tascas na cidade de São Paulo desencadeou a
construção de outros espaços para a venda e consumo de álcool. Dentre eles,
os quiosques, de propriedade, em sua maioria, de imigrantes ou descendentes
de portugueses
3
. Construído de estruturas pré-fabricadas e importado da
Europa, esses estabelecimentos, inicialmente, eram símbolos da modernidade,
por sua padronização e identicação com os quiosques da cidade de Paris
(CAMARGO, 2012, p. 74-75). Entendido, pela autora, como espaço de lazer,
os quiosques eram frequentados por negros forros e brancos pobres e seus
hábitos não eram compatíveis com as condutas discutidas e que passariam a
ser incorporadas no espaço urbano.
Devido ao número de reclamações nos jornais, frente a tais locais
do prazer e sociabilidade, bem como a scalização movida pelos ideais
modernizadores dos espaços e costumes, os quiosques desapareceram com
as reformas urbanas dirigidas pelos prefeitos Antônio Prado e Barão de Duprat.
Nesse processo, no lugar desses espaços da embriaguez, ergueram-se cafés
luxuosos, restaurantes, lojas e vitrines com suas novidades, num movimento de
cosmopolitismo da cidade. Assim sendo, foi possível apontar o desaparecimento
desses espaços de baixa moralidade no centro da cidade, assim como aqueles
que os frequentavam. A autora considerou que os quiosques no Brasil foram
um exemplo da ressignicação da modernização urbana: enquanto na Paris de
Haussmann os quiosques foram símbolos da modernidade, no Brasil, devido
2 Designação encontrada pela autora sobre aqueles estabelecimentos que produziam/comercializavam
bebidas alcoólicas nos almanaques sobre os estabelecimentos comerciais e industriais da cidade de
São Paulo entre as últimas décadas do século XIX e início do século XX (CAMARGO, 2012, p. 44-
55; 64-65).
3 A autora analisa duas tavernas em especíco, nos capítulos 1 e 2, que por sua vez, são de propriedade
de portugueses.
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a anterior perseguição às tavernas, tornaram-se locais de venda, consumo de
álcool e da sociabilidade daqueles marginalizados na sociedade.
Daisy Camargo apontou outro espaço de sociabilidade, venda e
consumo de álcoois no início do século XX: os cabarés. A autora analisou
esses espaços por meio do romance Madame Pommery, de Hilário Tácito,
escrito nas primeiras décadas do século XX. Diferente da rusticidade das
tascas e tavernas, os cabarés eram locais luxuosos, ornamentados, um misto
de restaurante, hotel e bar. Gerenciados, em sua maioria, por mulheres, esses
locais eram frequentados por coronéis vindos do interior, que encontravam
diversão nos jogos de azar, o prazer no consumo de bebidas alcoólicas e nas
prostitutas que ali frequentavam (CAMARGO, 2012, p. 86). Consumia-se,
além das bebidas comuns das tavernas, o haxixe, a cocaína e a champanhe,
esta, por sua vez, entendida como uma bebida do ser urbano que se pretendia
civilizado e interligado à cultura francesa.
De acordo com a autora, os cabarés que emergiam no centro da
cidade, enquanto manifestação de outras formas de embriaguez e prazer eram
“traduções do luxo das tavernas” (CAMARGO, 2012, p. 87), mas que não
deixaram de ser perseguidos devido à conduta daqueles que os frequentavam,
sendo visto como um espaço do vício e da imoralidade. Esses locais também
sofreram as consequências das reformas colocadas em prática nas primeiras
décadas do século XX, desaparecendo para que em seu lugar se constituísse
o alargamento das ruas e a construção de prédios públicos, teatros, praças,
cafés, restaurantes luxuosos, ou seja, espaços condizentes com os anseios da
elite. Para a autora, além do desaparecimento dos cabarés, tascas e tavernas
do centro da cidade, esse fenômeno era acompanhado da exclusão daqueles
que frequentavam tais espaços, um controle do Poder Público em relação
ao prazer, aos costumes e práticas de determinados segmentos ainda mais
marginalizados da sociedade, que buscavam, a sua maneira, resistir e buscar
seus espaços num ambiente em constante transformação.
Por meio de processos criminais, a autora conseguiu identicar
as apreensões que tinham como justicativa a embriaguez. Na maioria dos
casos, os “infratores” eram brancos pobres, estudantes, imigrantes pobres e
negros, que além de serem acusados de embriaguez, logo, eram associados
a “vadiagem” (CAMARGO, 2012, p. 96-102; 132-133). Para os homens das
leis, com formação em Direito, a embriaguez era associada à vadiagem, sendo
que o ébrio era classicado como um perigo social, com propensão a cometer
delitos, a tumultuar a ordem pública e a falta de interesse ao trabalho, na
contramão do que era desejado.
Todavia, nos testemunhos daqueles que eram aprendidos, em
sua maioria, armavam exercer algum tipo de atividade, como lavadeiras
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e carregadores de bagagem nas estações de trem, por exemplo. Segundo
Daisy de Camargo, havia um desprezo do poder público e da sociedade
sobre aqueles que exerciam trabalhos informais, sem normas e regras pré-
estabelecidas, considerados, assim, vadios aqueles que não se sujeitavam
ao expediente convencional.
O conhecimento racional, baseado nos preceitos da ciência, que
dominavam as instituições públicas do Brasil e da cidade de São Paulo,
na virada do século XIX para o XX, transformou o ébrio num personagem
da anticonduta. Os pensamentos sobre a saúde e a moral, discutidos
por sanitaristas e pelos homens das leis, defendiam a necessidade de
conscientização e disciplinarização das camadas mais pobres da sociedade,
para criar bons hábitos e educação sanitária, nesse sentido, passaram a
associar o uso do álcool com a degeneração física e moral. Segundo a
autora, observa-se uma transformação na gura do ébrio, antes representado
por aquele, que sob os efeitos do álcool, tinha atitudes engraçadas, com as
vestimentas desarrumadas, postura inclinada, com tom de voz elevado e altas
gargalhadas, passando a ser entendido enquanto indivíduo que pode vir a
cometer delitos, que se tornou uma desgraça à família e ameaça aos padrões
que a sociedade buscava consolidar. Cria-se, portanto, uma nova doença: o
alcoolismo, difundido pela medicina e que relacionava a bebida à imoralidade,
à degeneração física e moral.
O movimento de proibição do uso de álcool, por ações de
conscientização da população, por meio de panetos, educação sanitária e
prisões foi entendido, pela autora, como um controle e cuidado do indivíduo,
buscando o cuidado com a toda a sociedade. A regulação do uso do álcool
está associada a um controle anímico do corpo, numa ânsia de orientação dos
sentidos sobre o argumento da defesa do coletivo.
Em suma, Daisy de Camargo faz uma relação entre as reformas
urbanas da cidade de São Paulo, que iniciaram ainda no período imperial, mas
que ganharam ímpeto com o governo republicano e os espaços de venda e
consumo de álcool. Por meio de uma variedade de fontes históricas, a autora
alcançou as experiências, as práticas de consumo, a organização interior e a
sociabilidade nas tavernas, cabarés e quiosques da cidade. Cada qual com
uma temporalidade e experiência de seu tempo, enfrentavam e resistiam aos
ideais que acompanhavam a virada do século, sob os preceitos da Medicina,
Engenharia e do Direito.
Portanto, a autora, além de conseguir perpassar pela história social e
material da ingestão de álcoois, conseguiu reconstruir as práticas do consumo,
a perseguição e controle do indivíduo e suas formas de prazer e diversão
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Luis Gustavo Martins Botaro
que, por sua vez, não estavam em consonância com os valores e princípios
desejados para a cidade que se modernizava.
Com uma narrativa uida e envolvente, Daisy de Camargo propõe
uma análise consistente sobre um tema bastante discutido na historiograa:
a modernização da cidade de São Paulo. Dentro da perspectiva da história
cultural e social, a autora abordou o assunto a partir da questão da embriaguez
e do prazer, por meio de uma variedade de fontes que possibilitou dar voz
a personagens marginalizados, o que tornou o trabalho ainda mais sólido e
ímpar. Um livro importante e necessário àqueles que buscam novas questões
e fontes para lidar com a história das cidades e dos modos de vida urbano.
Referências
BARBUY, Heloísa. A cidade-exposição: comércio e cosmopolitismo em São
Paulo, 1860-1914. São Paulo: Edusp, 2006.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da
modernidade. Tradução Carlos Felipe Moisés, Ana Maria Ioratti. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007.
CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte Imperia.
São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
FOLLIS, Fransérgio. Modernização urbana na Belle Époque paulista. São
Paulo: UNESP, 2004.
PESAVENTO, Sandra. O imaginário da cidade: visões literárias do urbano
Paris, Rio de Janeiro, Porto Alegre. Edição. Porto Alegre: Ed. UFRGS,
2002.
SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade
e cultura nos frenéticos anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.