OESTE, Laura
*
https://orcid.org/0000-0002-9249-5690
RESUMO: O artigo analisa a região platina a
partir de suas fronteiras com a pampa
argentina e a bacia do Prata, lugar constituído
e delimitado a partir das disputas territoriais
com os povos indígenas e as coroas espanhola
e portuguesa. A proposta do artigo é trabalhar
com alguns casos de captura de mulheres e
famílias indígenas por parte dos agentes
coloniais na região, para analisar quais lugares
essas pessoas ocupavam na sociedade. Em um
primeiro momento, apresentaremos algumas
pesquisas que abordaram a invisibilidade dos
indígenas, como uma forma de auxílio na
reflexão e análise das fontes. Em seguida,
abordaremos as justificativas utilizadas para
as mulheres nesses aprisionamentos e como
elas se relacionavam com as tensões
envolvidas entre diferentes modos de vida, em
que observamos argumentações específicas
para as mulheres. Diante disso, se discute a
captura de pessoas dentro das sociedades
indígenas, na qual percebemos uma atuação
feminina significativa.
PALAVRAS-CHAVE: Mulheres indígenas;
Fronteiras; Cativos e aprisionamento;
mobilidade.
ABSTRACT: This article will analyze the
border areas of the River Plate region, place of
territorial dispute between Indigenous people,
and the Spanish and Portuguese crowns. The
proposal is to address some imprisonment
cases of women and indigenous families by
colonial agents in the region, in order to
analyze what places these people occupied in
society. We begin with some researches, which
address the invisibility of indigenous people as
a way of reflection and critical analysis of
historical sources. We will also address the
justifications used for women in these
imprisonments and how they related to the
tensions involved in different ways of life, in
which we observe the specific arguments for
women. Therefrom, we discuss the capture of
people within indigenous societies, where we
perceive a significant female performance.
KEYWORDS: Indigenous women; Borderlands;
Captives and imprisonment; mobility.
Recebido em: 07/05/2020
Aprovado em: 19/01/2021
Introdução
* Licenciada em História pela UFRGS, Porto Alegre-RS, mestranda no Programa de Pós-Graduação em
História da UFSC, Florianópolis-SC. Bolsista Capes. E-mail: lauraoeste@gmail.com. As considerações
apresentadas neste artigo são oriundas da dissertação
Mulheres Indígenas e fronteiras platinas (século
XVIII): invisibilidade, famílias e alteridades
.
Este é um artigo de acesso livre distribuído sob licença dos termos da Creative Commons Attribution License.
[...] creio que nós mulheres sempre nos encontramos bastante invisibilizadas em
tudo o que fazemos, em tudo que envolve os processos de reivindicação
territorial, isso tem acontecido em todos os processos que ao refletirmos mais
tarde, se olharmos para trás, para o contexto, vemos que as mulheres
sustentam os homens para que eles estejam seguros [...] PICIÑAN, 2018 apud
ALONSO; DÍAZ, 2018, p. 36, tradução nossa)
1
.
O trecho destacado é parte da reflexão de Pety, mulher indígena, sobre a
participação e importância das mulheres mapuche na política de disputas territoriais na
Argentina contemporânea. Sua fala nos convida a refletir sobre a presença indígena no
cenário atual, mas também a pensar nas suas participações ao longo dos processos
históricos. A invisibilidade das mulheres nas fontes escritas foi bastante debatida na
historiografia como nos trabalhos de Perrot (2017), Soihet (1998), Guardia (2002), entre
outros, contudo as indígenas como foco principal da análise ainda são um tema
relativamente recente.
Quando consultamos a documentação da América hispânica para o Setecentos,
percebemos que elas estão presentes em variadas situações e narrativas que contribuem
para a compreensão das vivências, resistências e atuações das populações indígenas
locais. Nessa leitura, algumas situações apresentaram uma presença maior de mulheres,
envolvendo momentos de conflitos e a captura de pessoas, principalmente mulheres e
famílias. Diante disso, este artigo se propõe a analisar os lugares sociais das mulheres
indígenas nessas situações, que apresentavam diversas tensões entre os
aprisionamentos praticados pelos agentes coloniais e práticas de raptos das populações
indígenas na região do Prata. Pensar esses aspectos possibilita trazer outras questões,
entre elas, as diferentes concepções de formações familiares indígenas e
coloniais/ocidentais, reflexões acerca das justificativas utilizadas nos apresamentos
pelos poderes coloniais, que tensionaram mudanças e adaptações para as populações
nativas, e que atuações foram possíveis nessas circunstâncias.
Em relação ao recorte geográfico, cabem algumas considerações sobre esse
espaço fronteiriço. A região platina
2
foi um lugar estabelecido historicamente a partir das
disputas territoriais dos povos indígenas e das coroas espanhola e portuguesa
(MANDRINI, 1992). Diante disso, a historiografia sobre essa região valorizou, durante
muito tempo, as formações dos Estados Nacionais, criando uma concepção de
1
[no original] “[...] creo que siempre las mujeres quedamos bastante invisibilizadas en todo lo que hacemos,
en todo lo que es el proceso de reivindicación territorial, eso ha sido en todos los procesos que después
vemos, si miramos hacia atrás, si miramos el contexto, vemos que las mujeres sostienen que los hombres
puedan estar seguros [...]” PICIÑAN, 2018 apud ALONSO; DÍAZ, 2018, p. 36).
2
O território era formado pelas áreas entre o rio da Prata (Argentina), a Banda Oriental (atuais Uruguai e
Rio Grande do Sul) e a região entre os rios Paraná e Uruguai. Neste trabalho, valorizamos o diálogo da
região com as suas fronteiras como as áreas próximas de Buenos Aires e a Bacia do Prata.
continuidade entre os períodos coloniais e republicanos (WILDE, 2003, p. 106). Esses
aspectos interferiram nas produções históricas que ignoraram diferentes concepções de
territorialidade e mobilidade, sobretudo, para os povos indígenas. Devido a essas
ponderações, utilizamos neste trabalho uma noção de fronteira compreendida como um
espaço fluido e instável, tanto do ponto de vista territorial como étnico, sugerido por
Boccara (2001, p. 2-13).
Quanto às fontes utilizadas, elas formam um conjunto diverso, desde a
documentação eclesiástica até a civil organizada pelas burocracias espanholas ao longo
do século XVIII.
3
O recurso utilizado para trabalhar com um conjunto tão diverso, foi
priorizar o uso da documentação transcrita ou com algum sumário ou índice. Isso foi
necessário, pois essas fontes possuem um número muito extenso de páginas, que
inviabilizaria sua leitura completa. Assim, foram consultadas todas as referências que
possuíam indígenas e mulheres. Nesse exercício, nos deparamos frequentemente com
muitas indígenas anônimas, o que dificulta abordagens mais aprofundadas e um
acompanhamento mais detalhado das trajetórias e vivências, sendo ainda mencionadas
com poucas informações, como veremos adiante.
Diante desse desafio, buscamos alguns instrumentos que ajudassem na leitura da
documentação, a partir da qual percebemos a necessidade de refletir sobre a
invisibilidade das indígenas nas próprias fontes históricas como uma maneira de refinar
o olhar para essa documentação. Segundo Soihet (1998), umas das possibilidades seria
analisar os papéis informais exercidos pelas mulheres, o que possibilitaria evidenciar
processos sociais tidos como invisíveis. Nesse processo, a historiadora pontua que é
necessário trabalhar usando criatividade, sensibilidade e imaginação” (SOIHET, 1998, p.
83). Nesse contexto, trabalhar com uma perspectiva de gênero, se torna importante para
compreender melhor as relações de dominação exercidas pelos poderes coloniais às
mulheres indígenas, assim como suas formas de resistência. Em nosso trabalho,
entender as influências e a criação de padrões de comportamento distintos para homens
e mulheres ajuda a perceber como essas duas categorias são variáveis conforme o
momento histórico (GOMEZ, 2002, p. 373-388).
3
O material consultado é formado pela documentação produzida pela burocracia local chamada de
Cabildo, no caso o de Buenos Aires, que contém atas, informes e cartas sobre diversos aspectos
administrativos, e caracterizada por uma organização contínua, facilitando o acompanhamento das
situações. Para essa pesquisa foram analisados todos os tomos do século XVIII. Utilizamos ainda
publicações de transcrições de fontes primárias avulsas em coleções de documentos, como os
Manuscritos de Angelis e outros livros argentinos, que trazem escritos de variados sujeitos. Devido a essas
particularidades, optamos por uma metodologia com base no jogo de escalas como proposto por Revel
(2010), variando entre micro e macro-história.
Algumas análises ajudam a apontar os obstáculos envolvidos na identificação das
indígenas na documentação. Podemos mencionar as análises de Vitar (2015, p. 672),
sobre as reduções na região do Chaco argentino, em que explica que algumas fontes
inacianas tendem a se referir às indígenas usando apenas palavras masculinas. Outra
autora, Segato (2012, p. 118), relaciona a ausência das indígenas na escrita a uma eleição
dos homens como interlocutores privilegiados, aspecto que funcionou de forma
deliberada pelos poderes coloniais e articulou seus interesses de colonização
valorizando, justamente, o masculino como intermediário. Nessa perspectiva, Scott
(1992, p. 72-75) discorre sobre a escassez de escritas femininas, o que pode ter
influenciado o predomínio da visão masculina na historiografia. o trabalho
desenvolvido em conjunto pelos pesquisadores Baptista, Wichers e Boita (2019, p. 1-2),
menciona que as mulheres indígenas ocupariam um “não lugar” não apenas na
historiografia, mas também em outras áreas e espaços, como sítios arqueológicos e
museus. Segundo os autores, a própria produção escrita sobre esses lugares possui, em
sua maioria, sujeitos masculinos, nem ao menos existindo a palavra mulher” no texto
(BAPTISTA; WICHERS; BOITA, 2019, p. 1). Desse modo, surgem algumas perguntas, como
podemos discorrer sobre a invisibilidade da mulher indígena nas fontes de forma
separada das análises realizadas nesses mesmos documentos e, também, como essa
invisibilidade está relacionada aos próprios povos indígenas.
Como explicado por Almeida (2017), quando olhamos para as pesquisas sobre os
indígenas, existe uma variada produção que destaca a presença e agência destes povos
nos processos históricos, contribuindo para questionar a invisibilidade e silenciamento
dessas populações. Segundo a historiadora, compreender os grupos indígenas na
condição de sujeitos proporcionou para a história novas interpretações, pois foi
justamente a pouca importância sobre suas atuações, somada ao apagamento das
identidades étnicas, que levaram a uma supervalorização dos colonizadores em
narrativas construídas de forma eurocêntrica (ALMEIDA, 2017, p. 19).
Já John Monteiro (1999, p. 237-241) aponta a importância da nova história indígena
nos anos 1990 para repensar a invisibilidade dos indígenas. Durante muito tempo a
historiografia tradicional e o ensino de história abordaram essas populações como algo
distante no passado, presente apenas nos primeiros anos da colonização. As
representações de um indígena “puro” ou assimilado também contribuíram para a
invisibilidade, pois criaram critérios de indianidade aceitos ou rejeitados pela sociedade.
Outra questão que influenciou na crítica à invisibilidade dos indígenas foi, a partir dos
anos 1980, a constatação de que as populações indígenas retomaram o seu crescimento
populacional, contradizendo a ideia disseminada sobre seu possível desaparecimento.
Esse aumento populacional estava relacionado a diversos fatores, como uma
recuperação demográfica natural após os contatos com o homem branco e a
reivindicação de uma identificação étnica de grupos atuais (CUNHA, 1994, p. 124).
Para os períodos das décadas de 1970 e 1980, quando analisamos a produção da
antropologia sobre a mulher indígena, também nos deparamos com a invisibilidade
desses sujeitos. Segundo Lasmar (1999, p. 147-148), foi um conjunto de questões que
influenciaram a ausência para a América do sul, em especial para a região da Amazônia.
Entre elas, a hegemonia da perspectiva masculina dentro das ciências sociais, como
ainda fatores relacionados às estruturas sociais e culturais de algumas sociedades
indígenas, tais como a divisão sexual dos espaços e das atividades, que em alguns
momentos relacionaram as atividades femininas a lugares ligados à domesticidade e
atuação masculina ao contato com o exterior, à guerra e a atividades de caça. Todas
essas observações podem ter influenciado as análises, nas quais as participações das
mulheres e suas experiências sociais ficaram invisibilizadas devido à desvalorização do
espaço doméstico (LASMAR, 1999, p. 148).
Sobre as indígenas na região do Prata e localidades próximas, podemos mencionar
os trabalhos de Fleck (2006) e Gómez (2012). A primeira mostra como a documentação
dos jesuítas no século XVII construiu narrativas com base em estereótipos e
contradições, classificando as mulheres entre “auxiliares do demônio” e ao mesmo
tempo como exemplares cristãs. Essas imagens foram se transformando ao longo do
projeto colonial, em que as associações às bruxas e demônios perdem espaço para os
casos de relatos edificantes que valorizavam narrativas de experiências relativas ao
processo de cristianização (FLECK, 2006, p. 617-634). a antropóloga Gómez (2012)
trata de algumas adjetivações acerca da mulher indígena no Chaco argentino, entre elas,
mulheres Tobas, Wichi e Chorote. Em sua análise, a autora demonstra as diversas
imagens contraditórias de feminilidade, nas quais surgem adjetivos com conotações
bastante estereotipadas como “bestas de carga”, amazonas e libertinas por parte de
missionários, cronistas e funcionários do governo. A autora recupera e contextualiza
essas representações para compreender os interesses envolvidos na sua produção, que
poderiam envolver aspectos religiosos, econômicos ou políticos, como também na
reprodução e manipulação desses escritos. Essas três imagens se tornaram comuns nas
representações femininas sobre as indígenas da região (GÓMEZ, 2012, p. 28-49).
Especialmente para a região da pampa argentina, o trabalho de Cattáneo (2008)
também destaca alguns estereótipos sobre o modo de vida das mulheres indígenas
produzidos pelos sujeitos coloniais em relatos. Segundo essas fontes, militares, viajantes
e missionários costumavam mencionar os homens nas atividades relacionadas com a lida
do gado, destacando seu ócio, enquanto as mulheres estavam sempre envolvidas em
intermináveis trabalhos, tanto relacionados aos cuidados domésticos como nas
manufaturas de vestimentas como os ponchos. Essa imagem recorrente caracterizava a
mulher como escrava de seu marido e envolvida apenas em tarefas enxergadas como
corriqueiras e repetitivas (CATTÁNEO, 2008, p. 191-211).
Destacamos ainda a contribuição de Reichel (2002) sobre os relatos produzidos
pelos cronistas do início do XIX, em que aparecem nas fontes denominações como
china,
utilizada tanto para mulheres indígenas como para mestiças. A historiadora dedica sua
análise também à produção historiográfica sobre o período colonial e republicano, no
qual menciona a pouca visibilidade de pesquisas voltadas para a mulher relacionada à
valoração de trabalhos voltados ao estudo dos espaços “públicos” (REICHEL, 2002, p.
141-150). Também o trabalho de Garcia (2015), analisa o estabelecimento de portugueses
e espanhóis na bacia do Prata e as relações com as populações Tupi-guarani no século
XVI. Sua pesquisa possui foco na participação das mulheres nas articulações entre os
ibéricos e indígenas em uma das principais demandas econômicas da época, tanto para a
Europa como para os locais, que tinha sua base no tráfico de escravos. As mulheres
indígenas foram extremamente importantes nas relações políticas e comerciais, pois os
portugueses dependiam delas para ingressar nas redes de parentesco e reciprocidade
das sociedades indígenas (GARCIA, 2015, p. 39-73).
Diante desses trabalhos e apontamentos colocados sobre invisibilidade, mulheres
e povos indígenas, surge a questão de que elas não são tão invisíveis assim, muitas vezes,
refletir sobre a presença das indígenas nas fontes pode estar mais relacionado à forma
como abordamos e elaboramos nossas perguntas à documentação. Salientamos que não
existe um tipo específico de questionamento a ser realizado, ele vai depender das
características e situações encontradas. Esse é o exercício que pretendemos fazer neste
texto.
Mulheres indígenas, famílias e a captura de pessoas no espaço platino
Os indígenas viveram uma intensa mobilidade pela região platina e de suas
fronteiras com a área pampeana e a bacia do rio da Prata, desde deslocamentos
relacionados a seus modos de vida até as mudanças trazidas pelas dinâmicas impostas
pelos agentes coloniais. A presença de europeus nesse território desde o século XVI e a
introdução de novas espécies animais e vegetais contribuíram para a intensificação das
relações interculturais entre os grupos, formando um extenso circuito de intercâmbios.
Os indígenas e a sociedade colonial viveram uma forte interdependência, em que os
primeiros percorriam longas distâncias para comerciar animais, sal, entre outros itens
(MANDRINI; ORTELLI, 2003, p. 69-79).
Sobre a dinâmica de movimentações pelo local e o uso de animais, os indígenas
pampeanos
4
durante, pelo menos, metade do século XVIII e início do XIX, praticavam
uma economia pastoril que influenciou tanto transformações no espaço físico da região,
em seu ecossistema, como nas relações sociais. Nesse contexto, é importante mencionar
como esse modo de vida interferiu na dinâmica de mobilidade dessas populações, que ao
se dedicar ao manuseio do gado, necessitou adotar uma movimentação com base na
busca por pasto e água para os animais. Esse trânsito era praticado de forma organizada
e planejada, levando em consideração pastagens delimitadas e determinadas pela época
do ano. As estratégias utilizadas nos deslocamentos levavam em consideração uma
diversidade de fatores, desde aspectos econômicos e ecológicos até questões mais
subjetivas que envolviam demandas sociais, ideológicas e culturais (SORIA, 2012, p. 307-
320). Particularmente, a adoção do cavalo ampliou o território de mobilidade e
possibilitou novas e mais oportunas condições de deslocamento dessas populações, que
inseriram esses animais de forma significativa em sua economia e modo de vida
(MARTINS, 2018, p. 128).
Foi justamente ao longo do século XVIII que os povos indígenas próximos de
Buenos Aires tiveram uma convivência mais intensa com a população branca, ambos
motivados pelo interesse nas manadas de gado selvagem que se proliferavam pela
região.
5
Devido ao grande número de abate desses animais, sua população diminuiu
drasticamente, o que levou ao interesse dos colonos em expandir seus territórios para a
implantação de estâncias para a criação de gado. Essa mudança de perspectiva no
avanço da colonização da área impactou diretamente os indígenas e seus territórios
(MARTINS, 2018, p. 128).
Conflitos com indígenas na fronteira da pampa bonaerense são mencionados com
frequência na documentação. Essas desavenças foram violentas e levavam a casos de
4
Em relação às populações da região pampeana, Mandrini (1992, p. 64-69) comenta sobre as dificuldades
de identificação das etnias. Para o autor é importante descobrir se os indígenas presentes nas fontes do
Setecentos, denominados pampas, eram de grupos distintos, com identidade racial, linguística e cultural
própria ou, como outra vertente acredita, parte de uma grande unidade da região pampa-patagônica. As
terminologias usadas nas fontes são confusas, o que leva a uma grande diversidade de nomes e apelidos,
podendo designar parcialidades pequenas, grupos. Outra denominação encontrada é a de serranos
.
Esses
povos viviam em um território extenso e heterogêneo, sendo que algumas fontes do século XIX
descreviam seu território ao oeste no início dos Andes, o rio da Prata e Paraná ao leste, ao sul do rio
Colorado e ao norte as províncias de San Luís, Mendonza, Córdoba y Santa (MANDRINI; ORTELLI,
2003, p. 66-81).
5
Martins (2018, p. 128) também menciona como um intensificador das relações entre colonos e indígenas,
as políticas bourbônicas de fronteira implementadas na região do Prata. Na tentativa de efetivar o controle
sobre essas áreas, frente aos interesses estrangeiros, a coroa espanhola incentivou articulações com as
populações indígenas locais na proteção desses espaços.
aprisionamento de muitas pessoas, entre elas, mulheres, crianças e famílias. Diante
desse cenário, podemos elaborar algumas questões iniciais: O que acontecia com as
mulheres indígenas capturadas nesses conflitos? O que isso nos mostra sobre seus
lugares na sociedade? Como esses aprisionamentos de grupos familiares influenciaram a
vida desses povos e quais argumentos estavam presentes nos discursos dos agentes
coloniais para justificar tais práticas violentas? Quais estratégias os indígenas utilizaram
para lidar com as capturas realizadas pelos poderes coloniais? Podemos ainda perguntar
se essas justificativas tiveram características específicas paras as mulheres.
Em um relato detalhado sobre a captura de um conhecido cacique, chamado de
Calelian, e seus aliados, observamos algumas diferenças tanto no tratamento como nas
justificativas para os homens e mulheres aprisionados. O caso ocorrido em 1745, nas
cercanias de Lujan, terminou no aprisionamento de diversas pessoas, levando a uma
longa discussão sobre o que seria feito com os cativos. No fim, alguns homens foram
enviados para as obras de Montevidéu, o cacique e os outros principais para a Espanha e
sua “família e
chuzma
6
enviadas aos cuidados dos jesuítas (AECBA, TOMO IX, cabildo
del 28 de setembro de 1745, p. 80; cabildo del 18 de agosto de 1746, p. 185-189). No início,
a intenção era dividir as mulheres e as jovens capturadas entre os moradores locais em
Montevidéu, tomando o cuidado para que não fugissem o que, segundo o documento,
seria um grande inconveniente (AECBA, TOMO IX, cabildo del 13 e 19 de julio de 1745,
p.65-69 e p. 71-72). No fim, elas foram enviadas para Domingo Soriano e, posteriormente,
para outras reduções não especificadas. Outra ata fornece o número de mulheres ao
pedir ajuda nos gastos com o deslocamento das sessenta índias capturadas, adultas e
jovens, todas da mesma parcialidade do cacique, consideradas também infiéis
7
. Na fonte
também é mencionado o início dos preparativos para enviá-las às missões, aos cuidados
do padre Jaime Pasiño o mais rápido possível, que a demora levaria a danos espirituais
e temporais daquelas “pobres almas” (AECBA, TOMO IX, cabildo del 13 de enero de 1746,
p. 107-109; cabildo del 9 de febrero de 1746, p. 116-118).
A partir do relato podemos destacar algumas questões, como a divisão dos
capturados entre homens e mulheres/crianças. Outra observação importante é que
6
Nas fontes aparecem em um contexto pejorativo, se referindo a mulheres ou famílias de povos
considerados belicosos pelo narrador. Outros autores mencionam o mesmo uso (BRACCO, 2016;
CATTÁNEO, 2008).
7
Ao longo da documentação, os indígenas não cristianizados foram apresentados pela categoria de infiéis.
A denominação foi utilizada para nomear as populações não submetidas e representadas pelos poderes
coloniais como um problema para a sociedade, estando relacionada à forma como esses grupos agiam e
viviam, assim como aos interesses das partes envolvidas. O comportamento dos indígenas nem sempre foi
de acordo com o interesse colonial e os espaços e diretrizes formais foram utilizados de acordo com os
interesses dessas populações, que levavam em consideração suas próprias prioridades (GARCIA, 2011, p. 1-
13).
percebemos, ao longo da leitura das atas, que as indígenas são referenciadas de maneira
mais genérica conforme o caso vai se desenrolando, como por exemplo, sendo utilizada
apenas a palavra família para falar delas. Como comentado no início deste artigo,
generalizações tornam o acompanhamento de uma possível trajetória difícil. Nas
primeiras atas são apresentadas de forma mais completa, inclusive é mencionado o nome
de uma indígena presente, mas que não faz parte das aprisionadas, chamada Dona
Gregória, apesar de não haver mais nenhuma informação sobre ela, além de seu nome
(AECBA, TOMO IX, cabildo de 13 de julho de 1745, p. 65-69). Não encontramos a indígena
novamente na documentação do Cabildo.
Sobre as indígenas, foi comum o uso de seus trabalhos tanto nas reduções como
nas casas das populações locais, a intenção de dividi-las era uma tentativa de controlá-
las, como observaremos mais adiante. Para a situação descrita acima, fica a questão da
aparente dúvida sobre o que fazer com elas, que pareceu ser sanada quando o padre
Jaime Pasiño interferiu com a justificativa de salvar essas mulheres e jovens. Sua
argumentação quanto a uma salvação material, poderia ter relação ao interesse na mão
de obra feminina. Pesquisas como a de Vitar (2015, p. 669-673) sobre as reduções do
Chaco, mencionam o trabalho das mulheres nas reduções como fundamental para a
sobrevivência dos
pueblos
. Essas indígenas de diversos povos possuíam um importante
papel na manutenção material da comunidade em geral, principalmente, na provisão de
alimentos e plantas medicinais coletadas na região. O trabalho de tecer também foi de
grande valor econômico para as missões e entendido como essencialmente feminino. Ele
ainda poderia ser utilizado como uma justificativa moral por parte dos jesuítas, em
especial para as indígenas que viviam sozinhas, sendo frequentemente aconselhado que
elas fossem realizar trabalhos domésticos na casa de famílias das localidades próximas
(IMOLESI, 2011, p. 146-147).
O uso da mão de obra indígena pela população local e justificativas com teor
civilizatório são observadas em outros documentos, como no informe do funcionário
colonial, Felipe de Haedo (1778, p. 71-85). Ao longo do documento, nosso narrador
descreve quais indígenas eram consideradas como aceitáveis ou não para os poderes
coloniais. Nos dedicaremos a essa fonte, pois ela é interessante para compreender como
funcionavam os deslocamentos de populações indígenas reduzidas e as concepções dos
agentes coloniais sobre as famílias não submetidas, que seu autor se preocupa em
detalhar as diferenças entre elas.
O funcionário sugere formas de conquistar os povos indígenas que habitavam a
região ao sul de Buenos Aires e alternativas para povoar seus territórios com outras
famílias apresentadas por ele como corretas, sejam elas indígenas ou não. Ele narra
algumas entradas anteriores efetuadas ao extenso território nas décadas de 1760 e início
de 1770. Para a manutenção dessas conquistas e no trato com os indígenas cativos,
Haedo propõe olhar essas experiências anteriores, nos “modos” de conquista das regiões
vizinhas, e explica o que considera mais eficaz para a redução dos indígenas. Então, de
forma bastante metódica, ele propõe o que seria, na sua opinião, a maneira mais eficiente
de trazer os indígenas para o sistema colonial, que consiste em reparti-los entre as
famílias das cidades, vilas, lugares e estâncias de acordo com a necessidade de cada
lugar. Eles devem ser utilizados na lida com os campos de suas fazendas pelo período de
dez anos e, como forma de recompensa, seriam oferecidos gado, cavalo, ou, ainda, prata
para comprá-los. Mas o valor não poderia ultrapassar trinta pesos para cada, o que seria
suficiente para estabelecer sua nova vida. Também deveriam ser repartidas terras
ociosas para futuramente se tornarem vassalos leais, pagantes dos tributos
correspondentes e disponíveis na sua defesa (HAEDO, 1778, p. 71-85).
O autor apresenta em sua fala a preocupação em fixar por meio do trabalho os
indígenas capturados com a intenção de, no futuro, eles se tornarem aliados. Em alguns
momentos, ele explica como pessoas casadas e com filhos tendem a um melhor
comportamento que indivíduos ou grupos “vagantes” (HAEDO, 1778, p. 78). Mas quais
famílias seriam consideradas “adequadas” para povoar o território conquistado? Os
indígenas pampeanos não pareciam se encaixar na visão dele, que um dos objetivos
colocados em sua fala era, justamente, “libertar” o campo dos indígenas que ali
habitavam (HAEDO, 1778, p. 78). Em algumas situações as famílias indígenas deveriam
ser separadas, como no caso anterior do cacique, em outras, mantidas. Como
mencionado, os grupos da região pampeana possuíam uma grande mobilidade em seus
territórios e o funcionário parecia acreditar que um “bom” comportamento estava
diretamente relacionado com a permanência fixa em um local.
Em outro momento do texto, ao sugerir quais famílias deveriam povoar a região,
Haedo propõe levar famílias de índios das províncias do Peru que estariam na pobreza.
Ele hierarquiza as famílias que compreende como ideais, criando uma organização que
iria desde o grau de escravidão, bom nascimento e costumes superiores. Os indígenas
poderiam estar em todas essas categorias (HAEDO, 1778, p. 86). A fala do funcionário
mostra como ele enxergava de forma pejorativa os povos que resistiram e não viviam
dentro dos modelos entendidos como aceitáveis. Os indígenas do Peru, segundo o
funcionário, estavam entre os superiores, pois viviam de forma fixa em um local e apenas
estariam em uma situação ruim, devido à falta de terras para plantar (HAEDO, 1778, p.
86-87). Em sua escrita destaca-se a dicotomia entre os indígenas que ele sugere para
povoar a região e os que já habitam a pampa. Os primeiros por praticarem a agricultura e
se estabelecerem de forma mais sedentária em um local e os segundos por terem seus
modos de vida com base em uma dinâmica que valorizava a mobilidade e sazonalidade de
seus agentes.
Para o caso mencionado acima, podemos entender que as famílias indígenas
citadas por Haedo (1778) como melhores para a colonização, seriam as que adquiriram
alguns costumes vistos como adequados dentro da sociedade colonial, ou seja, distante
dos modos indígenas praticados pelas populações pampeanas. No final do século XVIII,
houve uma mudança no discurso e na política de tratamento das populações indígenas,
em que se iniciaram diversas tentativas de assimilação com o intuito de criar súditos que
se encaixassem dentro do pensamento ilustrado. Como por exemplo, os indígenas
missioneiros na região do Paraguai e do Rio da Prata, que após a expulsão dos jesuítas
em 1767, vivenciaram a implantação por parte da coroa espanhola de incentivos para a
aquisição de hábitos e valores culturais espanhóis. Essas medidas foram aplicadas para
dar conta das transformações ocorridas no espaço missioneiro, provocadas pelas
migrações e interações de novos atores que colocavam em risco as clássicas divisões da
legislação colonial. Para a região do Prata, as políticas que se destacaram como
homogeneizantes foram a definição do território com as demarcações dos limites com os
portugueses, a eliminação dos indígenas considerados como infiéis e o povoamento da
campanha (WILDE, 2003, p.109-116).
Particularmente esses dois últimos itens colocados pelo historiador, são bastante
evidentes ao longo das colocações do funcionário colonial, Haedo (1778), que procurou
promover tanto a colonização do espaço pampeano, como o incentivo a substituir os
indígenas que não se enquadraram nas perspectivas coloniais, por outros que
estivessem adaptados aos modos de viver que o funcionário entende como ideais.
Encontramos semelhanças, também, na fala do padre Pasiño (AECBA, TOMO IX, cabildo
del 9 de febrero de 1746, p.116-118), anteriormente colocada sobre os familiares de
indígenas apreendidos em Lujan, principalmente quando nos questionamos o que essas
medidas podem ter influenciado na vida das mulheres. O jesuíta, na tentativa de justificar
sua intervenção para enviar as indígenas às reduções, enfatiza que, além de uma
salvação espiritual, também haveria uma no plano material. Podemos supor que a
argumentação de salvar as mulheres estava relacionada aos seus modos de vida, no
sentido de distanciá-las das práticas que as ligavam aos seus povos como uma
organização social com base na mobilidade e o amancebamento, bastante criticadas por
Haedo (1778), como também no interesse pelo seu trabalho.
Em outro documento, também da década de 1770, podemos observar o que seria
esse modelo de família entendido como ideal pelos funcionários coloniais. Na fonte, nos é
apresentado um contraponto, não equivalente, entre indígenas e não indígenas. Esses
últimos teriam suas famílias estruturadas com marido e esposa morando juntos, em
oposição aos povos indígenas que praticavam o rapto e nas palavras do funcionário
apenas “roubavam crianças” e teriam salvação pela redução (AECBA, 9 de febrero de
1774, p. 131-138).
O contexto da narrativa presente na ata está no avanço ao território dos
indígenas durante a organização da fundação de algumas guarnições na fronteira da
jurisdição de Buenos Aires, próxima das salinas. Os
hispanocriollos
8
, com o intuito de
impedir o avanço dos indígenas nessas construções, solicitaram a mudança de algumas
famílias para fundar um novo
pueblo
. O procurador do local ficaria responsável em zelar
pelos respectivos casais, cuidando para que os soldados e suas mulheres residam juntos
e tenham terras para cultivar. No mesmo informe o funcionário fala da importância em
seguir o proposto pelo Cabildo anteriormente, reduzir, mesmo que de forma obrigatória,
todos os indígenas
gentiles
da região. assim, seria possível impedir as hostilidades, os
avisos de espias
9
e o rapto de súditos (AECBA, Real cedula de 9 de febrero de 1774, p.
131-138).
Percebemos nesse último exemplo como a resposta às investidas coloniais nos
espaços indígenas foi caracterizada de forma pejorativa e diminuída a apenas um
comportamento explicado pela barbárie. Essas colocações foram frequentes e formaram
a base das justificativas civilizatórias que encontraremos em outros documentos,
produzidos tanto por agentes laicos como religiosos, ao longo deste artigo,
principalmente, para o caso das mulheres.
Como relatado no desdobramento do caso dos familiares do cacique Calelian, as
mulheres e crianças foram colocadas sob a responsabilidade dos jesuítas. Desde o início
do século XVIII, muitos indígenas tidos como infiéis e provenientes de diversas regiões
foram encaminhados para as reduções. Um memorial datado no início do Setecentos se
destaca pela quantidade de indígenas deslocada à força aos cuidados dos inacianos. O
texto elaborado pelos religiosos trata dos problemas enfrentados pelas missões do
Uruguai e Paraná com os Yaros e os portugueses, narrando sobre o envio de indígenas
para as reduções como uma forma de lidar com a hostilidade de grupos considerados
infiéis. Entre as dificuldades apresentadas estaria o envio, por parte do governador de
Buenos Aires, de um grupo formado por quinhentos indígenas Yaro para serem batizados
8
Nomenclatura utilizada para se referir à população de origem espanhola nascida na América.
9
Termo utilizado na documentação para se referir aos povos indígenas que mantinham uma intensa
comunicação entre si. No entendimento dos moradores
hispanocriollos,
os indígenas considerados como
aliados eram os responsáveis por avisar seus parentes sobre possíveis ameaças.
e doutrinados dentro da cristã. Segundo os padres, os
pueblos
estavam
sobrecarregados tanto materialmente quanto no quesito humano, tendo uma grande falta
de religiosos, o que tornava difícil a catequização de todos os infiéis (DE ZEA; SANCHEZ,
1702, p. 113).
Bracco (2016, p.208), ao abordar o cativeiro na sociedade missioneira das
reduções do Uruguai, menciona que os capturados, em sua maioria, eram mulheres e
crianças. O autor mostra alguns exemplos, de mais quinhentas indígenas mulheres e
crianças entre os anos de 1701 e 1702 enviadas à força para as reduções devido à guerra
entre o exército jesuítico missioneiro e grupos infiéis. O caso narrado pelo autor
provavelmente é o mesmo apresentado anteriormente pelos jesuítas De Zea e Sanchez
(1702, p. 113), as duas fontes não são iguais, mas possuem os mesmos autores e datas.
Sendo sobre os mesmos indígenas ou não, é possível afirmar que uma quantidade
significativa de mulheres foi encaminhada, contra a sua vontade, para as missões.
Outra observação quanto à forma que a documentação menciona as mulheres. Na
primeira fonte dos inacianos não é mencionado o gênero dos indígenas, não sabemos se
são homens, mulheres ou crianças. Já na documentação utilizada por Bracco (2016)
descobrimos que são mulheres. Outros pesquisadores apontam algo semelhante, como o
trabalho de Vitar (2015, p. 672), no qual explica como as fontes elaboradas pelos jesuítas
tendiam a usar nomenclaturas masculinas para mulheres. O comportamento ficava
evidente quando se narravam atividades tradicionalmente femininas usando uma palavra
genérica ou no masculino para identificar seu agente. No nosso caso, elas foram
mencionadas como famílias ou índios, como observado nas atas do Cabildo sobre o
conflito em Lujan apresentado. Apenas descobrimos que os capturados enviados para
as reduções são especificamente mulheres
10
(AECBA, TOMO IX, cabildo del 13 de enero
de 1746, p. 107-109; cabildo del 9 de febrero de 1746, p.116-118). O ocorrido nos convida a
uma reflexão de como essas indígenas ficam invisibilizadas nas análises, muitas vezes
porque elas não aparecem nas fontes de forma direta.
Na documentação que Bracco (2016, p. 208-209) apresenta ainda informações
complementares sobre a resistência dos indígenas, em que as mulheres capturadas
lutaram junto com os homens usando arcos e flechas. A contenda teria ocorrido na
margem do rio Yi e os quinhentos indígenas capturados seriam especificamente
chusma,
ou seja, mulheres e crianças. Elas foram repartidas e enviadas para diferentes lugares
para que não pudessem voltar às suas terras. Esse comportamento foi recorrente, tanto
10
Nas atas o corregedor de San Domingo Soriano fornece o número de mulheres e jovens, ao pedir ajuda
nos gastos que teve com as sessenta índias capturadas, todas da parcialidade do Calelian. Nos gastos do
trajeto, também foi incluído o valor do velório de algumas delas, que faleceram no trajeto da mudança.
que várias fontes comentam sobre as hostilidades de alguns grupos indígenas para com
os jesuítas motivadas justamente por essas capturas (BRACCO, 2016, p. 209)
11
.
Em muitos momentos o deslocamento foi imposto às famílias indígenas devido a
possíveis comportamentos futuros, como observamos no seguinte caso nas
proximidades de Buenos Aires. Segundo o alcaide,
após a extinção de um povoado,
alguns grupos de
pampas
que estavam sob os cuidados dos jesuítas provocavam receios
quanto a seu comportamento hostil.
12
No final da ata foi proposto, que devido ao perigo
oferecido, eles deveriam ser surpreendidos e retirados com suas famílias da localidade à
força e enviados para a Banda Oriental. O narrador usa como justificativa para as
possíveis hostilidades um caso ocorrido em outro lugar, na fronteira da jurisdição em
Punta de el Sause
. Segundo ele, era urgente fazer isso, pois com base em uma notícia
fresca” de poucos dias, um grupo de indígenas infiéis atacou algumas fazendas próximas,
matando pessoas, levando muitos cativos e animais e com esse reforço, eles poderiam
atacar a qualquer momento. Seu medo parece residir na possibilidade de os índios do
antigo aldeamento avisarem os outros das fraquezas do local. Afinal, segundo o
documento, devido à sua “infidelidade” todos eram conhecidos por espias da terra que
servem apenas para dar aviso aos inimigos do Estado. Como é colocado no final da ata:
“Sejam surpreendidos com suas famílias e sejam remetidos à outra banda deste rio para
que, com sorte, o inimigo não tenha quem o avise” (AECBA, TOMO II, cabildo del 7 de
enero de 1756, p. 10-12, tradução nossa)
13
. Para o funcionário colonial, enviar as famílias
para longe seria uma forma de impedir que elas se comunicassem.
No relato fica evidente a urgência em impedir a comunicação entre indígenas, o
que parece ocorrer de forma bastante rápida e eficiente, ao menos para o
alcalde
. O fato
de essas famílias se tornarem ainda mais “perigosas” no momento em que não estão mais
aos cuidados dos jesuítas levanta alguns questionamentos. O funcionário parece ter sua
motivação em relatos anteriores de hostilidades, destacando como ele percebe os
indígenas de forma genérica. Para ele, todos são espias, inclusive os colocados como
aliados que ao não se encontrarem mais reduzidos se tornavam imediatamente
11
Entre os exemplos apresentados está o desenrolar do acontecido com os familiares capturados do
cacique
Calelian,
mencionados no início do texto. As mulheres foram primeiramente enviadas para San
Domingo Soriano e depois para alguma redução não especificada. O fato de serem infiéis pampas foi
utilizado como justificativa para encaminhá-las para diferentes
pueblos
, pois juntas, segundo a
documentação, seriam de difícil redução à lei cristã (BRACCO, 2016, p. 210).
12
Nas fronteiras ao sul de Buenos Aires houve três tentativas por parte dos jesuítas de redução das
populações indígenas, as chamadas “misión del sur”. Foram experiências curtas entre os anos de 1740 e
1752, são elas:
Nuestra Señora de la Concepción de los Pampas
, para os pampas,
Nuestra Señora del Pilar
,
para os serranos e
Nuestra Señora de los Desamparados
para os tuelchus (MARTINS, 2018, p. 124-125).
13
[no original] “Sean sorprehendidos Con sus familiaz y que Sean remitidos a la Otra banda de este rio para
que de esta Suerte el enemigo no tenga quien le de aviso [...]” (AECBA, TOMO I, cabildo del 7 de enero de
1756, p.12).
perigosos. O aprisionamento de um grande número de indígenas na região foi frequente,
como em 1752 quando ocorreu a captura pela milícia de fronteiras de vinte e sete
indígenas
pampas e serranos que hostilizariam as proximidades de Magdalena e Matansa
(AECBA, Tomo I, cabildo del 3 noviembre de 1752, p. 254-255). O aumento dos relatos de
problemas nas fronteiras pode ser melhor compreendido como uma resposta dos
indígenas ao avanço das populações
criollas
nos territórios ocupados pelos pampeanos.
No Setecentos existiu um aumento nos ataques aos assentamentos situados nas
fronteiras cujo objetivo era a obtenção de cativos e animais. As autoridades em Buenos
Aires costumavam vincular a responsabilidade dessa violência nas fronteiras, do roubo
de gado e de cativos, a alguns grupos indígenas específicos chamados
pampas
e
serranos
. Essas invasões, chamadas de
malones,
tiveram relação com a diminuição do
acesso ao gado livre (
cimarrón
) e poderiam contar com diferentes grupos indígenas.
Existia também o medo da comunicação de grupos considerados pacíficos com os
inimigos de terra adentro que obteriam informações e notícias úteis a suas demandas
(MANDRINI; ORTELLI, 2003 p. 69-70). Essas atividades, como o roubo de animais e
estâncias, geraram uma série de espaços de sociabilidade e pertencimento para
numerosas pessoas de diferentes origens étnicas. Elas praticavam um intenso
intercâmbio material e simbólico
14
que dinamizava suas relações sociais (WILDE, 2003, p.
125-126).
A preocupação em como os indígenas viviam e, principalmente, se esses modos
correspondiam ao esperado, poderia se traduzir em um distanciamento dos contatos e
costumes associados aos infiéis. Um memorial escrito pelo Padre Jaime Pasiño,
representando a Companhia de Jesus, apresentado ao Cabildo em 1746 mostra o
interesse na situação dos indígenas residentes em Buenos Aires e arredores. Segundo o
documento, foi solicitado que os corregedores dos
pueblos
verificassem quais índios e
índias eram casados ou viviam amancebados e quais praticavam serviços na cidade
(AECBA TOMO IX, cabildo del 16 de diciembre de 1746, p. 208)
15
.
Os casos de captura envolviam dinâmicas complexas que confrontavam práticas
indígenas, como o rapto, com a captura de pessoas realizadas pelos sujeitos coloniais. O
primeiro foi usado de forma recorrente como justificativa para a captura de grupos
indígenas. Essa motivação foi utilizada em muitos momentos de forma ampla e genérica,
14
Esses intercâmbios resultaram na multiplicação de espaços chamados de
pulperías
utilizados por
contrabandistas de couros e também como local de troca de bens e informações. (WILDE, 2003, p. 125).
15
O padre é o mesmo que ficou responsável pela transmigração dos familiares do cacique Calelian para as
missões jesuítas no início mesmo ano.
ocasionando o aprisionamento de diversos indígenas não necessariamente envolvidos,
conforme observamos no próximo caso em que o jesuíta admite a dúvida.
No início do Setecentos, existem relatos tanto de incursões de indígenas atacando
alguns
pueblos
do rio Uruguai em busca de cativos, como investidas a partir das próprias
reduções para a captura de indígenas. Nessa documentação se destaca a quantidade de
pessoas aprisionadas pelos padres e a violência dos ataques às tolderias indígenas. O
caso foi narrado pelo jesuíta Rojas e ocorreu em Yapeyú, onde um grupo de Guenoas,
após vários desentendimentos com os locais, raptaram algumas mulheres e crianças do
lugar. Tempo depois, após tentativas de negociações com os caciques e de resgates
frustrados, o jesuíta narra uma série de investidas do mesmo local a grupos próximos,
ocasionando grande número de mortes entre os indígenas (ROJAS, 1708, p. 238-242).
Assim como no caso narrado por De Zea e Sanchez (1702), o relato de Rojas se
destaca pela quantidade de pessoas capturadas, em especial as indígenas. No último
ataque a uma dessas tolderias dos Guenoas, foram retirados à força mais de cem
indígenas, sendo poucos homens e a maioria composta de mulheres, “
criaturas
” e jovens,
que, ao resistirem, morreram entre oito ou dez. Os que sobreviveram, foram
aprisionados e levados a um povoado onde foram “oferecidas” vestimentas, sendo as
crianças mais jovens batizadas e as índias, após algumas tentativas de fuga, repartidas
em diferentes
pueblos
na intenção de catequizá-las. O padre justifica o ataque e
aprisionamento das indígenas como uma resposta à hostilidade dos Guenoas não
cristianizados. Porém, em diversos momentos, Rojas questiona-se sobre os grupos que
sofreram com os ataques, se eles eram os mesmos responsáveis pelas hostilidades
anteriores ou ainda, quem eram, se Guenoas, Yaros ou Mbohas (ROJAS, 1708, p. 238-
242).
As capturas de pessoas poderiam ser utilizadas pelos indígenas como uma forma
de articular seus interesses próprios ou para combater os aprisionamentos praticados
pelos colonos
.
Se destaca em
nossa documentação a atuação de algumas mulheres
indígenas que participaram da negociação de cativos, numa situação ocorrida em Buenos
Aires no ano de 1756. Na ata, um grupo de mulheres indígenas do
Pago de la Matansa
apresentam um memorial para negociar a troca de cativos cristãos pelos familiares
enviados anteriormente para a banda oriental (AECBA, Tomo II, cabildo del 15 de
septembre de 1756, p. 119-120). Segundo o
alcalde,
o memorial discorre sobre: “[...] as
pazes que pedem os índios pampas do Cacique Yati, oferecendo entregar os cativos que
tem em seu poder [...] se devolverem seus parentes que foram despachados prisioneiros
para a outra banda [...]” (AECBA, Tomo II, cabildo del 17 de septembre de 1756, p. 125)
16
.
Essa última tentativa de acordo dialogava com a dinâmica do rapto praticada pelos
indígenas que foi comum o resgate de pessoas por meio da troca.
A prática do rapto foi utilizada como uma justificativa recorrente para ataques
aos territórios e aprisionamentos de indígenas. Nesse contexto, é importante entender
que a captura de pessoas possui um significado diferente quando parte dos poderes
coloniais. Isso não significa que não existissem relações de dominação entre os
indígenas, mas a captura de pessoas quando realizada por agentes coloniais funcionava
dentro de uma lógica civilizatória. Observamos isso em vários momentos nas narrativas
das fontes nas quais as motivações apresentadas para os ataques às tolderias recorriam
tanto a uma ideia de salvação como de adequação.
Sendo assim, é importante pontuar algumas questões sobre as diferenças nas
práticas executadas pelos
hispanocriollos
e pelos indígenas. Mesmo o rapto sendo uma
prática antiga para os grupos pampeanos (MANDRINI; ORTELLI, 2003, p. 61-94), ele
possuía uma lógica diferente do praticado pelos espanhóis; os últimos geralmente
envolviam uma grande quantidade de pessoas aprisionadas com justificativas
específicas, geralmente de adequação aos modos de vida ocidentais, apresentados como
corretos. Essas incursões foram justificadas na documentação como respostas a
comportamentos caracterizados genericamente como violentos pelos agentes coloniais.
Desde o roubo de gado e outros animais, ataques a estâncias e o rapto de pessoas, mas
principalmente motivadas pela expansão aos territórios antes tidos como pertencente
aos indígenas. Entender as diferenças e as significações entre o rapto e o aprisionamento
é importante para responder nossa pergunta inicial sobre quais impactos esses
deslocamentos forçados dos indígenas tiveram para as formações de suas famílias e
como isso influenciou as vivências das mulheres.
Sobre a significação do cativeiro nas sociedades indígenas da região pampeana,
segundo Mandrini e Ortelli (2003, p. 71), um dos indicadores de prestígio social simbólico
e riqueza teria sido o número de esposas, sendo que muitas dessas mulheres eram
obtidas pela compra. Essa acumulação estava vinculada com a concentração de poder de
alguns caciques. Segundo esses mesmos autores, o cativeiro era uma prática antiga e
pertencente aos padrões culturais e dinâmicas indígenas na região do Prata. Em geral, os
cativos eram mulheres de zonas fronteiriças dos territórios indígenas, como povoados e
16
[no original] “laz pasez que piden los indios Panpaz de el Cacique yati, ofresiendo Entregar los Cautivos,
que tienen En Su poder [...] Se lez debuelban Suz parientez que se dezpacharon Prisioneros A la otra banda
[...]” (AECBA, Tomo II,cabildo del 15 de septembre de 1756, p. 119-120; cabildo del 17 de septembre de 1756,
p. 125).
assentamentos rurais. Homens e mulheres eram valorizados como cativos e uma forma
de futura troca e negociação de outros cativos e bens materiais (MANDRINI; ORTELLI,
2003, p. 61-94).
Em relação à prática do rapto para os indígenas, podemos também buscar
algumas possibilidades de explicações nos casos no Brasil. Fausto (1999), ao abordar os
aspectos simbólicos e políticos da guerra nativa, levanta reflexões que podem ajudar no
entendimento desses significados. O autor comenta que o impacto da colonização sobre
as práticas bélicas indígenas gerou diversas mudanças, algumas mais duradouras, outras
não, portanto não podemos pensá-las de forma singular. A partir disso, Fausto apresenta
algumas proposições que permitem pensar nas práticas indígenas como economias que
produzem pessoas e não objetos. Elas necessitam da relação com o exterior para a
reprodução interna por meio da predação do outro (FAUSTO, 1999, p. 266-267).
Mas o que acontecia com essas mulheres capturadas pelos indígenas? Podemos
tentar responder essa pergunta analisando algumas fontes produzidas ao longo do
Setecentos, nas quais alguns funcionários coloniais realizaram entrevistas e colheram
depoimentos de pessoas que conviveram, pelos mais variados motivos, entre os
indígenas situados na fronteira de Buenos Aires com a região da pampa.
17
Nestas falas é
possível perceber que os raptados possuíam certa circulação, aspecto que permitia seu
resgate por meio de trocas, não se configurando como uma condição definitiva para o
cativo.
No depoimento da mãe de um cativo chamada Juana Aragón, que se apresentou
utilizando duas categorias, “índia criolla”, observamos uma série de informações sobre o
cativeiro praticado pelos indígenas. Também se destaca na fala dela, a ambiguidade da
autoidentificação utilizada, termo que não encontramos em nenhum outro documento
desta pesquisa. Ela comenta que foi levada para morar em uma estância pelo pai por ser
uma “índia criolla”, não ficando evidente em qual momento da sua vida. Residindo no
local por algum tempo, conheceu seu primeiro marido e teve cinco filhos, entre eles,
duas mulheres chamadas Margarita e Pasquala. Ela menciona que suas filhas se
encontram no momento como cativas em um lugar onde ela mesma esteve como
cativa, outras duas vezes. Sobre suas capturas, ela explica que a primeira foi durante
17
Sobre essas fontes é necessário realizar algumas ponderações. Elas possuem algumas características
diferentes das colocadas até o momento como, por exemplo, o que apontamos acerca das mulheres
praticamente não terem seus nomes mencionados. Por serem entrevistas, foi necessário identificar a
pessoa entrevistada, então todos o apresentados de forma relativamente completa. Outra observação é
sobre esses depoimentos serem de parentes ou das próprias pessoas capturadas. Diante disso, cabe uma
reflexão sobre sua produção, afinal quase não temos os relatos dos indígenas aprisionados para contar
suas experiências.
quatro meses, sendo resgatada em troca de uma
china
18
que era do cacique Yati, e na
segunda não sabendo especificar a tolderia, onde também foi resgatada em troca de
outras mulheres (ARAGÓN, 1783, p. 60-61).
Pelo relatado percebe-se que a mobilidade do cativeiro entre os indígenas parece
ser mais maleável do que aquele praticado pelos agentes coloniais. Existia entre os
indígenas a possibilidade de resgate desses cativos, aspecto que não acontecia, com
exceções, quando o aprisionamento era praticado pelos agentes coloniais. No relato de
Juana Aragón fica evidente como o rapto não determinava de forma definitiva a condição
da pessoa, funcionando mais próximo a uma lógica de “troca”. Como colocado por
Mandrini e Ortelli (2003, p. 71) e próximo do estipulado por Fausto (1999, p. 266-267) de
uma “produção de pessoas”. Observa-se que não existia uma justificativa moral ou
religiosa para a efetivação da prática, ao contrário dos diversos casos de aprisionamento
apresentados ao longo do texto. Também percebemos uma participação bastante ativa
das mulheres indígenas nessas práticas de rapto.
Na consulta a essa documentação, surgem outras informações pertinentes sobre
os lugares que as mulheres indígenas ocupavam nessa dinâmica de captura de pessoas.
Percebemos em vários momentos que as mulheres eram responsáveis por lidar com os
cativos. Elas são mencionadas pelos entrevistados oferecendo informações,
aconselhando, explicando as dinâmicas locais e, também, se destacaram por serem em
alguns momentos as únicas a falar outro idioma. Como no caso de Zamora e sua família
que foram capturados, e em uma posterior negociação de resgate, uma mulher indígena
atuou como intérprete por ser a única a falar o castelhano (ZAMORA, 1781, p. 40-42).
Elas também forneciam informações essenciais para que o raptado conseguisse sair do
local, desde a direção correta até sua cidade, como informações sobre o seu destino na
tolderia (SANTANA, 1781, p. 47-49), ou conselhos sobre como contornar mal-entendidos
(GONZÁLEZ, 1770, p. 6-7). No conjunto de relatos analisados, elas frequentemente são
mencionadas nas falas mais detalhadas, mas não é possível saber como elas escolhiam os
capturados que auxiliavam ou se recebiam algo em troca da sua ajuda.
Nos raptos praticados pelos indígenas, as mulheres e jovens formavam a maioria
dos cativos, integrando-se de forma mais fácil à sociedade indígena. Mas ao contrário,
elas eram a minoria que regressavam à sociedade
hispanocriolla
(MANDRINI; ORTELLI,
2003, p. 85-86)
.
Como observa-se em outro relato, do
hispanocriollo
Matheo Funes que
foi levado como cativo pelos indígenas, próximo de Lujan, onde ele explica que durante a
18
Juana se refere a todas as mulheres de seu depoimento como
chinas
. Essa palavra representa uma
categoria ambígua, se referindo a mulheres indígenas ou mestiças (REICHEL, 2002, p. 142).
sua permanência nas tolderias conheceu uma mulher chamada Bernarda. Ela lhe contou
que havia sido capturada ainda pequena, mas, quando foi resgatada por seus familiares,
resolveu voltar a viver com os indígenas por causa do filho que teve no local (FUNES,
1780, p.30-31). Segundo Mandrini e Ortelli (2003), a escolha de Bernarda poderia estar
relacionada à condição de algumas mulheres campesinas, que encontrariam um “melhor”
status de vida entre os indígenas. Outras motivações elencadas pelos autores são a
pouca receptividade que elas enfrentavam ao voltar para a sociedade espanhola devido
ao fato de terem vivido entre os indígenas e, como no caso mencionado, seus filhos
(MANDRINI; ORTELLI, 2003, p. 85-86).
Apesar das mudanças forçadas apresentadas até o momento, é necessário
comentar que existiam outros aspectos a influenciar os deslocamentos das populações
indígenas no espaço platino, como discutido por Bracco (2016), Garcia (2011) e Martins
(2018). Para o primeiro, no início do século XVIII, algumas reduções como Yapeyú e San
Borja, eram procuradas como uma forma de amparo para povos como os charruas e
guenoas minuanos, que se preveniam das investidas militares (BRACCO, 2016, p. 203).
Garcia (2011) explica que na fronteira com Portugal também existia um intenso trânsito
voluntário entre os domínios portugueses e espanhóis. Os indígenas aldeados
enxergavam esses deslocamentos como uma opção de vida e suas motivações iriam
desde a obtenção de alguma vantagem das coroas devido às acirradas disputas por
súditos ou interesses pessoais. Para as mulheres o comportamento poderia estar
relacionado a fuga do cotidiano de trabalho pesado nas reduções, pois o meio urbano
oferecia outras oportunidades como vendedoras nas ruas ou criadas em casas abastadas
(GARCIA, 2011, p. 7). Martins (2018) aponta questão semelhante, em que a vida oferecida
nos
pueblos
poderia ser convidativa para alguns indígenas, especialmente para os mais
velhos, mulheres e crianças (MARTINS, 2018, p. 135-140).
Os casos de aprisionamentos relatados possuem vários aspectos importantes que
contribuem para a compreensão do impacto dessa estratégia colonial na vida das
populações indígenas. A captura de pessoas de grupos não submetidos possuía uma
lógica de adequação. As famílias consideradas inadequadas, a chamada
chusma,
dentro
dos padrões estabelecidos pelos agentes coloniais, sofreram tanto com a fragmentação
do grupo ao se separarem homens de mulheres/crianças, como com deslocamentos
forçados para outros territórios. Como observado, essa separação pelo gênero podia ser
intencional, ao responder demandas específicas, como o trabalho na Banda Oriental e
reduções, ou acontecia porque nos conflitos as mulheres e crianças figuravam entre a
maioria sobrevivente.
Esses deslocamentos influenciaram diversas transformações nas sociabilidades e
formações familiares. O trabalho das antropólogas Gómez e Sciortino (2018) apresenta
algumas proposições que ajudam a pensar sobre as consequências dessas práticas para
os indígenas. Segundo as autoras, após o contato, as populações indígenas vivenciaram
alguns fatores responsáveis por reformular as suas organizações sociais, tais como a
desterritorialização, a conversão religiosa e uma sedentarização de grupos que tinham
grande mobilidade em
pueblos.
Isso levou a uma rígida divisão do espaço público e
doméstico que teve um grande impacto para a vida das mulheres. O que, a longo prazo,
fez com que esses ‘novos’ espaços públicos reformulados fossem ocupados
predominantemente por homens.
Para as mulheres e crianças, observamos nas fontes variadas narrativas que
apresentavam a sua captura e as mudanças forçadas, como uma salvação tanto moral
quanto espiritual. O trabalho de Segato (2012) comenta sobre o uso histórico de uma
pretensa salvação de crianças pelos agentes coloniais com a alegação de combater a
violência dos indígenas. Em muitos momentos, essa desculpa foi utilizada como forma de
legitimar a intromissão e dominação nos modos de vida desses povos. Segundo a
antropóloga, o padrão colonial moderno trabalhava dentro de uma lógica binária, que
levava a uma negação de manifestações de alteridades que estavam fora do considerado
como universal. Dessa forma, qualquer comportamento fora do padrão de referência
seria considerado um problema que deveria ser neutralizado (SEGATO, 2012, p. 122). A
reflexão da autora é válida para compreender as justificativas utilizadas nas capturas
praticadas pelos agentes coloniais ao longo desta escrita.
Considerações Finais
A região do Prata envolvia dinâmicas complexas nas quais as atuações indígenas
encontravam variadas formas de se colocar. Desde a pampa argentina até a Bacia do
Prata, existia uma diversidade de povos que tiveram respostas diferentes de acordo com
suas demandas e circunstâncias encontradas. Portanto, a análise procurou trabalhar com
base nessas diversidades de atuações a partir de casos e situações, em alguns momentos
bem particulares, que ajudassem a compreender como as mulheres indígenas estavam
inseridas nessas dinâmicas. As fontes nos mostram um grande número de tensões entre
os indígenas com seus modos de viver e de ser com a sociedade colonial e seus atores.
Essas tensões, muitas vezes subjetivas, ficaram silenciadas em meio a outras questões
consideradas de maior importância pelos narradores.
Em linhas gerais, podemos argumentar que os deslocamentos forçados realizados
em longas distâncias resultaram em uma desintegração e reelaboração dos laços de
reciprocidade e de mobilidade praticados pelos indígenas, antes e durante a entrada dos
espanhóis ao longo do Setecentos. Isso fica evidente nas diversas separações das
famílias, nas quais os agentes coloniais enfatizaram a importância em manter os
indígenas afastados uns dos outros, como nos casos de preocupação com os espias que
avisariam seus parentes das incursões às tolderias, ou quando a separação era uma
tentativa de controle. Elas também se configuraram como uma ferramenta de adequação
social com impacto específico para as mulheres, que estavam entre a maioria dos
capturados.
As argumentações utilizadas pelos agentes coloniais, tanto civis como religiosos,
possuíam algumas semelhanças em questões civilizatórias na organização familiar, como
o amancebamento e a crítica a uma vida com base na mobilidade. No caso dos jesuítas
analisados, observamos uma justificativa que trazia ideias de salvação específicas para
as mulheres, bastante utilizadas nas capturas tanto na pampa argentina como nas
regiões próximas das missões na bacia do Prata. Essa justificativa não foi encontrada no
caso dos homens. Em relação às capturas e às indígenas, percebemos que, quanto aos
casos de raptos praticados pelos indígenas, a atuação das mulheres se destaca. Em mais
de um momento, elas agiram como intermediárias, seja na negociação de cativos com os
poderes coloniais para resgates, ou intérpretes por serem as únicas a falar o idioma e,
principalmente, nas tolderias onde eram as responsáveis pelos cativos.
Referências
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. A atuação dos indígenas na História do Brasil:
revisões historiográficas.
Revista Brasileira de História
, São Paulo, v. 37, n. 75, p. 17-38,
2017.
ALONSO, Graciela; DÍAZ, Raúl. Cuerpo y territorio desde lo alto de una torre: visibilidad,
protagonismo y resistencia de mujeres mapuce contra el extractivismo.
In
: GÓMEZ,
Mariana; SCIORTINO, Silvana. (org.).
Mujeres indígenas y formas de hacer política:
un
intercambio de experiencias situadas entre Brasil y Argentina. Temperley: Tren en
Movimiento, 2018. p. 27-58.
BAPTISTA, Jean Tiago; WICHERS, Camila Azevedo de Moraes; BOITA, Tony Willian.
Mulheres Indígenas nas Missões: Patrimônio Silenciado.
Revista Estudos Feministas
,
Florianópolis, 27(3), v. 27, n. 3, p. 1-14, 2019.
BOCCARA, Guillaume. Mundos nuevos en las fronteras del nuevo mundo.
Nuevo Mundo
Mundos Nuevos
, Debates, posto online no dia 08 fevereiro 2005 (2001), Disponível em:
http://nuevomundo.revues.org/426. Acesso em: 09 jun. 2016.
BRACCO, Diego. Charrúas, bohanes, pampas y guenoa minuanos en los pueblos de
misiones.
Folia Historica del Nordeste
. Corrientes, n. 27, p. 199-212, sep./dic. 2016.
CUNHA, Manuela Carneiro da. O futuro da questão indígena.
Estudos avançados
, São
Paulo, v. 8, n. 20, p. 121-136, 1994.
CATTÁNEO, María del Carmen. Tejedoras y plateros indígenas en la pampa (Siglos XVIII
y XIX).
Historia Regional
, Villa Constitución, n. 3, año XXI, n. 26, p. 191-211. 2008.
FAUSTO, Carlos. Da inimizade: forma e simbolismo da guerra indígena.
In
: NOVAES,
Adauto (org.).
A outra margem do Ocidente
. São Paulo: Companhia das Letras,1999. p. 251
-282.
FLECK, Eliane Cristina Deckmann. De mancebas auxiliares do demônio a devotas
congregantes: mulheres e condutas em transformação (reduções jesuítico guaranis, séc.
XVII).
Estudos Feministas
. Florianópolis, v. 14, n. 3, set./dez. p. 617-634. 2006.
GARCIA, Elisa F. “Ser índio” na fronteira: limites e possibilidades Rio da Prata, c. 1750-
1800.
Nuevo Mundo Mundos Nuevos
, Débats, mis en ligne le 31 janeiro de 2011. p. 1-13.
Disponível em: https://journals.openedition.org/nuevomundo/60732. Acesso em: 01 jul.
2020.
GARCIA, Elisa Frühauf, Conquista, Sexo y esclavitud en la cuenca del Río de la Plata:
Asunción y São Vicente a mediados del siglo XVI.
Americanía
Revista de Estudios
Latinoamericanos
. Nueva Época (Sevilla), n. 2, jul./dic. p. 39-73. 2015.
GOMEZ, Elva Rivera. Los estudios de género y su relación con la historia. La
historiografía reciente 1990-2000.
In
: GUARDIA, Sara B. (org.).
Historia de las Mujeres
en America Latina.
CEHMAL; MURCIA: Departamento de historia Moderna,
Contemporanea y de América, Universidad de Murcia, España, 2002. p. 373-388.
GÓMEZ, Mariana Daniela. Bestias de carga, amazonas y libertinas sexuales. Imágenes
sobre las mujeres indígenas del gran chaco.
In
: SACCHI, Ângela; GRAMKOW, Márcia M.
(org.).
Gênero e povos indígenas:
coletânea de textos produzidos para “Fazendo o
Gênero 9” e para a “27º Reunião Brasileira de Antropologia”. Rio de Janeiro: Museu do
Índio/GIZ/FUNAI, 2012. p. 28-49.
GÓMEZ, Mariana. SCIORTINO, Silvana. Introdução.
In
: GÓMEZ, Mariana; SCIORTINO,
Silvana. (org.).
Mujeres indígenas y formas de hacer política
:
un intercambio de
experiencias situadas entre Brasil y Argentina. Temperley: Tren en Movimiento, 2018. p.
7-26.
GUARDIA, Sara B. Un Acercamiento a la historia de las mujeres.
In
: GUARDIA, Sara B.
Historia de las Mujeres en America Latina.
CEHMAL; MURCIA: Departamento de historia
Moderna, Contemporanea y de América, Universidad de Murcia, España, 2002. p. 365-
372.
IMOLESI, María E. El sistema misional en jaque: la reclusión femenina en las reducciones
jesuíticas de guaraníes.
Anos 90,
Porto Alegre, v. 18. n. 34 dez, 2011. p. 139-158.
LASMAR, Cristiane. Mulheres Indígenas: representações.
Estudos Feministas
,
Florianópolis, v. 7, n.1 e 2, p. 143-156. 1999.
MANDRINI, Raúl. Indios y fronteras en el área pampeana (siglos XVI-XIX). Balance y
perspectivas en
Anuario IEHS
, Tandil, n. 7, 1992.
MANDRINI, Raúl J; ORTELLI, Sara. Una Frontera Permeable: Los indígenas pampeanos y
el mundo rioplatense en el siglo XVIII.
In
: GUTIÉRREZ, Horacio; NAXARA, Márcia;
LOPES, Maria (org.).
Fronteiras: paisagens, personagens, identidades.
Franca; São Paulo:
Olho D’Água, 2003. p. 61-94.
MARTINS, Maria C. B. Índios independentes, fronteiras coloniais e missões jesuíticas.
Revista Brasileira de História & Ciências Sociais
RBHCS, Rio Grande, v. 10, n. 19, p. 123-
145, jan./jun. 2018.
MONTEIRO, John M. Armas e Armadilhas: história e resistência dos índios.
In
: NOVAES,
Adauto (org.).
A outra margem do Ocidente
. São Paulo: Companhia das letras, 1999. p.
237-250.
PERROT, Michelle.
Minha História das Mulheres
. São Paulo: Contexto, 2017.
REICHEL, Heloísa J. La Mujer Rioplatense en la visíon de los viajeros: un sujeto de la
historia.
In
: GUARDIA, Sara B.
Historia de las Mujeres en America Latina.
CEHMAL;
MURCIA: Departamento de historia Moderna, Contemporanea y de América, Universidad
de Murcia, España, 2002. p. 141-150.
REVEL, Jacques. Micro-história, macro-história: o que as variações de escala ajudam a
pensar em um mundo globalizado.
Revista Brasileira de Educação
, Rio de Janeiro, v. 15, n.
45, p. 434-444, set./dez. 2010.
SCOTT, Joan. História das Mulheres.
In
: BURKE, Peter (org.).
A escrita da História
: novas
Perspectivas. São Paulo: Editora Unesp, 1992. p. 63-96.
SEGATO, Rita Laura. Gênero e colonialidade: em busca de chaves de leitura e de um
vocabulário estratégico descolonial.
E-cadernos ces,
Coimbra, n. 18, p. 106-131. 2012.
SOIHET, Rachel. História das mulheres e história de gênero: um depoimento.
Cadernos
Pagu
, Campinas, n. 11, p. 77-83, 1998.
SORIA, José Luis. Hombres y ganado. La construcción social del pastizal pampeano, 1750-
1820.
Anuário IEHS,
Tandil, v. 27, p. 307-320, 2012.
VITAR, Beatriz. Las mujeres chaqueñas en las reducciones fronterizas del Tucumán:
entre la tradición y el cambio (siglo XVIII).
Anuario IEHS
,Tandil, n. 16, p. 223-244, 2001.
VITAR, Beatriz. Hilar, teñir y tejer. El trabajo femenino en las misiones jesuíticas del
Chaco (siglo XVIII)
Anuario de Estudios Americanos
, Sevilla, v. 72, n. 2, p. 661-692,
jul./dic. 2015.
WILDE, Guillermo. Orden y ambigüedad en la formación territorial del río de la Plata a
fines del siglo XVIII.
Horizontes Antropológicos
, Porto Alegre, ano 9, n. 19. p. 105-135, jul.
2003.
Fontes
AECBA: Acuerdos del Extinguido Cabildo de Buenos Aires. Archivo General de la Nación,
Augusto S. Mallié, 1931. Tomo IX (1745-1750), série II; Tomo I (1751-1755) série III; Tomo II
(1756- 1762) série III; Tomo V (1774-1776) série III.
ARAGÓN, Juana. Declaración de Juana Aragón, madre del cautivo Luis Badiola, diciembre
de 1783.
In
: MAYO, C. (org.).
Fuentes para el estudio de la frontera, voces y testimonios
de cautivos, fugitivos y renegados. (1752-1790).
UNMdP, 2002, p. 60-61. Disponível em:
https://aportesdelahistoria.com.ar Acesso em: 29 mai. 2019.
DE ZEA, Juan B.; SANCHEZ, Matheos. Memorial dos superiores das missões [...] 1702, p.
113-148.
In
:
Manuscritos da Coleção de Angelis:
Tratado de Madri: antecedentes - Colônia
do Sacramento (1669-1749)
. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional. 1954. 470 p. Disponível
em:
<http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_manuscritos/mss1019246/mss1019246.pdf>.
Acesso em: 20 mar. 2018.
FUNES, Matheo. Declaración del cautivo Matheo Funes, octubre de 1780.
In
: MAYO, C.
(org.).
Fuentes para el estudio de la frontera, voces y testimonios de cautivos, fugitivos y
renegados (1752-1790).
UNMdP, 2002, p. 30-31. Disponível em:
https://aportesdelahistoria.com.ar Acesso em: 28 mai. 2018.
GONZÁLEZ, Sebastián. Declaración de Sebastián González, Octubre de 1770.
In
: MAYO,
C. (org.).
Fuentes para el estudio de la frontera, voces y testimonios de cautivos,
fugitivos y renegados (1752-1790).
UNMdP, 2002, p. 6-7. Disponível em:
https://aportesdelahistoria.com.ar Acesso em: 28 mai. 2018.
HAEDO, Felipe de. Descrição histórico-geográfica da Colônia do Sacramento e um dos
portos do Rio da Prata [...] 28/01/1778. p 71-90.
In
:
Manuscritos da Coleção de Angelis:
Do Tratado de Madri à conquista dos Sete Povos:
(1750-1802). Rio de Janeiro: Biblioteca
Nacional, 1969. Disponível em
<http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_manuscritos/mss1019248/mss1019248.pdf>.
Acesso em: 20 mar. 2018.
ROJAS, Salvador de. Situação das reduções do Uruguai em 1707. São Borja, 1708, p. 248.
In
:
Manuscritos da Coleção de Angelis
:
Jesuítas e Bandeirantes no Uruguai (1611-1758).
Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1970. Disponível em:
<http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_manuscritos/mss1019245/mss1019245.pdf>
Acesso em: 20 mar. 2018.
SANTANA, María P. Declaración de la cautiva María Paula Santana, febrero de 1781.
In
:
MAYO, C. (org.).
Fuentes para el estudio de la frontera, voces y testimonios de cautivos,
fugitivos y renegados (1752-1790).
UNMdP, 2002, p. 47-49. Disponível em:
https://aportesdelahistoria.com.ar Acesso em: 29 mai. 2019.
ZAMORA, Pedro. Declaración del cautivo Pedro Zamora, febrero de 1781.
In
: MAYO, C.
(org.)
Fuentes para el estudio de la frontera, voces y testimonios de cautivos, fugitivos y
renegados. (1752-1790).
UNMdP, 2002, p. 40-42. Disponível em:
https://aportesdelahistoria.com.ar Acesso em: 29 mai. 2019.