BORGES, George Felipe Bernardes Barbosa
*
https://orcid.org/0000-0001-9271-8228
RESUMO: O cinismo se notabilizou na
antiguidade por ser uma escola marcada pelas
χρεαι. Elas constituem um certo valor
histórico, literário e filosófico por narrarem o
modo de vida dos filósofos cínicos. Ao nos
debruçarmos sobre as χρεαι é possível
encontrar um modo bem peculiar de se fazer
filosofia por meio do humor. Diógenes,
usando de um expediente retórico único
implementa o que chamamos de pedagogia do
riso, uma forma de transmitir os princípios
filosóficos da escola utilizando-se cômico. Este
artigo propõe uma análise e uma estruturação
da retórica performática de Diógenes através
das χρεαι.
PALAVRAS-CHAVE: cinismo; filosofia;
cômico; retórica; ética.
ABSTRACT: Cynicism was notable in ancient
times for being a school marked by χρεαι.
They constitute a certain historical, literary
and philosophical value because they narrate
the way of life of the cynical philosophers.
When looking at χρεαι it is possible to find a
very peculiar way of doing philosophy by
way of humor. Diogenes, using a unique
rhetorical device, implements what we call
laughter pedagogy, a way of conveying the
school's philosophical principles by using
comics. This article proposes an analysis and
structuring of Diogenes' performance rhetoric
through χρεαι.
KEYWORDS: cynicism; philosophy; comic;
rhetoric; ethic.
Recebido em: 09/06/2020
Aprovado em: 09/11/2020
* Graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás, Goiânia-GO; Mestre em Filosofia pela
Universidade Federal de Goiás, Goiânia-GO. Professor substituto de Filosofia no Instituto Federal Goiano.
E-mail: georgefbbborges@hotmail.com
Este é um artigo de acesso livre distribuído sob licença dos termos da Creative Commons Attribution License.
Convidai um sábio para um banquete, e vereis
que ou conservará um profundo silêncio ou
interromperá os demais convidados com
frívolas e importunas perguntas. Convidai-o
para um baile e ele dançará com a agilidade de
um camelo. Levai-o para um espetáculo, e
bastará o seu aspecto para impedir que o povo
se divirta.
(ERASMO DE ROTERDÃ, 2002, p. 52)
Combinar humor e filosofia pode parecer, à primeira vista, complicado. Figura no
senso comum uma intuição (justificável pela própria história da filosofia), que os
filósofos negam o cômico e o riso. Como vimos na epígrafe acima, Erasmo de Roterdã
(1466-1536) critica contundentemente o recolhimento exacerbado dos filósofos. Além
deles não conseguirem se divertir, impedem que os outros se divirtam. Para ilustrar
como a ética e a moral, duas atividades associadas a filosofia, são vistas como
descoladas dos prazeres da vida, podemos usar uma parte da história do livro de
quadrinhos de Aline: cama, mesa e banho. Aline vai fazer terapia e convida seu
psiquiatra para tomar algumas cervejas. Ao passo que o psiquiatra responde: “Sinto
muito, Aline! A ética profissional me impede de... fazer coisas gostosas!”
(ITURRUSGARAI, 2000, p. 10). Mas essa crítica não é novidade. Alguns séculos antes,
Luciano de Samósata (120-192 d.C.) publicava livros fazendo observações muito
similares. Na obra Diálogo dos Mortos, Luciano coloca um de seus personagens
descrevendo pejorativamente um filósofo como alguém de aspecto altivo, venerável,
sobrancelhas eriçadas, barbas longas e perdido em meditações (LUCIANO, Diálogos, 10,
8), fazendo troça desse caráter quase divino que vários fisofos buscam passar. E por
mais que alguns filósofos e historiadores de filosofia tenham tentado cristalizar essas
visões uma escola filosófica, e um filósofo em particular que resistiu a todas elas
Diógenes de Sínope, o cínico (404-323 a.C.). Diógenes de nope é o principal expoente
da escola cínica. Ele teria sido aluno de Antístenes, um seguidor de crates bastante
influente na época que a tradição considera como o fundador do cinismo (embora essa
seja uma discussão ainda em aberto pelas datações e cronologia). Diógenes também foi
mestre de outros cínicos, um deles é Crates de Tebas, um importante filósofo que foi
mestre de Zenão, o fundador da grande escola estoica. Diógenes, como procuraremos
apresentar brevemente é conhecido pelas suas atitudes desconcertantes. E é sobre o
cinismo de Diógenes que nos ocuparemos nas próximas páginas: buscaremos explorar e
estruturar um pouco da filosofia e de sua retórica performática.
Basta um breve fitar de olhos nas χρεαι de Diógenes compiladas na obra Vida e
Doutrina dos Filósofos Ilustres
1
para percebermos que algo especial. A língua
portuguesa não possui uma palavra adequada para traduzirmos o termo grego χρεαι,
que literalmente significa “útil. Portanto, nesse caso é mais satisfatório fornecer uma
definição ao invés de tentar a tradução dessa noção. As χρεαι são curtas histórias
explicativas e, em geral, contém comentários. Ela pertencia ao προγυμνάσματα, sendo
uma pequena vertente de exercícios que os oradores antigos deveriam treinar. O famoso
retórico Quintiliano categoriza as χρεαι como [...] divulgação, não como elementos para
a eloquência.” (QUINTILIANO, Instituição, I, 9, 6) Embora todo esse gênero de χρεαι
contenha trechos engraçados, o que encontramos no livro VI o livro onde o compilador
Diógenes Laércio discorre sobre a teoria e os filósofos cínicos não é um acidente, algo
circunstancial. As descrições das ações de Diógenes também são uma descrição da
própria filosofia cínica. É através das mais absurdas, chocantes e surpreendentes ações
que o Cão, como era conhecido, transmitia os princípios e os valores de sua corrente
filosófica.
E é isso que há de especial em Diógenes: o cômico para ele se transformou em um
recurso pedagógico, usado para exortar moralmente as pessoas. Este curto texto tem
como objetivo apresentar ao leitor a pedagogia do riso de Diógenes de Sínope. Em que
consiste essa pedagogia? Em uma retórica performática cômica, que dividiremos em três
partes: 1) a verbal; 2) pantomímica; 3) híbrida. Todas essas três partes contém um
conteúdo capaz de nos roubar boas risadas, dissolver a impressão de que a filosofia seja
para pessoas sisudas e, principalmente, ao mesmo tempo, ensinar os princípios
filosóficos da escola cínica.
O cinismo por trás das cortinas
Diógenes de Sínope se notabilizou por algumas ações radicais, inesperadas e
pouco convencionais. Alguns o conhecem como o homem do barril, por morar em um
tonel (DIÓGENES LAÉRCIO, Vidas, 6, 23); além disso, Diógenes também é conhecido
pelas várias passagens em que enfrenta, com sua παρρησία
2
, Alexandre, o Grande
1
Obra de Diógenes Laércio, um dos mais famosos compiladores da antiguidade. Foi escrita no culo III
d.C.. É uma das grandes fontes para o estudo dos filósofos da antiguidade, embora nem sempre seja muito
confiável. Assim, o livro constitui não só a exposição dos princípios de doutrinas das várias escolas
filosóficas da antiguidade, mas também relatos sobre a vida desses filósofos.
2
O principal conceito da escola cínica. É uma noção quase intraduzível, mas pode significar algo próximo
de “liberdade da fala” ou “liberdade da palavra”. Esse conceito condensa praticamente todos os princípios
mais importantes da escola, como o pragmatismo, a verdade, a liberdade e a razão.
(DIÓGENES LAÉRCIO, Vidas, 6, 38; 6, 44; 6, 60; 6, 63; 6, 68)
3
; outros o conhecem como
o filósofo da lanterna, por carregar uma lanterna em plena luz do dia no meio do
mercado (DIÓGENES LAÉRCIO, Vidas, 6, 41); Diógenes também se destacou por
masturbar-se em praça pública (DIÓGENES LAÉRCIO, Vidas, 6, 46; 6, 69), abraçar
estátuas no inverno, rolar na areia quente no verão (DIÓGENES LAÉRCIO, Vidas, 6, 23)
e pedir esmolas para estátuas (DIÓGENES LAÉRCIO, Vidas, 6, 49). Mas, sem dúvidas a
mais famosa imagem que temos de Diógenes é a de Cão. Seus contemporâneos o
chamavam assim por causa de seu estilo de vida: morar na rua, comer sobras de templos
e da estrada e satisfazer as suas necessidades em público.
Embora esse apelido tenha um intuito pejorativo, ele não incomodava em nada
nosso filósofo. “Durante um banquete algumas pessoas lançaram-lhe ossos como a um
cão; levantando-se, o filósofo urinou sobre os ossos, como faria um cão.” (DIÓGENES
LAÉRCIO, Vidas, 6, 46) Diógenes urina no osso para absorver o impacto das críticas que
sofria e assim, transformar o estilo de vida canino (κυνικός em grego, o termo cinismo,
κυνισμός, está ligado a esse modo de vida) em algo digno para se orgulhar e se desejar.
Conta-se que Alexandre ao encontrar com Diógenes disse: “Sou Alexandre, o grande
rei”, ao passo que Diógenes respondeu: “E eu sou Diógenes, o cão.” (DIÓGENES
LAÉRCIO, Vidas, 6, 60)
O leitor menos familiarizado com a filosofia cínica pode ficar desconcertado com
essas histórias e questionar (com certa razão): alguém que urina em público e vive como
um cão foi levado a sério como filósofo? Sim. Platão, que representava a antítese do
cinismo, compara Diógenes a Sócrates, chamando-o de “Sócrates enlouquecido.”
(DIÓGENES LAÉRCIO, Vidas, 6, 54) Essa descrição de Platão resume perfeitamente
quem foi Diógenes, qual o tamanho de sua importância e o impacto de sua retórica
performática. Diógenes é um filósofo com princípios, pensamentos e uma visão de
mundo tão profunda a ponto de ser comparado com um dos maiores filósofos gregos
Sócrates, mestre de Platão e de tantos outros. Ao dizer isso, Platão legitima, em algum
nível, as atitudes insanas de Diógenes. Ao mesmo tempo em que Platão o elogia
reconhecendo estatuto de filósofo, Diógenes também é criticado: ele é um Sócrates, mas
um crates louco! Louco por causa de seu exagero, de suas ações descompassadas da
3
Dentre essas destacamos a passagem em 6.38, que talvez seja a mais famosa: “Enquanto em certa
ocasião o filósofo tomava sol no Cranêion, Alexandre, o Grade, chegou, pôs-se à sua frente e falou: “Pede-
me o que quiseres!” Diógenes respondeu: “Deixa-me o meu sol!””. Diógenes também enfrentou outros
governantes que ele considerava tiranos ou demagogos como Filipe II (DIÓGENES LAÉRCIO, Vidas 6, 43),
Perdícas (DIÓGENES LAÉRCIO, Vidas, 6, 44), Dionísios (DIÓGENES LAÉRCIO, Vidas, 6.50) e Demóstenes
(DIÓGENES LAÉRCIO, Vidas, 6, 34). Além disso o filósofo cínico criticava Platão por se associar ao tirano
de Siracusa (DIÓGENES LAÉRCIO, Vidas, 6, 24).
realidade de seus interlocutores. Então, que legitimidade filosófica pode ter um homem
louco? Certamente nenhuma, mas tampouco Diógenes era louco. Por isso ele dizia
mimetizar os instrutores dos coros, na medida “[...] estes dão o tom mais alto para que
todos os outros dêem o tom certo.” (DIÓGENES LAÉRCIO, Vidas, 6, 35) Ou seja,
Diógenes exagerava o tom de suas exortações para causar impacto. Sabia que não era
possível corrigir um mundo através de uma lógica, com argumentos formais, e optou por
uma estética
4
. Assim, a sua retórica performática se alia com o cômico. Avner Ziv diz: “O
que a comédia realmente faz é colocá-las [as coisas] embaixo de uma lente de aumento.”
(ZIV, 1984, p. 41, tradução nossa)
5
Por trás todo exibicionismo sustentado pelo Cão
princípios filósofos que o norteiam e uma ideia clara de como transmiti-los. Por isso a
escola cínica é uma perfeita expressão do σπουδαιογλοιον, sério-mico.
6
E é isto que
denominamos de pedagogia do riso a predisposição e a intencionalidade de transmitir
preceitos filosóficos e realizar exortações morais através de uma retórica performática
cômica, que impacta seu interlocutor colocando, o seu mundo, de ponta-cabeça.
E isso não é nenhuma metáfora. Diógenes realmente queria reformular o mundo
de seu interlocutor. E isso tem fundamento filosófico: o cinismo é uma escola famosa por
se opor ao νόμος
7
, as convenções, preferindo a vida natural, κατά φύσιν
8
. É possível
explicar todo o cinismo a partir dessa oposição entre φύσις e νόμος. Nesse sentido,
discordamos da interpretação de Bosman (2006), ao afirmar em seu artigo que o cômico
4
Jacques Fontanille no artigo Le Cynisme: du sensible au risible, indica que Diógenes abriu mão da lógica
para expor o pensamento filosófico da escola e investiu no humor (isto é, em uma estética). Esse abandono
da lógica denota um “ato de descrença, uma dissuasão desesperada” (FONTANILLE, 1993, p.13, tradução
nossa), gerado talvez pela morte de Sócrates, um grande paradigma de justiça e valores morais. Dizendo de
outro modo, é como se os nicos perguntassem: se Sócrates não conseguiu argumentar com os gregos
quem conseguirá?
5
[No original] “What comedy really does is to place them beneath a magnifying glass.” (ZIV, 1984, p. 41).
6
Essa é uma discussão muito ampla. Cabe dizer apenas, para não deixar o leitor perdido, que o
σπουδαιογλοιον cínico denota uma seriedade (σπουδαον) no conteúdo e o cômico (embora o termo
grego γελοον denote riso, traduziremos como cômico, que tem o riso como efeito) em sua forma. Melhor
dizendo, um método de dizer (γελοον) e uma mensagem (σπουδαον), a combinação de ambos é o
σπουδαιογλοιον.
7
O termo νόμος pode ser traduzido como lei formal, norma ou como costume/convenção social. Por muito
tempo o νόμος grego tinha um caráter religioso, estando ligado a ordenação divina. Algo que muda com a
secularização do pensamento e da política. Depois das reformas de Sólon (638 559 a.C.) e Clístenes (565
a.C data da morte desconhecida) não havia mais espaço para a aristocracia, e a política secularizada
representava “a separação irrevogável entre a dimensão política e sagrada” (VEGETTI, 2014, p. 78).
8
O termo κατά φύσιν é muito comum entre as escolas filosóficas da antiguidade, sobretudo do período
helenístico. Como o período foi marcado por ascensões e quedas políticas, as escolas filosóficas tentava
incutir princípios de vida mínima para as pessoas, a fim de que mesmo sob condições adversas, elas
pudessem aspirar a felicidade. Uma tradução possível para κατά φύσιν é de uma vida vivida naturalmente,
sem grandes ambições, com simplicidade, onde o indivíduo encerra seus desejos na satisfação de
necessidades básicas e naturais.
em Diógenes desempenha um papel publicitário, isto é, o cômico é um modo dos
cínicos venderem sua filosofia rígida como algo mais atrativo.
9
O choque entre essas duas esferas que não se recobrem tem como pano de fundo
a εδαιμονία, felicidade
10
. Os cínicos acreditam que o objetivo para onde todos os
esforços dos seres humanos convergem é a εδαιμονία
11
. Para atingir a εδαιμονία é
necessário negar o νόμος, porque ele produz τφος
12
, isto é, uma espécie de ilusão que
se apossa e engana a razão dos seres humanos, levando-os crer que a felicidade está em
viver de acordo com certos padrões que a sociedade impõe. Assim, Diógenes se torna
um grande crítico do νόμος dos valores dos gregos. Mas a crítica não fica no campo
abstrato, apenas de discussões intelectuais. Diógenes materializa sua oposição e sua
preferência pela natureza por meio de sua retórica performática aquela que dissemos
ser feita para chocar , por isso ele se masturba na ágora. É uma forma de quebrar as
esferas do público e do privado. Contudo essa postura de subverter e negar o νόμος o
é um niilismo. Esse discurso e posicionamento radical, de negar valores de uma elite
intelectual, política, econômica e militar, não significa que para o filósofo cínico não
existem valores a serem promovidos. É preciso viver a vida racionalmente, por isso
“Diógenes dizia constantemente que na vida necessitamos da razão ou então de um
laço.”
13
(DIÓGENES LAÉRCIO, Vidas, 6, 24) E viver a vida conforme a razão significa
9
Embora discordemos da conclusão de Bosman várias ideias do autor que incorporamos em nossa
análise. Podemos citar por exemplo a maneira com que Diógenes lida com o público. Bosman oferece uma
interpretação valiosa, afirmando que Diógenes consegue achar o ponto certo, entre ser levado a sério e
não ser desprezado por suas exibições cômicas e filosóficas (2006, p. 14).
10
Literalmente o termo εδαιμονία significa bom (ε) e “espírito/alma” (δαίμων). Para entendermos
melhor esse conceito, precisamos voltar um pouco até Sócrates. Ele faz uma revolução na concepção de
ser humano antes de fundar sua ética. Sócrates afirma que o centro do ser humano, a sua parte mais
distintiva é sua alma (ψυχή) ou seu espírito (δαίμων). Portanto, para o ser humano alcançar a completude
era necessário cuidar da alma (JAEGER, 2013, p. 520). Assim, ter uma alma (δαίμων) bem (ε) cuidada
equivale a felicidade (εδαιμονία).
11
Os cínicos, assim, como os epicuristas, cirenaicos, céticos, os peripatéticos e estoicismo, isto é, as
grandes escolas do helenismo são eudaimonistas. Isso significa dizer que o bem supremo para o ser
humano é a felicidade.
12
O conceito de τφος é muito rico. Em seu artigo Notas sobre o sentido de τφος na tradição cínica,
Flores-Júnior oferece as duas perspectivas principais de uso no cinismo. O primeiro sentido de τφος está
ligado a fumaça. Que por sua vez se conecta com a mitologia grega, com o monstro Tifeu, condenado a
viver no Tártaro. O τφος causa dificuldade visual, o que simbolizaria, em um nível oral, uma falha no
discernimento do agente. A segunda noção do τφος é como orgulho. Para nossos propósitos essa noção é
bem interessante porque o orgulho é um importante objeto risível. algo de estúpido e ridículo naquele
que se deixa dominar pelo τφος (orgulho). Vale notar que Platão e Diógenes trocam farpas, onde um
acusa o outro de ser orgulhoso, isto é, de sucumbir ao τφος (DIÓGENES LAÉRCIO, Vidas, 6.26). O τφος
é tratado no cinismo a partir de uma perspectiva ética, podendo simbolizar fumaça, orgulho, loucura e
auto-engano. Podemos também dizer que τφος é uma vaidade, uma doença, uma cortina de fumaça
contra a realidade. Flores-Júnior resume bem: o τφος é uma fumaça que mais do que ocultar a realidade,
vai na verdade desfigurá-la [...] (1999, p. 428).
13
Tradução de Mário da Gama Kury levemente modificada. O laço, para nos enforcarmos. É melhor
morrer do que viver indignamente.
viver conforme a natureza, κατά φύσιν. Isso configura a tensão no cinismo, entre vida
urbana, baseada no νόμος, e a vida natural, baseada na φύσις, na natureza humana
autêntica em última instância na razão.
Evidentemente o cinismo, como qualquer outra corrente filosófica, é complexo
demais para resumirmos em apenas algumas páginas. Para os propósitos deste trabalho,
acreditamos que a caracterização fornecida acima preenche bem as necessidades que o
leitor tem para acompanhar a discussão principal de nosso artigo. Sendo assim, podemos
compreender essa estruturação da retórica performática cômica como uma ferramenta
para ajudar Diógenes a desenvolver a oposição entre φύσις e νόμος aos seus
interlocutores, de modo a produzir um efeito imediato. Ele não exporá o conteúdo dos
princípios cínicos em longos tratados filosóficos, com conceitos rebuscados e verdades
transcendentais. Ele usado humor para exortar seus interlocutores, de modo a tentar
dissipar o τφος e reconduzi-los a εδαιμονία através da λόγος e da vida natural.
Estruturação em três partes
Propomos fundamentalmente neste momento entender os aspectos mais técnicos
da retórica cínica de Diógenes, e para tanto, oferecemos uma categorização própria de
todas as χρεαι que aparecem em Diógenes Laércio em três grupos distintos, para
começarmos a estruturar o processo pedagógico performático do Cão. Esses três grupos
se referem ao modo, melhor dizendo, à forma como Diógenes buscou comunicar os
princípios cínicos nas χρεαι, isto é, de maneira verbal, pantomímica ou híbrida.
Dentre as χρεαι e relatos que Diógenes Laércio nos traz em pouco mais de 20
páginas sobre Diógenes de Sínope, podemos identificar 226 curtas hisrias divididas nos
três grupos distintos citados acima. O grupo mais numeroso foi das χρεαι de curtas
asserções verbais, onde verificamos que, das 226 histórias, 168 são dessa categoria,
seguido por 34 χρεαι híbridas, isto é, que contém um conteúdo verbal e pantomímico e
apenas 24 χρεαι pantomímicas, onde Diógenes preterindo a palavra usa seu corpo para
filosofar, buscando inspiração em técnicas teatrais. Como são mais de 200 χρεαι
analisadas, seria penoso para o leitor acompanhar toda análise pormenorizada. Então
pensamos em proceder do seguinte modo: definiremos cada um desses três tipos de
comunicação cínica e traremos os exemplos mais marcantes de cada uma delas.
Χρεία verbal
Usando a principal fonte das χρεαι de Diógenes, o compilador Diógenes Laércio,
fizemos um levantamento no qual as χρεαι verbais representam mais de 70 por cento
das narrativas que chegaram até nós. Isso é muito significativo, porque mostra que
apesar do imaginário que temos do filósofo desprezar a comunicação verbal, ele não a
abandona, pelo contrário, faz dela seu carro chefe. E é claro, não podemos perder de
vista, que Diógenes estava inserido em uma Atenas predominantemente voltada para a
oralidade, a palavra λόγος, além de um conceito, designava uma ação sobre o outro: “[...]
a Atenas Clássica era uma democracia baseada na palavra, no lógos, como ação sobre
outrem.” (ANDRADE, 2002, p. 13) Isso mostra como a cultura era fortemente verbal e a
relevância da oralidade.
Assim como Sócrates e os Sofistas, grandes inspirações para a escola cínica,
Diógenes também prezava muito a oralidade mas, ainda assim, podemos ressaltar que o
uso feito pelo filósofo cínico é bastante peculiar. Enquanto Sócrates usava o poder da
oralidade com uma enorme carga de perguntas e os Sofistas a usavam através dos
discursos, os enunciados de Diógenes são sempre enunciados muito curtos. Outra
característica da oralidade na escola cínica são as asserções de Diógenes sempre
atacando diretamente o ponto mais frágil da situação na qual está inserido, com a crítica
e a seriedade filosófica encoberta por uma camada muito grossa de humor e escárnio.
Assim, podemos definir essa categoria de “χρεαι verbais como uma predileção de
Diógenes em usar a comunicação oral.
Esses enunciados verbais podem ser feitos diretamente a um interlocutor, como
quando Diógenes disse a um campeão dos Jogos Olímpicos, “eu venço homens, e tu
vence escravos” (DIÓGENES LAÉRCIO, Vidas, 6, 33), retirando desse vencedor toda a
honra e glória de sua vitória. Ou quando, ameaçado de morte por rdicas, um
importante general macedônico que sucedeu Alexandre, respondeu à ele de maneira
debochada, como se dissesse: “Isso deveria me afugentar? Sua maior força é comparável
com a dos insetos! Afinal, jogado no mundo como estou, qualquer coisa poderia me
matar.” (DIÓGENES LAÉRCIO, Vidas, 6, 44).
Diógenes também, quando inserido em um contexto que não o agradava de
alguma forma, usava esses tiros curtos para criticar alguém ou alguma instituição, mas
sem se dirigir diretamente a pessoa. Assim, fatigado por ver alguém ler um longo texto,
Diógenes o critica, mas falando em direção ao público, caçoando laconicamente:
“Coragem homens! Vejo a terra!” (DIÓGENES LAÉRCIO, Vidas,6, 38); ou quando
algumas pessoas elogiavam alguém que lhe havia dado uma coisa qualquer, Diógenes
comentou: ‘E não me louvais, a mim que mereci recebê-las?’” (DIÓGENES LAÉRCIO,
Vidas, 6, 62).
Além disso, Diógenes é retratado usando enunciados verbais para fazer apologia
de algum tipo de valor ou ideia que visava incutir em uma plateia ou no interlocutor,
como quando violentamente teria afirmado que “na vida necessitamos da razão ou de um
laço” (DIÓGENES LAÉRCIO, Vidas,6, 24), ou quando repreendeu Hegesias, por pedir-lhe
os seus escritos, enquanto a sabedoria poderia ser aprendida na prática (DIÓGENES
LAÉRCIO, Vidas, 6, 48), expressando um dos mais importantes valores da escola cínica:
a preocupação com o concreto, com o real e com a ação.
Todas essas três categorias da χρεία verbal o muito pertinentes e significativas,
mas enfatizamos principalmente a importância do terceiro tipo onde o enunciado é quase
sempre propositivo. Enquanto nas duas primeiras categorias o que Diógenes faz é
afirmar as ideias da escola, mas de modo negativo, nesse terceiro tipo a sua asserção é
positiva, apresentando de maneira mais fundamentada algumas das bases do cinismo.
Mesmo não desenvolvendo muito, afinal, o nico sempre verá mais vigor em
exemplificar do que apenas em explicar.
Χρεία pantomímica
Esse vocabulário, isto é, chamar uma χρεία de pantomímica o é novidade nos
estudos do cinismo. Importamos essa ideia de Peter Sloterdijk, que em sua grande obra,
Crítica da Razão Cínica, faz referência ao modo cínico de saber usar o corpo para
filosofar (SLOTERDIJK, 2012, p. 155). Por sua vez, Sloterdijk faz uso do conceito que é
próprio do teatro. A pantomímica é uma arte do âmbito teatral que envolve um uso
diminuto, quase nulo ou nulo, de comunicação verbal, onde os artistas usam apenas seu
corpo, figurino, maquiagem e expressão facial para se comunicarem. Podemos rastrear a
pantomímica até a Grécia Antiga, onde ela desempenhou um papel muito importante nos
festivais dionisíacos.
Já falando da pantomímica na esfera do cinismo, as atribuições são praticamente a
mesma, com exceção da maquiagem, que não registro de uso por parte dos cínicos,
vemos nos filósofos da escola uma inclinação grande em usar gestos e ações como forma
de comunicação. É possível especular e formamos uma hipótese que explique um pouco
a escolha por esse tipo de comunicação por parte dos Cínicos. Isso deriva desde o
período de Antístenes, que como um homem e filosofo notável, influenciou muito
Diógenes.
Antístenes desenvolveu duas proposições lógicas principais, a primeira aborda a
impossibilidade de contradição, o que remeterá a σκησις
14
na ética, e a segunda, que
nos interessa para tentar entender o uso da pantomímica no cinismo é: “[...] a definição é
impossível a menos que seja ostensiva [...]” (NAVIA, 1996, p. 64, tradução nossa)
15
. Ou
seja, é impossível fazer qualquer tipo de predicação sobre alguma coisa, não sendo
possível definir nada através de propriedades ou formas universais. Uma coisa pode
ser igual a si mesma, “[...] não pode ser incluída em uma categoria ou classe geral.”
(NAVIA, 1996, p. 66, tradução nossa)
16
Navia explicita: “Assim, a fim de ‘definir’ uma
coisa, devemos estar prontos para usar ‘o método do dedo’ e dizer: ‘Aqui está a coisa; é
esta-coisa-aqui-agora e não pode ser qualquer outra coisa’ (NAVIA, 1996, p. 66,
tradução nossa)
17
. Desse modo, Antístenes inaugurou, a tradição nominalista, mas um
nominalismo lógico bem radical, dentro do cinismo.
o que interessa para os cínicos é o “concreto e imediato”. Essa posição forte
de Antístenes explica muito bem o hiato entre os cínicos e Platão, que desde os tempos
de Antístenes já era criticado pela a teoria das Formas. Segundo Rodier (1957), como
consequência do nominalismo radical de Antístenes a filosofia cínica se tornou anti-
científica e anti-especulativa, o que conduzirá a escola também para os rumos do anti-
intelectualismo
18
. Desde Antístenes, a ética terá como única preocupação, não a teoria,
onde se produz definições e lança princípios universais. A ética cínica se ocupa com um
“modo de vida concreto e ostensivo”.
Citaremos um trecho que Navia ilustra as preocupações de Antístenes, mas que
podem ser facilmente transferidas e identificadas em Diógenes de Sínope:
Para ele, portanto, as principais questões filosóficas não são: o que posso saber
sobre o mundo? Ou qual é a estrutura do universo? Ou qual é a natureza da
realidade? Ou mesmo, o que significa a existência humana? Mas sim qual é o
melhor e mais racional caminho para eu me conduzir em um mundo que é cheio
de confusão e ofuscação? (NAVIA, 1996, p. 66-67, tradução nossa)
19
14
A noção de σκησις é central para o cinismo. Esse conceito foi importado do vocabulário dos esportes e
implementado na ética cínica. Assim, a σκησις no cinismo remete a exercícios que visam um
aprimoramento da virtude. Tais exercícios, como explica a tradição (DIÓGENES LAÉRCIO, Vidas, 6, 70),
podem ser divididos em físicos (σματος) e espirituais (ψυχις).
15
[No original] “[...] that definition is impossible unless it is ostensive [...]” (NAVIA, 1996, p. 64).
16
[No original] “[...] cannot be subsumed under a general category or class” (NAVIA, 1996, p. 66).
17
[No original] “Thus, in order to 'define' a thing, we must be ready to use 'the finger method' and say,
"Here is the thing; it is this-thing-here-now and cannot be anything else"(NAVIA, 1996, p. 66).
18
Por muito tempo se atribuiu ao cinismo uma postura anti-intelectual que culmina no primitivismo. Os
principais porta vozes dessa posição são Arthur Lovejoy e George Boas (1997). No entanto, surgiram
também correntes de interpretação alternativa. Jean-Marie Meilland (1983) é um dos que aproxima o anti-
intelectualismo cínico ao materialismo da escola e seu caráter extremamente prático.
19
[No original] “For him, accordingly, the key philosophical questions are not what is it that I can know
about the world? Or what is the structure of the universe? or What is the nature of reality? Or even what
Diógenes estava extremamente alinhado com esses propósitos inaugurados por
Antístenes. Pode-se dizer que ele até acentuou alguns dos traços legados pelo filósofo
socrático, como por exemplo, o tópico do anti-intelecualismo e da definição ostensiva,
que o conduziram, segundo nossa hipótese, para a retórica pantomímica.
A pantomímica no cinismo também faz uso de um vestuário bem típico, ou um
figurino, se quisermos usar o léxico das artes cênicas. Tal figurino que também pode ter
sido inaugurado por Antístenes, como relata Diócles de Magnésia por meio de Diógenes
Laércio é composto por (DIÓGENES LAÉRCIO, Vidas, 6, 13): “um manto, um cajado e
uma sacola.” Em outra oportunidade, Navia descreve com maior grandeza de detalhes o
“figurino” dos cínicos, falando sobre o bastão, inspirado em Hércules, da sacola, onde ele
carregava praticamente todas as suas posses, dos pés descalços, e dos cabelos longos
mal cortados (NAVIA, 1996, p. 26).
Além disso, podemos observar também em uma das cartas apócrifas de
Diógenes
20
ele narrando seu encontro com Antístenes e ele lhe dando os acessórios
necessários para o estilo de vida cínica:
Depois que escolhi este caminho, ele tirou meu manto e minha túnica, me cobriu
com um casaco velho e esfarrapado, e pendurou uma sacola no meu ombro,
colocando nela pão, bebida, um copo e uma tigela. Ele prendeu um frasco de
óleo e um raspador por fora, e também me deu um bastão. Fornecido com este
equipamento, perguntei-lhe o porquê do casaco velho em mim. Ele explicou:
Para que possas treiná-lo em tua formação em ambas as eventualidades: o
calor ardente do verão e o frio do inverno.
O que? -, eu disse. Não é apenas para uma das duas coisas?
De jeito nenhum - ele respondeu. Isso traz alívio durante o verão, mas no
inverno provoca mais sofrimento corporal do que uma pessoa pode suportar.
Mas por que pendurastes a sacola em mim?
Para que possas levar tua casa contigo em todos os lugares - explicou.
E o copo e a tigela, por que os jogaste?
que tens que beber e comer - ele disse -, use algum outro tempero se tu não
tens mostarda.
O frasco de óleo e o raspador, por que pendurastes ao lado?
Um é útil para o trabalho duro - disse - e o outro para óleo e sujeira.
Enquanto ao bastão, pra que serve? - perguntei.
Para segurança - respondeu.
Como usar?
Da mesma maneira que os deuses usam, contra os poetas. (MALHERBE,
2006, p. 131, tradução nossa)
21
does human existence mean?; but rather What is the best and most rational way for me to conduct myself
in a world that is filled with confusion and obfuscation?” (NAVIA, 1996, p. 66-67).
20
Existem 51 cartas apócrifas que são atribuídas ao filosofo Diógenes de Sínope. Nós sabemos que elas
são apócrifas através de vários estudos de especialistas como Boissonade (1818), Capelle (1896) e Marcks
(1883). As cartas pertencem a vários autores diferentes e a sua datação várias do século II a.C. até o ano de
19 d.C., sendo incompatível com o tempo em que Diógenes viveu. Uma das principais hipóteses sobre essas
cartas é que elas constituem um corpo literário com fins de fazer publicidade para o cinismo de Diógenes.
21
[No original] “And after I chose this road, he took of my mantle and tunic, put a double, coarse cloak
around me, and hung a wallet from my shoulder, putting bread, drink, a cup, and a bowl into it. He attached
Nessa oportunidade, segundo a carta narra, Diógenes ao encontrar com
Antístenes teria que escolher uma das opções: subir para a acrópole com um caminho
longo, mas suave, ou um breve, mas íngreme e áspero. A escolha, funcionava como uma
metáfora para saber se as pessoas que se candidatavam estavam prontas para seguir a
vida cínica até a felicidade, Diógenes escolheu, naturalmente, o caminho árduo e assim
Antístenes teria o equipado.
Não devemos nos deixar enganar por essa fama que o cinismo tem por sua
inclinação a pantomímica. Segundo o levantamento que fizemos das 226 χρεαι contadas
por Diógenes Laércio, apenas tímidas 24 tem teor exclusivamente pantomímico. Se
considerarmos as χρεαι híbridas, que falaremos mais adiante, dado que elas também
possuem o teor pantomímico, mas seguido ou precedido pela fala, o número de
comunicações gestuais sobre de 24 para 58. Um número ainda bem discreto, afinal, os
cínicos passaram a ser muito conhecidos justamente por esses gestos, na maioria das
vezes eram chocantes. Inclusive, acreditamos que pelos gestos serem extremamente
extravagantes criou-se uma falsa aparência no imaginário coletivo da retórica cínica
girar muito em torno da pantomímica, foi reforçado pelas diversas aparições de
Diógenes em obras literárias, infantis, contos e tragédias.
A despeito do número diminuto de χρεαι pantomímicas reconhecemos a
importância e o caráter central que esse tipo de linguagem tem para o cinismo. Afinal,
escolher a ação em detrimento da fala em diversas ocasiões diz muito sobre os princípios
da escola filosófica, do filósofo e do tipo de reação que eles desejam despertar em seus
interlocutores. Além do mais, a escolha do público geral em dar maior ênfase a essas
histórias, reproduzindo-as em larga escala, demonstram também como os cínicos,
sobretudo Diógenes de Sínope, foram assertivos em praticar esse uso da linguagem.
an oil flask and a scraper on the outside of it, and gave me a staff too. Furnished with this equipment, I
asked him why he put a double, coarse cloak on me. He explained, “So that I might assist you in your
training for both eventualities: the burning heat of summer and the cold of winter.”
“What?,” I said. “Did not the single one do this?”
“Not at all,” he replied. “It does bring relief during the summer, but in the winter it causes more bodily
hardship than a person can put up with.”
“But why did you put the wallet around me?”
“So that you might carry your house with you everywhere,” he explained.
“And the cup and bowl, why did you throw them in?”
“Since you have to drink and use an appetizer,” he said, “some other appetizer if you don’t have mustard.”
“The oil flask and scraper why did you hang them alongside?”
“The one is useful for hard work,” he said, “the other for oil and dirt.”
“The staff, what is that for?” I asked.
“For security,” he answered.
“How’s that?”
“For what the gods use it, against the poets.”” (MALHERBE, 2006, p. 131).
Desse modo, podemos concluir que a impressão que temos de que as χρεαι
pantomímicas compõe a maior parte do repertório cínico parte principalmente dos
interlocutores e estudiosos ao darem maior peso para esse tipo de comunicação, e
praticamente canonizarem este modo discursivo como o grande mote de transmissão da
escola cínica.
Depois de tanto palavrório, vamos finalmente ver alguns exemplos de χρεαι
pantomímicas do cinismo de Diógenes. Um dos mais famosos relatos sobre o Cão
envolvendo apenas gestos é quando Diógenes Laércio informa que “no verão ele rolava
sobre a areia quente, enquanto no inverno abraçava as estátuas cobertas de neve [...]”, e
no final dando a explicação para tais ações, “[...] querendo por todos os meios
disciplinar-se completamente [...]” (DIÓGENES LAÉRCIO, Vidas, 6, 23). Outro episódio
muito famoso, seguindo a mesma linha do primeiro, onde Diógenes, praticando a
σκησις
22
, almejava acostumar-se com as dificuldades foi quando o filósofo “[...]
caminhava sobre a neve de pés descalços [...]” (DIÓGENES LAÉRCIO, Vidas, 6, 34).
Também vemos nas χρεαι pantomímicas a expressão de alguns fundamentos do cinismo
clássico, como quando Diógenes “levantou-se e começou a caminhar” a fim de responder
a alguém que afirmou que o movimento não existia (DIÓGENES LAÉRCIO, Vidas, 6, 39),
expressando assim o contraste cru da lógica abstrata que possibilita o desenvolvimento
desse tipo de teoria, com a legitimidade do concreto, que permite lhe responder um
sofisticado argumento apenas com suas duas pernas. Por fim, não podemos nos
esquecer de um dos episódios mais notáveis de Diógenes, quando ele ratificou seu
apelido de Cão: “Durante um banquete algumas pessoas lançaram lhe ossos como a um
cão; levantando-se, o filósofo urinou sobre os ossos, como faria um cão.” (DIÓGENES
LAÉRCIO, Vidas, 6, 46)
Χρεία híbrida
Agora falaremos um pouco das χρεαι híbridas. A própria palavra sugere o sentido
que tentamos empregar: vem do latim hybrida”, uma mestiçagem, mistura de raças
(romanos com asiáticos, por exemplo) ou designando filhos de pais diferentes (bastardo)
(TORRINHA, 1948, p. 387). Usando a palavra híbrida no sentido vocabular, no caso de
nosso texto, o hibridismo das χρεαι de Diógenes está na intersecção da comunicação
verbal e da comunicação pantomímica, explicitadas nas páginas anteriores.
22
Cf. nota 15.
Em termos de estrutura e conteúdo, as χρεαι híbridas são tão ricas quanto as
duas primeiras categorias. Ela é composta pela estrutura simples de gestual-
verbalização. Ou seja, vemos Diógenes fazer algo e em seguida verbalizar de alguma
forma, de maneira a, ou justificar a ação, ou acentuar a própria ação, ou até mesmo dar
um significado a ação. Muitas vezes, justamente por Diógenes pairar sobre os contextos
e as situações, é difícil determinar se ele está justificando, acentuando, ou significando
algo em suas frases, por conta da ambiguidade de suas palavras, que produz em larga
escala um efeito cômico.
Para ilustrar as χρεαι híbridas, podemos usar o exemplo da χρεία que Diógenes
se masturba no mercado. Depois de se pôr aos serviços de Afrodite, Diógenes diz:
Gostaria que se, esfregando também o estômago, a fome passasse! (DIÓGENES
LAÉRCIO, Vidas ,6, 46)
23
. Podemos ver essa frase como uma maneira de justificar a ação:
ele estava excitado, por isso se masturbou. Também podemos vê-la como acentuação: ao
dizer como se masturbou, isto é, se esfregando, Diógenes não faz, mas
prosseguimento à sua ação explicando como fez. Isso sem mencionarmos as lições que a
própria ação isolada da frase seguinte nos ensina. Ao pensarmos no contexto,
desconsiderando todos os elementos que não são informados, como a data da χρεία, e
elegermos apenas um aspecto do contexto, informado pelo próprio compilador Diógenes
Laércio, saberemos que o Cão foi bastante ousado. Ora, Diógenes se masturbou na praça
do mercado, também chamada ágora. Sem entrar na história das tradições gregas,
sabendo apenas a localização espacial da praça naquela Atenas, é possível perceber o
tamanho da afronta: a ágora era um espaço público localizado nas regiões mais baixas de
Atenas, de onde era possível observar os grandes monumentos políticos, como a
Acrópole
24
, o Aerópago
25
e a Pnyx
26
.
O que isso significa? Que Diógenes estava a vista não daqueles homens que
frequentavam o mercado, mas se masturbou para toda a camada política e aristocrática
de Atenas. Assim sendo, podemos dizer que apenas com a ação, mesmo escatológica
Diógenes já poderia ter dito muita coisa, sobretudo em relação a questões referentes aos
23
Tradução de Mário da Gama Kury levemente modificada.
24
Construída no ponto mais alto da cidade, que servia anteriormente para observar a aproximação de
possíveis invasores, a Acrópole foi erguia por Péricles (c. 495-429 a.C.) por volta de 450 a.C.. De maneira
geral, podemos dizer que a Acrópole foi um conjunto de prédios blicos que reuniu 21 construções,
dentre templos e teatros.
25
Outro monumento localizado um pouco mais acima da cidade, em um local de mais destaque: o
Areópago vem do grego antigo “Colina de Ares”, deus da guerra. No Areópago o conselho grego ateniense
deliberava em grandes reuniões.
26
Pnyx, estabelecida em uma alta colina foi outro ponto político importante da antiga Atenas. Havia uma
assembleia chamada de Eclésia (constituída pelos homens livres de Atenas) que se encontravam ali para
dar seguimento ao processo democrático ateniense.
costumes gregos, cristalizados pela elite para qual ele se expõe. Para finalizar a pequena
análise que fizemos dessa χρεία híbrida, essas poucas palavras que deram forma apenas
a uma de várias outras tantas interpretações que apenas essa χρεία pode suscitar, como
a questão da esfera público-privada e o apelo à natureza, permanentemente presentes
em Diógenes de Sínope.
Para continuar a exemplificar, também podemos citar alguns famosos episódios
de Diógenes, como quando ele carregou a lanterna acesa durante o dia e afirmou
procurar um homem (DIÓGENES LAÉRCIO, Vidas, 6, 41), ou quando explicou porque
pedia esmolas para uma estátua: “Estou praticando fracassar” (DIÓGENES LAÉRCIO,
Vidas, 6, 49)
27
, ou até mesmo quando levou uma galinha depenada para Platão afirmando
que aquilo era o homem, segundo a sua definição (de bípede implume) (DIÓGENES
LAÉRCIO, Vidas, 6, 40).
Em resumo, em uma χρεία híbrida, mesmo muito curta, podemos encontrar vários
elementos extremamente relevantes, tanto para a filosofia cínica, quanto para tentarmos
entender a persona bem humorada e excêntrica que foi Diógenes de Sínope, e também
conseguimos encontrar contribuições para o estudo do humor e tudo isso emerge em
apenas uma e mesma coisa, na retórica do riso, praticada por Diógenes.
Conclusão
Nosso pequeno trabalho visa dialogar com duas questões principais. A primeira,
apresentada ainda na introdução do texto refere a uma filosofia com aspectos cômicos.
O cinismo dissipa a ideia de que o filósofo é sempre a figura séria, presa em
pensamentos transcendentais. A segunda questão refere-se diretamente aos desafios
impostos pelas anedotas para os pesquisadores que desejam aprofundar tanto na teoria
quanto na retórica nica. A maneira a qual as χρεαι foram compiladas não oferece
grande sistematização, além de serem, segundo sua própria definição, histórias muito
curtas, dificultando uma contextualização mais ampla e necessária para a interpretação.
Para tanto, trazemos uma estruturação referente ao modo como podemos
entender as ações de Diógenes de Sínope nas χρεαι como ele usa o corpo, como se
porta ao exortar moralmente um interlocutor, suas curtas asserções verbais.
Acreditamos que entender a disposição e a maneira a qual o filósofo se comunica
contribui bastante para decifrarmos outros elementos em investigações posteriores, tais
27
Tradução de Mário da Gama Kury modificada.
como para quem Diógenes fala, porque ele fala com aquele público e quais são os usos
de suas estratégias retóricas.
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