FACES DA HISTÓRIA
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Recebido em: 27 de julho de 2014
Aprovado em: 14 de novembro de 2014.
Interações entre historiograa e losoa grega: a noção de kairós em
Isócrates como alternativa ao lósofo do mito da caverna platônico
Interactions between historiography and greek philosophy: the notion
of kairós in Isocrates as alternative to the myth of platonic´s cave
philosopher
QUIRIM, Diogo
1
Resumo: No texto Nem céu nem inferno, Bruno Latour critica as relações
entre intelectualidade e sociedade por meio do mito da caverna platônico. No
século IV a.C., Isócrates foi o maior rival da Academia de Platão, propondo
uma losoa que não precisaria afastar-se da multidão e da temporalidade
para produzir um conhecimento legítimo. Baseado na noção de kairós, que
indica “oportunidade”, “ocasião” ou “circunstância particular”, sugiro que
Isócrates seja uma alternativa interessante para uma historiograa que não
busque fugir da particularidade de qualquer relação entre presente e passado,
instaurando um diálogo entre tradição e política contemporânea, assim como
entre a historiograa de Dominick LaCapra e Carlo Ginzburg.
Palavras-chave: Isócrates. Bruno Latour. Kairós. Carlo Ginzburg. Dominick
LaCapra. Filosoa grega.
Abstract: In the paper Neither heaven nor hell, Bruno Latour criticizes the
relations between intellectuals and society through the platonic myth of cave.
In the fourth century B.C., Isocrates was the biggest rival of Plato’s Academy,
proposing a philosophy that would not need to withdraw from the crowd
and temporality to produce a legitimate knowledge. Based on the notion of
kairós, which indicates “opportunity”, “occasion” or “particular circumstance”,
I suggest that Isocrates be an interesting alternative to a historiography which
does not aim to escape the particularity of any relationship between past and
present, establishing a dialogue among tradition and contemporary politics,
even as Dominick LaCapra and Carlo Ginzburg´s historiography.
Keywords: Isocrates. Bruno Latour. Kairós. Carlo Ginzburg. Dominick
LaCapra. Greek philosophy.
Um texto de Bruno Latour, escrito especialmente para o jornal Folha
de S.Paulo e publicado na edição de 28 de março de 1999, intitulado Nem céu
nem inferno, arma que séculos um mito fundador organiza as relações
entre o mundo ocidental e a política (LATOUR, 1999). É o mito da caverna,
presente na República, de Platão (2001)
2
. Contando o mito, Latour traça uma
analogia entre a caverna e o cinema moderno, segundo a qual os “clientes”
1 Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul – Instituto de Filosoa e Ciências Humanas – Av. Bento Gon-
çalves, 9500, Prédio 43311, CEP: 91501-970, Porto Alegre, RS. Bolsista CAPES. E-mail:
diogoquirim@gmail.com
2 O “mito” ou “alegoria da caverna” é encontrado no Livro VII da República, de Platão, entre
os trechos 514a-518b.
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estariam aprisionados às aparências, acorrentados, sem a possibilidade de
desviar delas os seus olhos, assistindo à projeção de formas tomadas por
realidade. O lósofo é quem rompe os laços dessas aparências e subtrai-se à
contemplação da “câmara obscura”, encontrando o local técnico da verdadeira
origem da projeção. Nesse ato, passa da aparência à realidade e compreende
que os seus antigos companheiros de cativeiro permanecerão para sempre
prisioneiros das imagens.
Latour pondera que o mito foi bastante criticado pelo idealismo,
por sua conança ilimitada na busca pelas ideias, tendo-se ignorado outro
aspecto importante: o desprezo às aparências por ele implicado. Respondeu-
se ao mito com um materialismo saudável, segundo o autor; contra o apego
às essências, pretendeu-se o contentamento com as aparências, à moda
nietzschiana. Contudo, se criticarmos o mito apenas por seu idealismo, por uma
transcendência inútil, age-se como se Platão tivesse descrito com propriedade
esse “mundo inferior”. Descrição que Latour sustenta ser duplamente
inverossímil.
Em primeiro lugar, existiria, no mito, uma inverossimilhança
sociológica. Não se pode imaginar que o mundo social seja descrito com
indivíduos isolados, incapazes de se perceberem mutuamente, de tocar-se,
falar-se, deslocar-se, acorrentados e incapazes de ver por si mesmos aquilo
de que são feitas as aparências projetadas. Esse grupo de seres humanos, na
dada situação, interagiria tocando-se, ferindo-se, discutindo entre si e apalparia
a tela buscando compreender o ardil. Se acontecesse de acomodarem-se
novamente para desfrutar o lme, seria por vontade própria, para aproveitar
o jogo das aparências, e não porque ignoram o mundo exterior além da tela.
Toda a beleza do mito da caverna, arma Latour, provém da
tormentosa fratura em relação às aparências, que depende inteira e
unicamente da inverossimilhança sociológica em que é preciso manter esse
povo. Sem uma concepção sociológica da vida em comunidade inepta não
existe um contraste possível entre o lósofo santo e profeta, por um lado,
e o homem comum, do outro. O platonismo só funciona se mergulharmos
as pessoas comuns numa abjeção sem par. E, para que isso acontecesse,
o próprio Platão teria encarcerado o povo na caverna, para que pudesse
posteriormente libertá-lo. Platão não teria pecado, no mito, por idealismo,
mas por sociologismo ou “abjetismo”.
Ao seguir a crítica, Latour defende que a maioria dos sociólogos aderiu
ao mito nessa visão inverossímil do mundo social. Tentar entender os porquês
disso leva a outra operação: a inverossimilhança que explica a potência do
mito. Se o lósofo ascende ao céu das ideias, o faz só e despojado de todo e
qualquer elemento do mundo social cruel e corrompido e, se chega à realidade
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Interações entre historiograa e losoa grega: a noção de kairós em Isócrates como
alternativa ao lósofo do mito da caverna platônico
plena, o faz por um abandono de todos os seus antigos laços. O lósofo deve
estar desligado do povo, virgem de toda a contaminação pelo social.
A epistemologia não tem sentido sem que pensemos também uma
sociologia. Para Latour, a ideia inverossímil de que se pode chegar a uma
realidade por meio de uma espécie de conversão que nos arrancasse do social,
só seria possível se desse tivéssemos uma ideia infernal. Na verdade, no mito
ocorrem duas conversões: a primeira, quando o lósofo ascende ao céu das
ideias, despojando-se de todas as marcas do social; e, a segunda, quando
retorna à caverna, transformado em cientista, para pôr ordem no inferno social
graças aos conhecimentos obtidos na clareza do sol. Apenas ele dispõe das
leis naturais que não vêm contaminadas por qualquer marca da sociedade.
Sem o absurdo da sociologia, ainda segundo Latour, não é permitido nenhum
sonho de grandeza da epistemologia. A descrição de um cientista em contato
com uma realidade inteira e plena é tão pouco verossímil quanto à imagem
de um mundo social infernal dos habitantes da caverna. Sem instrumentos,
colegas, sem o próprio corpo, mediações e realidades intermediárias, nenhum
cientista poderia ascender a qualquer realidade vericada e durável. Por m, a
ideia bizarra do social dada pelo mito platônico leva a crer que seria necessário
um desligamento dele para que se possa pensar verdadeiramente.
Tendo em mente as considerações de Latour acerca das implicações
do platonismo, baseando-se no mito da caverna, para uma epistemologia que
busca afastar-se das marcas do social, neste artigo, guio a minha investigação
por duas analogias norteadoras: 1) em primeiro lugar, traçarei um diálogo entre
as críticas proferidas por Carlo Ginzburg em Relações de força: história, retórica,
prova aos historiadores que defendem, segundo ele, uma história narrativista
e anti-referencial e a história dialógica defendida por Dominick LaCapra, a
qual nega que “objetivismo” e “relativismo” sejam opções válidas e contrárias,
propondo que a historiograa considere as suas interpretações como um
ato político instaurador de um diálogo entre tradição e contemporaneidade;
2) em segundo lugar, como alternativa ao lósofo do mito apresentado pela
leitura de Latour, sugiro uma breve análise da noção de kairós na losoa
de Isócrates que, no meu ponto de vista, implica em uma valorização da
legitimidade do conhecimento que não abdique de seus aspectos contextuais
e circunstanciais, sem necessitar como prerrogativa de uma fuga do tempo
para se pensar verdadeiramente. Desse modo, por m, defendo que o modelo
de historiograa como reconstrução do passado, sustentado por Ginzburg,
pode estar perigosamente próximo do alvo das críticas de Latour e, por outro
lado, que o diálogo crítico entre presente e passado sugerido por LaCapra
encontra, na losoa isocrática, um correlativo interessante dentre os antigos.
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Considerando que Latour faz uso do mito da caverna para argumentar
sobre uma ideia de cientista e a interação entre conhecimento e sociedade, cabe
lembrar que voltar-nos para a tradição criticamente é um ato político e útil, e as
tendências nela predominantes podem ser reavaliadas e reinterpretadas, pois,
na própria história da solidicação dessa tradição, outras tendências e pontos
de vista certamente foram sufocados ou marginalizados
3
. Se o mito interferiu
em um modo de se pensar o papel do intelectual, ou ao menos é elucidativo
na interpretação desse modo, é possível que haja outras perspectivas também
interessantes de ser consideradas. Platão não se expressava sozinho no
século IV a.C.. Dialogava com antecessores e contemporâneos, contrapunha
e era contraposto. Neste texto, primordialmente, dedico-me a uma questão
bastante especíca: por meio da noção de kairós, que indica “oportunidade”,
“ocasião” ou “circunstância particular”, sugiro que Isócrates seja uma alternativa
interessante para uma historiograa que não busque fugir da particularidade
de qualquer relação entre presente e passado, instaurando um diálogo entre
a tradição losóca grega e historiograa contemporânea. Não se resumindo
a questionar o passado, mas sendo por ele indagado e sugerido sobre nossa
própria tarefa investigativa e utilidade política, podemos nos deparar, num texto
escrito para um jornal de grande circulação, com um exemplo de que o estudo
dos antigos ainda tem importância signicativa em nossa cultura.
Se em Nem céu nem inferno é Platão — e o platonismo — tido
como referência para pensarmos as relações entre intelectualidade, política e
sociedade, neste estudo, o autor a quem nos dedicamos é seu contemporâneo,
concidadão e, em diversos pontos, adversário de opiniões. No mito da caverna,
deve-se fugir do mundo social para a busca de uma verdade durável, todavia,
em Isócrates, existe esse mundo. Armando uma impossibilidade da
natureza humana em adquirir um conhecimento estável e denitivo, (epistḗmē)
nos assuntos relacionados à política, e condenando, como assuntos menores,
aqueles que não têm utilidade para a comunidade, valoriza uma forma de saber
um pouco mais comedida, mas sem decair para um relativismo extremado.
Quando me concentro, aqui, no estudo do kairós, é porque me parece
importante que, com a alta valorização desse termo, que indica circunstância,
ocasião, oportunidade, contexto, Isócrates defende um conhecimento que
não é maculado pelo seu local, temporalidade ou particularidade de origem.
Pelo contrário, é justamente por cada ação e expressão dar-se em um caso
particular e único que delas pode haver legitimidade.
3 Sobre as dimensões políticas do ato da interpretação e o processo crítico que relaciona
passado, presente e futuro, ler: LACAPRA, Dominick. Repensar la historia intelectual y
leer textos. In: PALTÍ, Elias José. Giro linguístico e história intelectual. Buenos Aires: Univ.
Nacional de Quilmes, 1998. p. 283-284.
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Interações entre historiograa e losoa grega: a noção de kairós em Isócrates como
alternativa ao lósofo do mito da caverna platônico
No mesmo ano de 1999, em que Nem céu nem inferno circulou na
Folha de S.Paulo, Latour publicou um livro no qual trata mais amplamente
do mito da caverna, intitulado Políticas da natureza: como fazer ciência na
democracia. Nele, aprofunda-se com mais atenção na ideia da dupla ruptura
pela qual o lósofo passaria a ascensão para o céu das ideias e o retorno
para pôr ordem ao caos social (LATOUR, 2004, p. 27-39). Para Latour, não
haveria continuidade entre o mundo da caverna e o mundo das verdades a ele
exteriores, conforme descritos no mito, pois essas verdades não são feitas pela
mão do homem. O conhecimento é possível afastando-se da agitação vulgar
da caverna obscura, repleta de sentimentos subjetivos. Após essa primeira
ruptura, de libertar-se dos grilhões, da confusão e das aparências, a segunda
se realiza no regresso à caverna quando, munido das leis não-humanas, o
intelectual retorna para pôr ordem ao caos, para cessar a “logorréia humana”
de prisioneiros que jamais saberão como encerrar as suas disputas (LATOUR,
2004, p. 27-28). Em Contra os sostas, Isócrates claramente se afasta de
uma noção tão tenebrosa do mundo social, quando arma que aqueles que
seguem as opiniões (dóxai) conseguem concordar entre si e obter muito mais
êxito do que os que reivindicam possuir o conhecimento (epistḗmē), pois
esses, apesar de ngir conhecer o futuro, são incapazes de falar ou aconselhar
sobre as questões do presente (ISÓCRATES, 1929, p. 7-8). Ao dirigir à sua
atenção sobre as dóxai, Isócrates não está defendendo uma relatividade da
verdade, pelo contrário, nega uma verdade que não seja humana. Se Latour
alerta que ao lósofo do mito é dada a missão de pacicação da vida pública
por meio da “legislação das leis cientícas”, devido à “falta de transcendência”
dos habitantes da caverna (LATOUR, 2004, p. 30), em Isócrates existe uma
espécie de insuciência epistêmica. Não é porque os humanos não possuem,
por natureza, a capacidade de prever o futuro e justamente por isso
constantemente debatem e discordam sobre o que fazer (ISÓCRATES, 1929,
p. 02) que alguma ciência é impossível; apenas é bastante cuidadoso nos
limites dessa ciência.
Este trecho de Políticas da natureza é de muita clareza para
entendermos o que se quer dizer por um mundo de “não-humanos”, para além
da caverna:
Por mais vastos que sejam os laboratórios, por mais que os
pesquisadores estejam ligados aos industriais, por mais numerosos
que sejam os técnicos, por mais ativos que sejam os instrumentos
para transformar os dados, por mais construtivas que sejam as
teorias, por mais articiais que sejam os modelos, nada adianta,
vamos declarar sem cerimônia que a Ciência não pode sobreviver
senão com condição de distinguir absolutamente, e não relativamente,
as coisas “tais como elas são”, da “representação que os humanos
fazem delas”. Sem esta divisão entre “questões ontológicas” e
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“questões epistemológicas”, é o conjunto da vida moral e social que
se encontrará ameaçada. Por que? Porque, sem ela, não haverá
mais reserva indiscutível para por m ao vozerio incessante do
obscurantismo e da ignorância (LATOUR, 2004, p. 29).
Essa divisão entre ontologia e epistemologia, entre as “coisas tais
como elas são” e as “representações que os humanos fazem delas”, serve como
uma prerrogativa para a pacicação do mundo social realizada pelo lósofo. E,
se estamos por apresentar os porquês da grande diferença do pensamento
de Isócrates e a trajetória do intelectual do mito, na Antídosis, Isócrates faz
uma ressalva aos estudos daqueles que ele chama de “antigos sostas”,
que especulam do que as “coisas” (tṓn óntōn) são compostas, elencando
Empédocles, Íon, Alcmeon, Parmênides, Melisso e Górgias (ISÓCRATES,
1929, p. 267-269). A inutilidade desses estudos para Isócrates nos indica que
esse ambiente externo à caverna composto das “coisas tais como são”, não-
humanas — não seria passível de investigação, ou nem mesmo cogitado. Na
mesma Antídosis, Isócrates arma que o lógos e a capacidade de persuadirmo-
nos uns aos outros é a causa do nosso desenvolvimento civilizatório e de
nossa complexidade cultural. Graças a isso escapamos da vida dos animais
e nos organizamos em cidades, criamos leis e as regras do justo, injusto, belo
e vulgar (ISÓCRATES, 1929, p. 253-255). Portanto, longe do desprezo de um
mundo político semelhante a uma caverna ruidosa de “logorreia humana”, é a
própria confusão desses discursos opostos e a capacidade de persuasão que
nos engrandece e constitui enquanto sociedade. E, se parecer que tudo queda
reduzido ao convencimento, no Contra os sostas Isócrates adverte aqueles
que exageram as suas capacidades enquanto educadores, gabando-se de
persuadir a tudo e a todos sobre qualquer assunto sem se preocupar com a
verdade (ISÓCRATES, 1929, p. 09). No entanto, certamente o conhecimento
na philosophía isocrática jamais passaria por algo não-humano e separado do
mundo político.
A negação de um saber cientíco que pressupõe essa dupla ruptura
pela qual atravessa o sábio que se liberta da Caverna e retorna para por
ordem no mundo social, arma Latour, costuma escandalizar os intelectuais
defensores de uma ciência que é capaz de ascender a realidades exteriores
e compreendê-las. Em resposta a quem põe em questão o mito ou aponta
para a facilidade do desligamento do mundo social para alcançar realidades
exteriores, pesam críticas de “relativistas”, “sostas” ou “imorais”:
Se, polidamente, assinalamos que a facilidade com a qual os
sábios passam do mundo social àquele das realidades exteriores,
a comodidade com que fazem experiência por esta importação-
exportação de leis cientícas, a rapidez com a qual eles convertem
o humano e o objetivo provam bem que não há ruptura entre os dois
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alternativa ao lósofo do mito da caverna platônico
mundos, e que se trata muito mais de um tecido sem costura, seremos
acusados de relativismo; dir-se-á que tentamos dar à Ciência uma
“explicação social”; denunciarão em nós molestas tendências ao
imoralismo; talvez nos perguntarão publicamente se cremos ou não
na realidade do mundo exterior ou se estamos prestes a nos lançar
do décimo quinto andar de um prédio, pois estimamos que as leis da
gravidade, elas também, sejam “construídas socialmente”! (LATOUR,
2004, p. 30).
E também:
A dupla ruptura da Caverna não se funda em nenhuma pesquisa
empírica, sobre algum fato de observação, ela é até contrária
ao senso comum, à prática cotidiana de todos os sábios; e se ela
jamais existiu, vinte e cinco séculos de ciências, de laboratórios, e
de instituições de sábios, desde muito a apagaram. Nada adianta, a
polícia epistemológica anulará sempre este conhecimento ordinário,
criando esta dupla ruptura entre os elementos que tudo religa, e
peneirando aqueles que a põem em dúvida como relativistas, sostas
e imorais, que desejam arruinar todas as nossas oportunidades de
aceder à realidade exterior e, assim, de reformar, por efeito reexo, a
sociedade (LATOUR, 2004, p. 31-32).
Na própria historiograa, as acusações de relativismo ou sofística
estão presentes contra quem atenta para as questões retóricas presentes
nas investigações históricas. Em Relações de força: história, retórica, prova,
cuja versão italiana foi publicada no ano 2000,
4
Carlo Ginzburg se insurge
contra o “desao cético” que reduziria a história à sua dimensão narrativa.
Além disso, essa redução seria consequência de uma concepção de retórica
contraposta à prova, herdeira do pensamento nietzschiano e que resultaria
em um problema político e cultural bastante grave: a defesa do direito do mais
forte na convivência e no choque entre culturas, a legitimação da dominação
do mais poderoso ao impor seus preceitos culturais perante os demais
(GINZBURG, 2002, p. 14-15). O uso de uma série de acusações elencadas
por Latour faz-se bastante notável: às ditas tendências narrativistas, são
chamadas de “teses céticas” e “desao cético” (GINZBURG, 2002, p. 13-
14). Sobre Acerca da verdade e da mentira, de Nietzsche para Ginzburg
a origem da dissociação entre retórica e prova —, arma defender uma
“retórica radicalmente anti-referencial” (GINZBURG, 2002, p. 34). Sobre
o nexo entre conhecimento e poder, busca uma herança dos sostas em
Nietzsche (GINZBURG, 2002, p. 42-43). Associa a redução da história à sua
4 No entanto, alguns textos presentes no livro já circulavam nos anos 90, datando de 1993
o capítulo sobre Lorenzo Valla, de 1995 o capítulo sobre Aristóteles e de 1994 o terceiro
capítulo, intitulado “As vozes do outro: uma revolta indígena nas ilhas Marianas”. Estes tex-
tos são resultado das conferências realizadas por Ginzburg em homenagem a Menahem
Stern, posteriormente compiladas e acrescidas de uma introdução e um quarto capítulo, e
publicados sob o título de “History, rhetoric, proof: the Menahem Stern Jerusalem lectures”,
em 1999. A versão italiana aqui referida, por sua vez, adicionou-se ainda um capítulo sobre
Warburg e Picasso (OGAWA, 2010, p. 7).
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dimensão retórica a um “cavalo de batalha” de uma polêmica anti-positivista
com implicações mais ou menos céticas, propondo uma historiograa que se
sustenta unicamente no convencimento, não se diferindo do romance, que
constrói um mundo textual autônomo sem nenhuma relação demonstrável
com uma realidade extratextual à qual se refere (GINZBURG, 2002, p. 47-
48), entre incontáveis ataques semelhantes que seria exaustivo enumerar.
Não pretendo traçar uma analogia simplista entre a historiograa
de Ginzburg e os intelectuais criticados no texto de Bruno Latour; no
entanto, o vocabulário e o teor das condenações em Relações de força são,
perceptivelmente, semelhantes. Ao se referir a historiadores que assumem
uma ideia de retórica contraposta à prova e afeita apenas ao convencimento,
Ginzburg tem em mente os questionamentos feitos à história por pensadores
como Hayden White e Roland Barthes. Mesmo que me afaste dessas
abordagens que aproximam excessivamente a historiograa da literatura,
também julgo necessário alertar para os excessos de uma história que
se pretenda como reconstrução do passado
5
(GINZBURG, 2002, p. 57)
ou descobrimento da realidade total de uma sociedade, subtraindo-se da
reexão sobre as relações entre o presente da escrita do historiador e os
instrumentos por ele utilizados para estudar o passado:
Mas, ao avaliar as provas, os historiadores deveriam recordar que
todo o ponto de vista sobre a realidade, além de ser intrinsecamente
seletivo e parcial, depende das relações de força que condicionam,
por meio da possibilidade de acesso à documentação, a imagem total
que uma sociedade deixa de si. Para “escovar a história ao contrário”
[...], como Walter Benjamin exortava a fazer, é preciso aprender a
ler os testemunhos às avessas, contra as intenções de quem os
produziu. dessa maneira será possível levar em conta tanto as
relações de força quanto aquilo que é irredutível a elas (GINZBURG,
2002, p. 43).
Ainda:
A ideia de que as fontes, se dignas de fé, oferecem um acesso imediato
à realidade ou, pelo menos, a um aspecto da realidade, me parece
igualmente rudimentar. As fontes não são nem janelas escancaradas,
como acreditam os positivistas, nem muros que obstruem a visão,
como pensam os céticos: no máximo poderíamos compará-las a
espelhos deformantes. A análise da distorção especíca de qualquer
fonte implica já um elemento construtivo. Mas a construção, como
procuro mostrar nas páginas que se seguem, não é incompatível
com a prova; a projeção do desejo, sem o qual não pesquisa,
não é incompatível com os desmentidos inigidos pelo princípio de
5 Mais precisamente: “a história humana pode ser reconstruída com base em rastos, indí-
cios, semeia.”.
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realidade. O conhecimento (mesmo o conhecimento histórico) é
possível (GINZBURG, 2002, p. 44-45).
Nota-se que Ginzburg é relativamente prudente ao considerar
rudimentar a ideia de que as fontes oferecem um acesso imediato à realidade
ou a parte dela, todavia, ao comparar as fontes a “espelhos deformantes”,
mesmo que imprecisos, nos conferem a imagem de alguma realidade reetida.
Além disso, considerando essas mesmas fontes como pontos de vista parciais
e seletivos da realidade dos quais, dependendo da documentação, podemos
inferir a “imagem total” que uma sociedade deixa de si, parece inequívoco
armar que Ginzburg concebe como dever da historiograa a reconstrução do
passado, mesmo que não seja deduzindo-o das fontes como translucidamente
referenciais, mas assumindo uma ideia de realidade que pode subjazer as
fontes mesmo “contra as intenções de quem as produziu”, apreendendo as
relações de força que integram as “deformações dos espelhos” dessas fontes.
Ao criticar as por ele consideradas “teses céticas”, que reduzem a
historiograa à sua dimensão narrativa, Ginzburg parece superestimar esse
aspecto reconstrutivo do trabalho do historiador, subestimando a inuência do
presente na investigação e escrita histórica. Dominick LaCapra, em um texto
intitulado Rethinking Intellectual History and Reading Texts, publicado em 1980,
na revista History and theory,
6
adverte que tanto uma representação puramente
documental do passado, quanto uma busca “presentista” de libertação do “peso”
da história por meio da ccionalização e mitologização irrestritas são enganosas
(LACAPRA, 1998, p. 284). Para LaCapra, “objetivismo” e “relativismo” são
falsas opções (LACAPRA, 1985, p. 21), sem decair em uma extravagância
epistemológica, na qual as fontes poderiam fazer-nos ascender à realidade do
passado, nem em um ceticismo no qual a história não teria mais legitimidade
do que a cção, propõe uma história dialógica, em que a interpretação é
a voz do leitor histórico no diálogo com o passado, mas considerando que
esse passado (ou os textos) também possuem as suas próprias vozes
que resistem aos exageros de qualquer interpretação (LACAPRA, 1998, p.
269 e p. 285). Ginzburg, como vimos, arma que a projeção do desejo do
historiador — representação do momento presente — não é incompatível com
os desmentidos inigidos pelo princípio de realidade. Ora, em LaCapra, não
6 Não por acaso, a revista History and theory também era espaço de debates entre Hayden
White e Arnaldo Momigliano (OGAWA, 2010, p. 63). Carlo Ginzburg, em Relações de força,
demonstra clara simpatia pelas ideias de Momigliano, embora concordando mais com as
suas conclusões do que com a sua argumentação, ao armar que “assim como ele, tam-
bém eu sustento que encontrar a verdade é ainda o objetivo fundamental de quem quer
que se dedique à pesquisa, inclusive os historiadores.” (GINZBURG, 2002, p. 61). Por sua
vez, LaCapra manifesta concordância com a crítica de White à narrativa convencional e a
um enfoque estritamente documental na historiograa. Contudo, adverte também para as
tendências excessivamente “presentistas” e “construtivistas” que às vezes se apresentam
nas obras de White (LACAPRA, 1998, p. 242, nota 1).
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Interações entre historiograa e losoa grega: a noção de kairós em Isócrates como
alternativa ao lósofo do mito da caverna platônico
seria um princípio de realidade que desmentiria a projeção dos desejos do
historiador, mas os próprios textos. Sugere LaCapra que “um texto é uma rede
de resistências e um diálogo é um assunto bilateral. Um bom leitor é também
um ouvinte atento e paciente” (LACAPRA, 1998, p. 285). Existe aí uma grande
diferença. No ponto de vista de LaCapra, pensar em um princípio de realidade
seria, no mínimo, sobrevalorizar o aspecto documental dos textos:
Na realidade, o problema passa a ser o de repensar os conceitos de
“dentro” e “fora” [do texto] em relação aos processos de interação
entre a linguagem e o mundo. Um dos aspectos mais estimulantes dos
recentes estudos sobre a textualidade tem sido a investigação sobre
os motivos pelos quais os processos textuais não podem connar-se
dentro dos marcos do livro. O mesmo contexto ou “mundo real” é
“textualizado” de diversas maneiras, e, ainda, se alguém acredita que
o sentido da crítica é mudar o mundo e não simplesmente interpretá-lo,
o mesmo processo e os resultados da mudança colocam problemas
textuais. A vida social e individual podem ser vistas frutiferamente
segundo a analogia do texto, implicadas em processos textuais que
a princípio são mais complicados do que a imaginação histórica está
disposta a admitir. [...] Em termos mais gerais, a noção de textualidade
serve para fazer menos dogmático o conceito de realidade ao apontar
o fato de que alguém está “sempre já” envolto em problemas de uso
da linguagem na medida em que tenta obter uma perspectiva crítica
sobre eles, e coloca a questão tanto das possibilidades como dos
limites do signicado. Para o historiador, a reconstrução mesma de
um “contexto” ou uma “realidade” se produz sobre a base de restos
“textualizados” do passado. A posição do historiador não é única, pois
todas as denições da realidade estão comprometidas em processos
textuais (LACAPRA, 1998, p. 240-241)
7
.
Enquanto em Ginzburg os anseios subjetivos do pesquisador são
limitados pelos imperativos impostos por um princípio de realidade, LaCapra
defende que os próprios contextos ou abordagens de uma realidade são elas
mesmas textualizadas e, se algo serve como resistência a uma tendência
ccionalizante, não é a uma realidade exterior aos textos, senão os próprios
textos. Isso não indica que, em LaCapra, os textos sejam universos autônomos
a qualquer coisa que lhes sejam exteriores e que qualquer interpretação seja
válida, contudo, todo processo de leitura e interpretação de eventos externos
ao texto são entremeados por problemas do uso da linguagem. Ademais, pode-
se fazer uma analogia a esse princípio de realidade em LaCapra ao que ele
chama de hipostatização do contexto (LACAPRA, 1998, p. 252). Nunca temos
apenas um contexto e se elegemos apenas um como privilegiado, traçando
relações orgânicas e redutivas com as questões estudadas e interpretadas,
esquecemos que existem uma série de contextos interatuantes e complexos,
e que todos os contextos são também textualizados, sejam os presentes
nas fontes por nós utilizadas ou por nós construídos no processo de escrita.
7 Todas as traduções realizadas nas citações são de minha autoria e responsabilidade.
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FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº2, p. 32-48 jul.-dez., 2014.
Diogo Quirim
Portanto, buscar reconstruir a imagem total que uma sociedade deixou de si
mesma, entender as fontes como espelhos deformantes da realidade ou crer
que um princípio de realidade é que limita as motivações da subjetividade do
historiador, em LaCapra, seria transformar um contexto em pano de fundo,
instrumento explicativo ou noção de realidade, tomando um processo construído
textualmente por materialidade a qual podemos nos referir e da qual podemos
inferir relações causais, em detrimento de tantos outros possíveis.
Anal, se por um lado, Ginzburg se refere às “tendências céticas”
com termos muito semelhantes aos usados por aqueles a quem Latour chama
de “polícia epistemológica”, acusando de relativistas, de sostas e de imorais
— associando as consequências de se pensar em uma retórica contraposta à
prova com a defesa do direito do mais forte se impor sobre outros povos, outras
culturas ou minorias —, por outro lado, imaginar um princípio de realidade ou
relações de força que se escondem por trás dos textos incomodamente pode se
aproximar a uma cisão de dois mundos, em um dos quais existiriam verdades
não-humanas. Assumindo a existência da possibilidade de reconstruir a imagem
total que uma sociedade deixa de si, ou existindo um princípio de realidade
que desmente os desejos do historiador, parece-me que, dessa forma, foge-se
da “logorreia humana”, salta-se dos textos para uma realidade perpétua que
os transcende, coloca-nos, enquanto historiadores, como reconstrutores de
realidades passadas em vez de interpretadores de textos e contextos. Seja de
onde, como ou quando o historiador escreve, o que para ser reconstruído se
mantém o mesmo. Não situando esse limite da ccionalização em um princípio
de realidade, mas nas textualidades que interagem com essa realidade, LaCapra
propõe uma história que seja dialógica, em que essa dimensão documental da
história como reconstrução dos “diálogos dos mortos” seja uma conversação
com o presente do historiador, seus questionamentos e os próprios contextos
nos quais ele está inserido.
Isso implica que essa tarefa interpretativa do historiador seja também
um ato político. A historiograa tem o direito e o dever de, constantemente,
reavaliar a própria tradição (LACAPRA, 1998, p. 281), de reavivar tendências
que foram submersas e evitar os excessos da “reprodução sonâmbula” de
um cânone (LACAPRA, 1998, p. 245). Ao criticar o mito da caverna como
fundador e organizador das relações entre o mundo ocidental, a política e a
produção cientíca, Bruno Latour nada mais faz do que exercer esse dever
de questionamento da própria tradição com utilidade e consequências para
discussões que nos são contemporâneas.
Isócrates, em um texto intitulado Panegírico, arma que se fosse
possível apresentar um mesmo assunto apenas de uma forma, seria gratuito
falarmos sobre as coisas que os nossos antecessores falaram. No entanto, os
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Interações entre historiograa e losoa grega: a noção de kairós em Isócrates como
alternativa ao lósofo do mito da caverna platônico
lógoi têm, por natureza, a característica de tornar possível que engrandeçamos
aquilo que é pequeno e diminuamos aquilo que é grandioso, assim como
que tratemos de coisas antigas com novidade e o que é novo de uma forma
antiga. Ainda, sustenta que os feitos do passado são uma herança comum a
todos e que bem pensantes (phronoúntōn) são aqueles que fazem seu uso
apropriado segundo as circunstâncias dadas (en kairṓi) (ISÓCRATES, 1929,
p. 07-09). Fazer uma proposição frágil se tornar forte ou vice-versa, e inverter
os termos do justo e do injusto foi uma crítica incansavelmente lançada contra
aqueles que eram acusados de sofística, nos tempos de Isócrates. No entanto,
acredito que Isócrates vai além disso: o passado de uma comunidade e a sua
tradição pode ser constantemente relido e reutilizado, e essa herança comum
tem inuência nas deliberações políticas do philósophos. Em contraposição ao
sábio do mito da caverna que realiza uma ruptura para buscar leis não-humanas
que organizam o mundo político, na philosophía isocrática as discussões
políticas não devem ser pautadas pela iluminação de um conhecimento estável
transcendente, pertencente à ciência enquanto epistḗmē, mas na contínua
deliberação sobre as incertezas do futuro, e pelo uso de um conhecimento
humano advindo da interpretação e experiência dessa tradição aliado de uma
sabedoria que visa aconselhar sobre o presente.
O termo kairós assume grande importância para que entendamos
esse conhecimento humanamente moderado e pertencente ao mundo político.
Em Contra os sostas, Isócrates sustenta que as coisas faladas por alguém
outrora já não têm a mesma utilidade para alguém que fale depois dele e que
os discursos, para serem belos, precisam participar do kairós (ISÓCRATES,
1929, p.13). Na Antídosis, aos estudantes da philosophía, é recomendado
que aproximem as suas opiniões do kairós (ISÓCRATES, Antídosis, 184).
E, como já abordamos, no Panegírico, o sábio é aquele que faz uso desse
passado como uma herança da comunidade en kairṓi. Com isso, apesar de
os lógoi terem esse poder de alterar a grandiosidade dos acontecimentos e
assuntos e abordá-los com novidade ou de forma antiga, tanto os modos como
nos expressamos, como pensamos e como usamos dessa tradição estão —
ou devem estar entremeados e adequados às circunstâncias. E quando
defendi que, diferentemente do sábio do mito da caverna, a philosophía
de Isócrates não almejava se desprender das marcas do social para obter
sua legitimidade, me referia a essa impossibilidade de fuga do tempo e dos
contextos particulares nos quais nos inserimos que, em vez de limitadora, em
Isócrates é a prerrogativa para que o conhecimento seja possível.
A história dialógica proposta por Dominick LaCapra, que não
privilegia a reconstrução do passado, por um lado, nem a dimensão narrativa
e as peculiaridades dos questionamentos do presente de estudo e escrita
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FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº2, p. 32-48 jul.-dez., 2014.
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do historiador, poderia muito melhor encontrar mais similaridades nessa
interferência mútua entre presente e passado, em Isócrates, do que no mito
da caverna platônico. Carlo Ginzburg defende que, se quisermos aproximar
a história da retórica, não se deve considerar uma retórica anti-referencial
que, segundo ele, remonta aos sostas e as ideias nietzschianas da verdade
reduzida a trópos —, mas a Retórica aristotélica, que teria como núcleo central as
provas. No entanto, esse retorno a Aristóteles e sua noção de prova serve para
fundamentar uma história que tem como objetivo a reconstrução do passado,
da imagem total que uma sociedade deixa de si, na qual a subjetividade do
historiador esbarra nos desmentidos do princípio de realidade. Ora, considerar
que o historiador encontra em sua investigação um princípio de realidade, que
se podem reconstruir relações de força transcendentes às fontes, que estas
fontes são espelhos deformantes (mesmo que deformem, reetem a imagem
de algo), nos leva a crer que não importa as particularidades dos contextos em
que uma inumerável quantidade de investigadores podem estar submersos, as
incontáveis variáveis de lugar, tempo, instituição, língua, interesses pessoais,
preferências políticas, entre tantas outras, o conhecimento decorrente da
investigação, para ser verdadeiro, deve ser o mesmo, ou pelo menos muito
similar. Essa atemporalidade inerente a uma noção de realidade que pode
ser conhecida por meio de um método — e a aproximação das noções
aristotélicas de prova nos indica essencialmente um método de tratar as
fontes assemelha-se, incomodamente, às leis ou verdades não-humanas
exteriores à caverna, intocadas pelo vozerio dissonante de seus habitantes. O
uso isocrático do kairós, representando as circunstâncias naquilo que elas têm
de particulares, de singulares e especícas, nos parece muito mais adequado
se quisermos pensar em uma história que não ambicione ela mesma fugir do
mundo social.
Kairós é uma palavra sem correlativo muito aproximado no português,
de signicado complexo e bastante polissêmico. Segundo o dicionário A
Greek-English Lexicon, de Liddell e Scott, pode signicar: justa medida de uma
coisa para a outra, proporção, conveniência ou a exata relação entre duas
coisas, referindo-se ao lugar, o ponto certo, a parte vital de um corpo. Sobre
o tempo, é o momento certo, o instante exato para agir, o momento crítico ou
um momento particular; no plural, kairoí, os tempos, o estado das coisas —
na maioria das vezes no mau sentido, tirar vantagem, aproveitar-se de algo
(LIDDELL & SCOTT, 1883, verbete kairós). Os signicados presentes no Le
Grand Bailly são muito semelhantes a esses, talvez se acrescentando apenas
as noções de circunstância e de um lugar conveniente (BAILLY, 2000). Pierre
Chantraine, além das acepções já elencadas, adiciona a ideia de um ponto
preciso em que se toca o objetivo ou o alvo (CHANTRAINE, 1999). Em seu
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Interações entre historiograa e losoa grega: a noção de kairós em Isócrates como
alternativa ao lósofo do mito da caverna platônico
livro O efeito sofístico: sofística, losoa, retórica e literatura, Barbara Cassin
aproxima a noção de kairós ao momento da “crise” para o médico, da decisão
necessária entre a cura ou a morte, ou mesmo ao momento em que a echa
é lançada, estando entre o acerto e o erro. É “o nome da meta na medida em
que depende inteiramente do instante, o nome do lugar na medida em que é
integralmente temporalizado” (CASSIN, 2005, p. 206-208). Cassin assume a
hipótese de Onians, em que a palavra kairós, originariamente, confundia-se
com kaîros, esta que, por sua vez, é para Chantraine a “corda” ou “o” que
xa a extremidade da urdidura no tear.
8
Por outro lado, ainda referindo-se ao
tear, Onians considera kaîros o espaçamento ou o vazio criado pela abertura
dos cadilhos
9
. Contudo, embora o caráter bastante técnico diculte uma
abordagem precisa, o importante é que algumas hipóteses consideravelmente
plausíveis indicam que, na sua origem, a palavra kairós pertencia à semântica
da tecelagem, da junção e do entrelaçamento de os em um momento preciso.
O momento singular do kairós, essa meta enquanto dependente do
instante ou lugar integralmente temporalizado, remete facilmente a nossa ideia
de circunstância, de conjuntura ou, alargando um tanto o sentido, de contexto.
E quando Isócrates arma que é preciso adequar as nossas opiniões (dóxai), os
nossos discursos e os nossos usos do passado enquanto herança comum ao
kairós, ocorre precisamente um entrelaçamento entre os pensamentos, ações
e decisões do philósophos a uma situação especíca, a um caso sobre o qual
é preciso deliberar enquanto momento crítico no presente. Se as dóxai, em
Isócrates, para terem legitimidade, necessitam estar entrelaçadas ao kairós,
em tudo se afasta a ideia de um sábio que precise se afastar das turbulências
do mundo social para descobrir verdades não-humanas que permanecem
no tempo, pois o próprio pensamento, as próprias relações com a tradição e
as deliberações não podem prescindir das circunstâncias. Da mesma forma,
pensar em uma historiograa que busque apenas recontar o diálogo dos
mortos, que ambicione reconstruir a imagem deixada por uma sociedade de
si mesma, implica que o passado seja um monólogo estático a ser ouvido.
Por outro lado, ao concebermos um estudo histórico que se instaura como
diálogo entre presente e passado, estas duas temporalidades se entrelaçarão
8 Chantraine sobre a palavra kaîros: “Todos os empregos de kaîros e derivados são técnicos
e evocam, por outro lado, a noção de ‘nó, os amarrados, unidos’. A etimologia é obscura
[...], mas a palavra pode estar associada à kairós, que seria um uso gurado (‘o ponto exa-
to, o ponto de encontro, o nó’?) com mudança de acento.” (CHANTRAINE, 1999).
9 Nas palavras de Onians, “Nós podemos agora suspeitar que kaîros e kairós, dos quais temos
razões para acreditar que signicavam a abertura, a passagem através da qual os arqueiros
tentam atirar, eram originariamente a mesma palavra. A diferenciação por aqueles que inse-
riram os acentos não provam mais, por sua origem, que os casos acima citados de dēmós e
dḗmos, myríoi e mýrioi, etc. O uso na tecelagem explicará melhor o sentido de ‘tempo crítico’,
‘oportunidade’ [...]; pois nela a abertura da urdidura permanece por tempo limitado, e o ‘tiro’
deve ser feito enquanto está aberta. A crença na tecelagem do destino com a extensão dos
os da urdidura representando a extensão do tempo pode ter auxiliado esse uso de kairos.”
(ONIANS, 1951, p. 346-347). A última palavra não é acentuada no original.
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sempre de modos bastante particulares, o que não resulta, necessariamente,
em um relativismo, ceticismo ou ccionalização que, nas próprias palavras
de LaCapra, os textos são “redes de resistência” (LACAPRA, 1998, p. 285).
Antecipo que, cuidando para essas analogias não soarem
excessivamente ensaísticas, o ponto crucial a que quero chegar é: assim como
Latour utilizou o mito da caverna para dialogar com o seu texto, e Carlo Ginzburg
remeteu-se à Retórica aristotélica, estudar a inuência da ideia de kairós para
a philosophía de Isócrates nos propõe algumas questões interessantes sobre
a relação entre presente e passado ou conhecimento e tempo. Resta que a
reinterpretação dos antigos é a atualização de nossa própria tradição, e o
dever político de sua reavaliação constante implica também em nossa atitude
diante da historiograa e o modo de pensar o fazer cientíco.
Portanto, ao voltar-nos para as advertências de Latour sobre as
“inverossimilhanças” de uma ciência que visa se despojar das marcas do
social, remetendo-nos a Platão, acredito que, em Isócrates, encontra-se uma
alternativa interessante, pois justamente nele a conversão para outro plano
além da caverna seria irrealizável. E mais, o conhecimento entremeado por
todas essas marcas do social (ou mesmo temporal) é aquele que nos cabe
como seres humanos, sendo, por isso, em vez de denegrido, comemorado
graças a essas marcas. Armando a imprevisibilidade do futuro, sugere a
inexistência da possibilidade de um sábio que se isole da multidão, portador
do conhecimento, que venha a servir como guia. Ao hipoteticamente traçarmos
uma analogia da caverna do mito segundo a philosophía isocrática, como
metáfora da sociedade, fora dela não haveria a claridade do conhecimento, mas
um horizonte de névoas dicilmente discernível a ser tateado pelos próprios
habitantes da caverna, onde a constante deliberação sobre qual caminho a
seguir toma o lugar de um guia iluminado impossível.
Então, retornando aos pontos elencados que nos serviram como
condutores desse estudo, em primeiro lugar, vimos que Ginzburg ataca
uma historiograa por ele considerada como anti-referencial, relativizante e
cética, consequente de uma ideia de retórica contraposta à prova. Para ele,
a historiograa deveria sustentar-se na noção aristotélica de prova, para
que, com isso, possamos reconstruir o passado a partir de indícios, anal,
os desejos do historiador como manifestação do tempo presente de escrita
seriam desmentidos por um princípio de realidade. LaCapra, por outro lado,
desconsidera a existência de um princípio de realidade com o qual se depara
a subjetividade do historiador. No lugar desse princípio, LaCapra defende que
o historiador trabalha com textos e textualidades, e eles mesmos são as “redes
de resistências” que limitam as possibilidades de ccionalização excessivas.
Contra um historicismo, que objetive a reconstrução do passado como m, e
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FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº2, p. 32-48 jul.-dez., 2014.
Interações entre historiograa e losoa grega: a noção de kairós em Isócrates como
alternativa ao lósofo do mito da caverna platônico
contra um presentismo, que tenderia perigosamente ao relativismo e à cção,
LaCapra propõe uma história dialógica em que a interpretação do historiador
se apresenta como um ato político de constante reavaliação da tradição,
consistindo em um diálogo entre presente e passado, por meio do qual as duas
temporalidades se interferem mutuamente.
Logo a seguir, como alternativa ao lósofo do mito da caverna tal
qual descrito por Latour em Nem céu nem inferno, estudamos a ideia de kairós
na losoa isocrática. Se, por um lado, para aceder ao conhecimento, o lósofo
do mito deveria afastar-se da “logorreia humana”, do caos do mundo social e
da efemeridade de seus acontecimentos para pensar verdadeiramente, em
Isócrates, os pensamentos, os discursos e o modo de utilizarmos a nossa
tradição devem estar de acordo com o kairós, ou seja, com as circunstâncias,
as ocasiões, o tempo oportuno e os contextos. Em Isócrates, parece-me
impossível uma fuga do mundo social e do tempo. Enquanto o lósofo ou
o cientista descrito por Latour devem ascender ao céu das ideias para
atingindo leis não-humanas e naturais perenes pensar verdadeiramente,
em contraponto, para Isócrates, o kairós como ideia da particularidade de
cada caso e singularidade das circunstâncias é uma prerrogativa para o
conhecimento legítimo.
Sugiro, por m, que a defesa de uma historiograa que se propõe
como reconstrução do passado, sustentando-se apenas na noção de prova
como método crítico que faria os desejos do historiador se constrangerem por
um princípio de realidade, pode se aproximar analogamente a uma concepção
de passado estática a ser descoberto pela investigação realizada no tempo
presente de escrita. A essa concepção de passado estática, associo os
anseios alertados por Latour de fuga do social, da transitoriedade e à busca
por verdades não-humanas assumidas em sua leitura do platonismo. De outro
modo, a historiograa dialógica de LaCapra, como constante atualização da
tradição, encontra em Isócrates um correlato muito mais próximo na losoa
grega antiga, na qual os discursos têm por característica “dizer as coisas antigas
com novidade e as novas de uma forma antiga”. Assim como, em Isócrates,
os acontecimentos passados, sendo uma herança da comunidade, são
constantemente transformados de acordo com as circunstâncias ― o kairós ―,
em LaCapra, cada diálogo entre as vozes do historiador e os textos de outrora
são um entrelaçamento único no tempo, o que não faz com que, apesar disso,
as suas interpretações não possam ser apropriadas, verdadeiras e legítimas.
Referências
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FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº2, p. 32-48 jul.-dez., 2014.
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