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FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº2, p. 32-48 jul.-dez., 2014.
Interações entre historiograa e losoa grega: a noção de kairós em Isócrates como
alternativa ao lósofo do mito da caverna platônico
livro O efeito sofístico: sofística, losoa, retórica e literatura, Barbara Cassin
aproxima a noção de kairós ao momento da “crise” para o médico, da decisão
necessária entre a cura ou a morte, ou mesmo ao momento em que a echa
é lançada, estando entre o acerto e o erro. É “o nome da meta na medida em
que depende inteiramente do instante, o nome do lugar na medida em que é
integralmente temporalizado” (CASSIN, 2005, p. 206-208). Cassin assume a
hipótese de Onians, em que a palavra kairós, originariamente, confundia-se
com kaîros, esta que, por sua vez, é para Chantraine a “corda” ou “o” que
xa a extremidade da urdidura no tear.
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Por outro lado, ainda referindo-se ao
tear, Onians considera kaîros o espaçamento ou o vazio criado pela abertura
dos cadilhos
9
. Contudo, embora o caráter bastante técnico diculte uma
abordagem precisa, o importante é que algumas hipóteses consideravelmente
plausíveis indicam que, na sua origem, a palavra kairós pertencia à semântica
da tecelagem, da junção e do entrelaçamento de os em um momento preciso.
O momento singular do kairós, essa meta enquanto dependente do
instante ou lugar integralmente temporalizado, remete facilmente a nossa ideia
de circunstância, de conjuntura ou, alargando um tanto o sentido, de contexto.
E quando Isócrates arma que é preciso adequar as nossas opiniões (dóxai), os
nossos discursos e os nossos usos do passado enquanto herança comum ao
kairós, ocorre precisamente um entrelaçamento entre os pensamentos, ações
e decisões do philósophos a uma situação especíca, a um caso sobre o qual
é preciso deliberar enquanto momento crítico no presente. Se as dóxai, em
Isócrates, para terem legitimidade, necessitam estar entrelaçadas ao kairós,
em tudo se afasta a ideia de um sábio que precise se afastar das turbulências
do mundo social para descobrir verdades não-humanas que permanecem
no tempo, pois o próprio pensamento, as próprias relações com a tradição e
as deliberações não podem prescindir das circunstâncias. Da mesma forma,
pensar em uma historiograa que busque apenas recontar o diálogo dos
mortos, que ambicione reconstruir a imagem deixada por uma sociedade de
si mesma, implica que o passado seja um monólogo estático a ser ouvido.
Por outro lado, ao concebermos um estudo histórico que se instaura como
diálogo entre presente e passado, estas duas temporalidades se entrelaçarão
8 Chantraine sobre a palavra kaîros: “Todos os empregos de kaîros e derivados são técnicos
e evocam, por outro lado, a noção de ‘nó, os amarrados, unidos’. A etimologia é obscura
[...], mas a palavra pode estar associada à kairós, que seria um uso gurado (‘o ponto exa-
to, o ponto de encontro, o nó’?) com mudança de acento.” (CHANTRAINE, 1999).
9 Nas palavras de Onians, “Nós podemos agora suspeitar que kaîros e kairós, dos quais temos
razões para acreditar que signicavam a abertura, a passagem através da qual os arqueiros
tentam atirar, eram originariamente a mesma palavra. A diferenciação por aqueles que inse-
riram os acentos não provam mais, por sua origem, que os casos acima citados de dēmós e
dḗmos, myríoi e mýrioi, etc. O uso na tecelagem explicará melhor o sentido de ‘tempo crítico’,
‘oportunidade’ [...]; pois nela a abertura da urdidura permanece por tempo limitado, e o ‘tiro’
deve ser feito enquanto está aberta. A crença na tecelagem do destino com a extensão dos
os da urdidura representando a extensão do tempo pode ter auxiliado esse uso de kairos.”
(ONIANS, 1951, p. 346-347). A última palavra não é acentuada no original.