Representações indígenas no poema M.C.
Para lançarmos mão do poema M.C. como fonte para o estudo histórico,
deparamo-nos com três peculiaridades. A primeira está no fato de ter sido publicada −
nove anos após seu lançamento − a sexta edição, fato raro no mercado literário,
especialmente em se tratando de um poema. A segunda peculiaridade é a constatação de
que o M.C. não é um livro de poemas, e sim um poema único que mescla narrativas
indígenas e fatos da historiografia oficial brasileira (MARTINS, 1973). A terceira
peculiaridade a respeito da obra é o fato de ela ter sido repetidamente alterada no
decorrer de suas reedições
. Cientes destas três peculiaridades, analisaremos, nesse
estudo, apenas as seis primeiras edições do poema (1927, 1928, 1929, 1932, 1934 e 1936).
O poema M.C. é dividido em seis partes. Na primeira seção, encontramos a
descrição da terra em eterna desordem, do mundo selvagem, da fauna, da flora e dos
indígenas. Na segunda parte, o branco é inserido na narrativa. Essa inserção pretende
deixar claro que o Brasil necessitaria do branco colonizador para se civilizar. Assim
como consagrou poemas sobre o indígena e o branco, Cassiano Ricardo também se
dedica a poetizar a “terceira raça”: o negro. Após o encontro harmônico da tríade racial
formadora do brasileiro, na quarta seção surgem os “gigantes de botas” – os
bandeirantes − que conquistam o território. Para resolver o problema da mestiçagem na
formação racial do brasileiro, Cassiano Ricardo insere o imigrante
europeu na quinta
parte do M.C. Além de narrar a origem étnica, o nascimento dos “gigantes de botas” e o
avanço da lavoura cafeeira sobre o interior, a última parte do poema é dedicada ao
espaço urbano moderno. Com esse desfecho, o poeta estabelece os laços entre o
Sobre as constantes alterações empreendidas pelo autor em sua obra ver Jerusa Ferreira (1970), Deila C.
Peres (1987) e George L. S. Coelho (2015). Os autores entendem que, do poema inicial, se chegou a outro,
como resultado do labor incessante do poeta incapaz de se separar de seu texto, o qual foi se
sedimentando ao longo de um caminho que abrange experiências modernistas da década de 1920 até as
experiências das vanguardas concretistas dos anos de 1960. Segundo Coelho (2015), a contínua mutação
não pode ser entendida como simples oportunismo do poeta, mas antes deve ser entendida como
autonomia artística do autor que procura adaptar seu poema às mudanças sociais que seu olhar “artístico”
percebe. Vejamos, a seguir, a sequência de edições, números de poemas e páginas até a edição de 1962:
Assim, vemos que na edição de 1927 eram 57 poemas em 167 páginas; na de 1928, 42 poemas em 127
páginas; na de 1929, 47 poemas em 126 páginas; na de 1932, 51 poemas em 139 páginas; na de 1934, 55
poemas em 180 páginas; na edição de 1936, 60 poemas em 227 páginas; na edição de 1938, 65 poemas em
240 páginas; na edição de 1944, 68 poemas em 218 páginas; e na edição de 1945, 65 poemas em 134
páginas. No que se refere ao número de poemas e à quantidade de páginas da obra, podemos ver
claramente uma escala ascendente ao logo das edições, a qual chega a sua versão final, na 11ª edição de
1962, com 77 poemas em 275 páginas.
A grande inovação de Cassiano Ricardo com a inserção do imigrante é a definição das origens raciais
brasileiras opostas ao Peri, ao Jeca e à tríplice formação étnica. De acordo com Brito (1979), Peri era o
protótipo da literatura indianista, negada integralmente, pois era considerada falsa. O Jeca Tatu
representava o brasileiro incapaz e fatalista, paralisado ante a paisagem e a vida; e, por isso, também foi
negado. Outra recusa referia-se aos três grupos étnicos, pois se prendia à negação do Parnasianismo de
Olavo Bilac. Como se observa, as posições do poeta buscava suprir a trindade racial tradicional com a
anexação da migração estrangeira na virada do século XIX para a formação da “raça futura”.