LIMA, Vinicius Soares de
*
https://orcid.org/0000-0001-5799-1931
RESUMO: Nosso tema é a relação entre as
elites nativas não incaicas dos Andes, os
curacas, e a heterogênea prática sacrificial
originária dos Andes conhecida como
Capacocha. Com base em escritos dos frades
Bartolomé de las Casas e Juan Ginés de
Sepúlveda, discutiremos como setores
eclesiásticos se posicionaram diante dos
relatos recém-chegados do Novo Mundo. Em
seguida, veremos como os curacas e a
capacocha estão representados nas crônicas
de Felipe Guamán Poma de Ayala e Inca
Garcilaso de la Vega. Por fim, analisaremos
uma evidência arqueológica que lança luz
sobre as elites nativas e os ritos sacrificiais, e
mostraremos como a Capacocha aparece em
um documento jurídico do século XVI. Com
tudo isso, buscamos fortalecer a tese de que a
Capacocha era um dos mais importantes
meios de ascensão social dos curacas.
PALAVRAS-CHAVE: Capacocha; Sacrifícios
humanos; Curaca; Crônicas; Llullaillaco.
ABSTRACT: Our theme is the relation between
the native non-Inca elites in the Andes, the
curacas, and the heterogenic sacrificial
practice original from the Andes known as
Capacocha. Based upon writings by friars
Bartolomé de las Casas and Juan Ginés de
Sepúlveda, we shall discuss how ecclesiastic
sectors reacted before the newly arrived
accounts from the New World. Then, we shall
see how the curacas and the capacocha are
represented in the chronicles by Felipe
Guamán Poma de Ayala and Inca Garcilaso de
la Vega. Lastly, we shall analyze archeological
evidence that sheds light upon the native elites
and the sacrificial rites, followed by an
account of how the Capacocha appears in a
legal document from the sixteenth century.
With that in mind, we aim to strengthen the
thesis that capacocha was one of the most
important means of social climbing of which
curacas could dispose.
KEYWORDS: Capacocha; Human sacrifices;
Curaca; Chronicles; Llullaillaco.
Recebido em: 15/03/2020
Aprovado em: 13/08/2020
* Mestre em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, campus de Franca-SP. E-
mail: vinilima100@gmail.com
Este é um artigo de acesso livre distribuído sob licença dos termos da Creative Commons Attribution License.
Introdução
Uma das primeiras coisas observadas pelos espanhóis que desembarcaram nos
Andes a partir de 1532 foi a obediência dada pelos índios a seus líderes e as diferentes
funções que tais chefes exerciam na sociedade. Chamadas de curacas na língua quéchua,
essas autoridades étnicas desempenhavam funções diversas, tais como o comando
militar, a administração das forças de trabalho, rituais religiosos, controle de armazéns e
estradas, supervisão de construções, entre outras. Ávidos por alcançar o enriquecimento
rápido e garantir o sucesso da evangelização, as hostes espanholas logo entenderam que
alianças com os curacas seriam imprescindíveis para alcançar os objetivos da Coroa.
Nesse contexto, era preciso primeiro converter os curacas ao cristianismo e garantir que
eles se tornariam intermediários aptos a viabilizar a colonização dos Andes.
Do outro lado do oceano, as camadas sociais mais altas dos recém-unificados
reinos ibéricos, especialmente os membros do clero, discutiam qual seria o tratamento a
ser dispensado para os povos nativos da América. Com um olhar atento aos relatos que
chegavam do Novo Mundo, o clero cristão julgava os costumes e hábitos ingenas que
os invasores europeus descreviam. De um lado, havia aqueles que defendiam que a
evangelização deveria ocorrer pelo amor, seguindo o exemplo de Cristo e seus apóstolos.
Entre esses, estava o frade dominicano Bartolomé de Las Casas (1484-1566). Do outro
lado, estavam aqueles que acreditavam que certos elementos das culturas autóctones
dos territórios recém-encontrados justificavam o uso da força armada para subjugar
aquelas populações e, a partir daí, evangelizar. O mais importante representante desses
na Península Ibérica foi o também dominicano Juan Ginés de Sepúlveda (1494-1573).
Quase cem anos depois do início desses debates, dois cronistas nativos do Peru
escreveram longas crônicas dedicadas a contar, cada uma, a visão de seu autor sobre a
história dos Andes desde sua origem mítica até a colonização espanhola no século XVI.
Trata-se de Felipe Guamán Poma de Ayala (1530?-1616?), filho de um curaca Yarovilca e
de uma nobre incaica, e Inca Garcilaso de la Vega (1539-1616), o mestiço filho de um
conquistador espanhol e descendente direto dos incas. O legado de Guamán Poma é a
Nueva Corónica y Buen Gobierno (AYALA, 1987), o famoso manuscrito descoberto
somente no século XX, e que contém uma extensa crítica das ações dos colonizadores
espanhóis e do governo incaico pré-1532 em mais de mil cento e oitenta e nove páginas e
centenas de desenhos feitos a tinta. Garcilaso de la Vega, por sua vez, nos deixou uma
série de obras publicadas ainda no século XVII. Para este artigo, consideraremos sua
crônica Comentarios Reales de los Incas (VEGA, 1991)
1
, que apresenta uma firme defesa
do cristianismo e um grande esforço por honrar a memória de seus antepassados
incaicos. Ambos os autores criaram, em suas crônicas, representações dos curacas
coloniais e pré-hispânicos. Ao pensarmos tais representações conjuntamente com
evidências arqueológicas e outros documentos da época, encontramos pistas sobre os
curacas antes e depois de 1532.
É importante salientar que a relevância desses autores não está tanto em suas
condições étnicas, mas em seus escritos. As crônicas peruanas dos séculos XVI e XVII
devem ser pensadas como elementos de uma nascente tradição escrita hispano-
americana, com uma dinâmica própria de elementos de origem autóctone e europeia.
Nela estão presentes aspectos tanto das culturas europeias quanto das nativas, o que
independe da identidade de cada autor que escreveu nas colônias ou na Espanha, como
no caso do mestiço Garcilaso. Em alguns casos, os próprios cronistas podem demonstrar
algumas ambiguidades quando tentam definir quem são (LIMA, 2019, p. 22). Nos
Comentários Reales de los Incas de 1609, por exemplo, há ocasiões em que o autor se
considera mestiço (VEGA, 1991, p. 389; 518; 625; 627), outras em que usa a primeira
pessoa do plural para se definir espanhol
2
(VEGA, 1991, p. 87; p. 454) e há, ainda, trechos
nos quais ele se considera um índio (VEGA, 1991, p. 19; 49; 81; 94; 503; 610). Essa
ambiguidade faz sentido quando consideramos que o autor desejava, ao mesmo tempo,
provar seu valor para os espanhóis e glorificar o passado de seu próprio povo. Na
narrativa, sempre que o autor afirma um desses desejos, ele apresenta a faceta
identitária mais condizente com a cultura que ele deseja enaltecer no momento.
Ao admitir a existência de conjuntos de obras categorizados como “indígena”,
“espanhol” ou “mestiço”, é preciso reconhecer que tais categorias jamais existiram
isoladamente, e que elas necessariamente aludem a alguns aspectos de cada indivíduo
que atuou na colonização. As fontes coloniais sugerem que a apropriação dos saberes e
tecnologias indígenas foram imprescindíveis para a viabilização do estabelecimento da
presença espanhola no Novo Mundo. Da mesma forma, posteriormente, as populações
1
Como ambos os cronistas possuem nomes extensos, optamos por citá-los utilizando apenas o último
nome de cada autor, mesmo que na historiografia ambos sejam citados, usualmente, com todas as palavras
do sobrenome. Assim, a obra de Felipe Guaman Poma de Ayala será citada como (AYALA) e a de Inca
Garcilaso de la Vega como (VEGA). Desta forma, é possível manter os parênteses mais curtos e facilitar a
leitura do texto.
2
Garcilaso jamais afirmou, diretamente, ser um espanhol, como faz ao se autoproclamar mestiço, “[...] de
boca cheia.” (VEGA, 1991, p. 505). De qualquer forma, a posição de Garcilaso é fundamentalmente a de um
aristocrata, que passou toda a vida adulta em meio aos círculos da nobreza e dos letrados na Espanha. Ele
valoriza tanto sua estirpe nobre de origem incaica quanto a espanhola, das quais descende,
respectivamente, pela linhagem materna e paterna. No universo conceitual do autor, índios, mouros e
negros figuram em um patamar inferior, e o cronista chegou até mesmo a adquirir escravos negros e
mouros em ao menos duas ocasiões: 1568 e 1571. (VIGIL, 2016, n.p.).
nativas foram paulatinamente levadas a viver de acordo com os preceitos da cristã e
da Coroa Espanhola. A informação histórica, o pensamento e os conceitos utilizados
pelos diferentes autores se afetavam mutuamente.
3
Assim, reiteramos que a etnia do
autor, em si, não serve como princípio para conduzir investigações que envolvam as
crônicas. Atribuir importância demasiada à ascendência étnica de um autor pode levar ao
erro de considerar tais documentos como receptáculos de algo como uma visão
“tipicamente nativa” a respeito da colonização.
4
O que nos interessa, aqui, não é a
ascendência de cada cronista, mas a marcante divergência que nas maneiras como
esses autores representam os curacas e as práticas e estruturas de poder com eles
relacionadas.
O aporte das tradições nativas registradas nas crônicas traz uma série de
questões específicas, e compreen-las é fundamental para entender os contatos que
ocorreram entre europeus e indígenas ao longo do período colonial. Ao lidar com essas
tradições, o historiador se depara com vários problemas específicos, tais como a
natureza dos registros produzidos por tais tradições, o entendimento (ou não) dos
sistemas de registro pelo estudioso, a existência ou ausência de escritos alfabéticos
nativos e a continuidade ou descontinuidade dessas tradições até o presente. No caso
dos Andes centrais, o problema é particularmente grave, pois o principal meio de
registro legado pelas culturas autóctones, o quipu, ainda é pouco compreendido pelos
pesquisadores atuais (SANTOS, 2004, p. 160-163). De qualquer forma, permanece o fato
de que os primeiros cronistas do Peru registraram, como podiam, as práticas e ideias que
permeavam a vida dos povos andinos.
Uma das características mais marcantes das tradições andinas representadas nas
crônicas é o ato de perceber o mundo em termos de dualidades, especialmente aquela
entre alto e baixo. O ato de compreender a realidade nesses termos provavelmente se
origina das peculiares características geográficas dos Andes, com a grande valorização
das distâncias verticais, que proporcionavam uma significativa variedade de veis
ecológicos entre a costa e a montanha (SANTOS, 2004, p. 178). A polaridade entre hanan
(acima vida, ordem, luz) e hurin (abaixo morte, desordem, trevas) era complementar,
e por isso deviam os seres do mundo transitar eternamente entre ambas.
3
Neste artigo, defenderemos a ideia de que uma boa compreensão das crônicas não pode prescindir do ato
de “[...] eliminar o traço de fronteiras claras e delineadas para pensar simplesmente em dois dos extremos
do espectro etno-cultural novo-hispano: indígena e espanhol.” (OKUBO, 2007, p. 86).
4
Nos estudos andinistas, um dos principais defensores dessa ideia nas décadas de 1960 e 1970 foi Nathan
Wachtel (1971).
Outro elemento importante das tradições andinas que utilizaremos para
compreender a relação entre os curacas e as práticas sacrificiais, e que também se
relaciona com o tempo e o espaço nos Andes, é o sistema de ceques:
O sistema de ceque de Cuzco consistia de 41 ceques, saindo do templo central
do Sol, Coricancha. Juntos eles organizavam 328 pontos de referência
(landmarks) no vale de Cusco que como lugares de adoração (places of
worship) foram considerados huacas. Em cada ceque estava enumerada uma
quantidade variável de huacas em direção ao lado de fora em relação a um
ponto específico no horizonte visto de Coricancha; entretanto, de acordo com a
distância do horizonte e/ou em função do ceque, este podia terminar antes, no
ou além do horizonte. Cada ceque estava, pois, relacionado a uma direção reta
particular como linha de visão (sightline). (ZUIDEMA, 1964, p. 80).
Nesse sistema, o passado era representado em huacas, que poderiam ser altares,
tumbas ou pedras (SANTOS, 2004, p. 181). Por trás dessa prática, estava a concepção de
que os mortos e o passado continuavam presentes de outra forma, e aptos a um eventual
retorno para o mundo em tempos de um novo pachacuti. Como veremos neste artigo,
evidências que sugerem uma correlação entre os locais e a mobilidade dos rituais de
sacrifícios e esse sistema.
Consideraremos, pois, além dos textos das crônicas, algumas evidências
arqueológicas recentes que lançam luz sobre as características do poder dos curacas
durante o Tahuntinsuyu, e como tal poder estava relacionado com o ritual da Capacocha
o sacrifício humano nos Andes. Tal prática causou grande espanto entre os cristãos,
até mesmo nos mais argutos defensores dos indígenas. Os quatro autores supracitados
dedicam importantes espaços de suas obras sobre o tema, e o utilizam como base para
diversas formas de argumentação, como veremos ao longo deste trabalho. Com base em
nossas crônicas e no debate entre Sepúlveda e Las Casas, mostraremos como a questão
dos sacrifícios humanos foi instrumentalizada para servir a diferentes anseios e projetos
envolvidos na colonização dos Andes. As representações escritas manifestam atitudes e
pontos de vista que por vezes se mostram diametralmente opostos e constituem,
portanto, um bom ponto de partida para compreender as relações de poder que agiam
sobre as terras do Tahuantinsuyu antes e depois de 1532.
Por outro lado, é importante destacar que descrições dessas práticas não se
restringem ao âmbito das crônicas. A Capacocha figura em documentos jurídicos que
registram disputas por terras e favores da Coroa por curacas nas primeiras décadas
do período colonial. As práticas sacrificiais já estavam a ser discutidas e usadas como
argumento nos primeiros tribunais que surgiram no Peru do século XVI. Ao dialogar com
as fontes supracitadas, observamos que a Capacocha foi uma preocupação de cronistas,
curacas, padres, administradores e juízes coloniais ao longo dos séculos XVI e XVII. Além
do que podemos encontrar nas narrativas coloniais, a arqueologia traz pistas sobre a
relação entre a capacocha e os curacas, encontradas nos sítios arqueológicos e
artefatos pré-hispânicos do antigo Tahuantinsuyu. Neste artigo, veremos como um
desses sítios
5
traz importantes evidências para compreender a importância dos curacas
na expansão do Tahuantinsuyu.
Neste artigo, procuramos divulgar os resultados da dissertação de mestrado Os
curacas andinos nas crônicas de Felipe Guamán Poma de Ayala e Inca Garcilaso de la
Vega, no que diz respeito ao tema da relação entre os sacrifícios humanos e o poder e
legitimação dos curacas. Com base no que foi dito acima, ampliaremos o tema e
discutiremos evidências de modo a mostrar que, se pensadas em conjunto, as crônicas, a
arqueologia e os registros jurídicos do início do século XVI trazem elementos para
fortalecer a tese
6
de que a Capacocha era um dos mecanismos mais importantes para a
ascensão social e a manutenção do poder dos curacas do Tahuantinsuyu até o momento
da chegada dos espanhóis, e que tal prática persistiu nas discussões acadêmicas, nas
crônicas e nos tribunais espanhóis pelo menos até o início do século XVII.
“Gente selvagem”: cruéis ou mansos?
Ao debater sobre a legitimidade da conquista armada dos Andes, os frades
antagonistas Bartolomé de Las Casas (1484-1566) e Juan Ginés de Sepúlveda (1494-1573)
exemplificaram os principais argumentos correntes na metade do século XVI a respeito
da maneira como deviam ser pensados os costumes nativos observados pelos primeiros
espanhóis a chegar ao território do Tahuantinsuyu.
7
De um lado, Las Casas criticava os
abusos cometidos pelos colonizadores espanhóis contra as populações nativas, e
defendia que a evangelização dos povos ameríndios deveria ocorrer de forma pacífica.
De outro, Sepúlveda teceu duras críticas a certos costumes e modos de vida nativos, que
ele caracterizava como bárbaros e incivilizados. Para esse autor, era legítimo fazer
5
É certo que os estudiosos já se debruçaram sobre incontáveis vestígios materiais das práticas sacrificiais
andinas. Aqui, escolhemos tratar do caso das múmias do vulcão Llullaillaco, pois essas se encontram em
perfeito estado de conservação, tanto dos corpos imolados quanto dos símbolos que descansam junto das
vítimas. Além disso, foi o caso que estudamos na dissertação sobre a qual se baseia o presente texto.
6
É importante salientar que o autor do presente artigo não criou tal tese, mas busca, à luz das crônicas e
outros documentos textuais, ajudar a embasá-la, com base em autores que realizaram importantes
descobertas sobre o tema nas últimas décadas.
7
Este debate foi o cerne da famosa contenda de Valladolid, que ocorreu em 1550 e 1551 na cidade. Neste
episódio, a discussão entre Las Casas e Sepúlveda girou em torno do conceito de guerra justa, elaborado
pelo filósofo Aristóteles, que acreditava que os bárbaros eram naturalmente escravos (GUTIÉRREZ, 2014,
p. 224). Com base no pensamento aristotélico, Sepúlveda sustentou que, sendo os índios bárbaros, eles
podiam ser escravizados. Las Casas, por outro lado, usou o mesmo Aristóteles para defender que existiam
várias classes de barbárie, e que os índios se encontravam em um estágio de barbárie que não justificava a
guerra justa nem a escravidão (GUTIÉRREZ, 2014, p. 225).
guerra contra os nativos que se recusassem a aceitar a fé cristã ou se rebelassem contra
ela.
Para o dominicano Las Casas, os indígenas não eram naturalmente maus. Ao
contrário, eram pessoas de natureza pacífica, mansa e sem rancor. Na opinião do clérigo,
os povos autóctones deveriam servir aos cristãos em troca de proteção e do acesso à
cristã. Tal proteção seria necessária porque, para o dominicano, os índios eram pessoas
mais fracas e delicadas que os colonizadores espanhóis, menos aptas ao trabalho pesado
e mais suscetíveis às doenças. Diz o autor:
Todas estas universais e infinitas gentes, a toto genere, criou Deus os mais
simples, sem maldades nem insinceridades, obedientíssimas, fidelíssimas a seus
senhores naturais e aos cristãos a quem servem; mais humildes, mais pacientes,
mais pacíficas e quitas, sem brigas e confusões, não lascivos, o queixosos,
sem rancores, sem ódios, sem desejar vinganças, que no mundo. São assim
mesmo as gentes mais delicadas, fracas e ternas em “complisión” e que menos
podem sofrer trabalhos, e que mais facilmente morrem de qualquer
enfermidade; que nem filhos de príncipes e senhores entre nós, criados em
privilégio e delicada vida não somos mais delicados que eles, ainda que sejam
dos que entre eles são de linhagem de trabalhadores. (LAS CASAS, 2011, p. 13,
tradução nossa).
8
Mais adiante, Las Casas chega ao ponto principal de sua defesa das populações
autóctones. O padre acreditava que os índios eram aptíssimos a receber a fé cristã e
aprender a doutrina da igreja. Por isso, deveriam ser tratados como potenciais cristãos,
não como escravos ou inimigos:
São isso mesmo de limpos e desocupados e vivos entendimentos, muito capazes
e dóceis para toda boa doutrina; aptíssimos para receber nossa santa fé católica
e serem dotados de virtuosos costumes, e os que menos impedimentos têm para
isso, que Deus criou no mundo. E são tão inoportunas uma vez que começam a
ter notícia das coisas da fé, para sabê-las, e em exercitar os sacramentos da
Igreja e o culto divino, que digo em verdade que os religiosos precisam, para
aguentá-los, ser dotados por Deus de dom muito assinalado de paciência; e,
finalmente, ouvi dizer que a muitos seculares espanhóis de muitos anos para
e muitas vezes, não podendo negar a bondade que neles vêem: “Certo que essas
gentes seriam as mais bem-aventuradas do mundo se somente conhecessem a
Deus” (LAS CASAS, 2011, p. 14, tradução nossa).
9
8
[No original] Todas estas universas e infinitas gentes, a toto genere, crio Dios los más simples, sin
maldades ni dobleces, obedientísimas, fidelísimas a sus señores naturales y a los cristianos a quien sirven;
más humildes, más pacientes, más pacíficas y quietas, sin rencillas ni bollicios, no rijosos, no querulosos,
sin rancores, sin odios, sin desear venganzas, que hay en el mundo. Son así mismo las gentes más
delicadas, flacas y tiernas en complisión y que menos pueden sufrir trabajos, y que más fácilmente mueren
de cualquiera enfermedad; que ni hijos de príncipes y señores entre nosotros, criados en regalos y delicada
vida no son más delicados que ellos, aunque sean de los que entre ellos son de linaje de labradores” (LAS
CASAS, 2011, p. 13).
9
[No original] Son eso mesmo de limpios e desocupados e vivos entendimientos, muy capaces e dóciles
para toda buena doctrina; aptísimos para recebir nuestra sancta fee católica e ser dotados de virtuosas
costumbres, e las que menos impedimientos tienen para esto, que Dios crió en el mundo. Y son tan
importunas desque una vez comienzan a tener noticia de las cosas de la fee, para saberlas, y en ejercitar
los sacramentos de la Iglesia y el culto divino, que digo verdad que han menester los religiosos, para
Para Las Casas, portanto, os povos indígenas da América eram criaturas fracas,
dóceis e infantis, como crianças ingênuas prontas a receber os primeiros ensinamentos
da cristã. Juan Ginés de Sepúlveda, por outro lado, tinha uma visão radicalmente
oposta. Ele não apenas duvidava dessa suposta fraqueza, mas via em algumas tradições,
crenças e práticas nativas uma vileza que ameaçava a e a moral cristãs. Sepúlveda
defendia uma resposta dura aos nativos que desafiassem o poder da Coroa espanhola e
recusassem o cristianismo:
Semelhante é o pensamento dos filósofos, como também o dos juristas, que
asseguram que se pode por direito natural inclusive obrigar com as armas, se o
rechaçam, as gentes selvagens, ou seja, aquelas que tem costumes e instituições
abertamente contrárias à razão natural para que se submetam ao mando dos
mais humanos e prudentes, a fim de que se governem por leis consideradas
justas por eles e pela natureza. Neste caso estavam os índios, que violavam em
grande medida esse direito natural, ora com o culto dos ídolos, ora com
numerosos homicídios, admitidos coletivamente, além de inocentes que
sacrificavam aos demônios nos altares ímpios, como também de mulheres
principais, às que sepultavam vivas ao entrerrar seus maridos. (SEPÚLVEDA,
1976, p. 202, tradução nossa).
10
As ideias dissonantes de Las Casas e Sepúlveda representam um dos principais
debates que marcou o Ocidente cristão no século XVI, ou seja, sobre como se deveria
lidar com as populações americanas recém-encontradas. O eixo principal de tal debate
era a legitimidade das conquistas armadas, e se era possível ou não realizar a conversão
dos nativos. Cético sobre a imagem de pureza e benevolência inata que Las Casas criou
para os índios, Sepúlveda sustentava que a ação cristã contra os indígenas que se
recusassem a aceitar a era uma guerra justa. De acordo com estudiosos do
pensamento de Sepúlveda, a guerra justa, na concepção do padre, era justificada por
quatro motivos diferentes:
1) Os índios eram menos cultos e civilizados que os espanhóis, assim como os
príncipes nativos o eram em relação aos espanhóis, sendo incapazes de
governar-se, o que aturoizava os conquistadores a submetê-los; 2) Os índios
americanos cometiam pecados contra a Natureza (sacrifícios humanos,
sufrillos, ser dotados por Dios de don muy señalado de paciencia; e, finalmente, yo he oído decir a muchos
seglares españoles de muchos años acá e muchas veces, no pudiendo negar la bondad que en ellos veen:
«Cierto estas gentes eran las más bienaventuradas del mundo si solamente conocieran a Dios»” (LAS
CASAS, 2011, p. 14).
10
[No original] Semejante es el pensamento de los filósofos, como también el de los juristas, quienes
aseguran que se puede por derecho natural incluso obligar con las armas, si lo rechazan, a las gentes
salvajes, es decir, a las que tienen costumbres e instituciones abiertamente contrarias a la razón natural
para que se sometan al mando de los más humanos y prudentes, a fin de que se gobiernen por leyes
consideradas justas por ellos y por naturaleza. En este caso estaban los índios, que violaban en gran
manera este derecho natural, ya con el culto de los ídolos, ya con numerosos homicídios, admitidos
colectivamente, bien de inocentes que sacrificaban a los demônios en las aras impías, como también de
mujeres principales, a las que sepultaban vivas al enterrar a sus maridos” (SEPÚLVEDA, 1976, p. 202).
antropofagia) e essa razão era suficiente para submetê-los mediante a guerra;
3) As autoridades cometiam sacrifícios humanos que recaíam sobre os corpos
dos inocentes, pelo que se justificava o castigo carrascos por meio da guerra; 4)
Os cristãos tinham obrigação de predicar o evangelho, inclusive por meio da
força, se não era possível por outros meios (SALVADOR, 2009, p. 96).
11
Os tópicos 2 e 3 da citação acima tocam o ponto de interesse do presente artigo.
Como se nota com a leitura, o sacrifício humano realizado pelos andinos era um dos
pilares da defesa da guerra justa por Sepúlveda. A presença desse tema nos debates que
orbitam a contenda de Valladolid indica que a questão dos sacrifícios humanos no
continente americano teve grande importância para os colonizadores espanhóis. Nas
páginas seguintes, veremos como tal questão se manifesta nas obras de dois cronistas
indígenas da passagem do século XVI para o XVII: Felipe Guamán Poma de Ayala e Inca
Garcilaso de la Vega, e o que de comum entre essas narrativas e vestígios
arqueológicos de imolações de vítimas humanas que datam do Tahuantinsuyu.
Os incas sacrificavam vítimas humanas?
Como dissemos acima, a obra Comentarios Reales de los Incas é um grande
esforço de seu autor para honrar seus antepassados incas e combater algumas noções
arraigadas nos escritos espanhóis sobre os povos incaicos. De acordo com o Inca
Garcilaso, os povos incaicos jamais realizaram um sacrifício humano sequer. Trata-se de
uma afirmação incomum entre as crônicas produzidas sobre a realidade peruana no pós-
1532.
12
É certo que, naquela obra, Garcilaso admite a existência de sacrifícios humanos
entre os nativos andinos. Porém, o autor afirma, por vezes, que tal prática ocorria
apenas entre os nativos não incas do Tahuantinsuyu (VEGA, 1991, p. 87, 91, 171, 193). Ao
se referir aos nativos que habitavam a região do Antisuyu, a parte amazônica do império
Inca, Garcilaso faz uma citação direta do padre jesuíta Blas Valera (1545-1597), um dos
primeiros cronistas a escrever sobre os povos andinos. A citação discorre sobre o
tratamento que os nativos daquela região davam aos inimigos capturados na guerra:
11
[No original] 1) Los indios eran menos cultos y civilizados que los españoles, así como los príncipes
nativos lo eran respecto de los españoles por lo que eran incapaces para gobernarse, lo cual autorizaba a
los conquistadores a someterlos; 2) Los indios americanos cometían pecados contra la Naturaleza
(sacrifícios humanos, antropofagía) y esa razón era suficiente como para someterlos mediante la guerra; 3)
Las autoridades cometían sacrificios humanos que recaían sobre los cuerpos de inocentes, por lo que se
justificaba el castigo de los verdugos a través de la guerra; 4) Los cristianos tenían la obligación de
predicar al evangelio, incluso a través de la fuerza si no era posible a través de otros medios.”
(SALVADOR, 2009, p. 96).
12
A maioria dos cronistas coloniais traz narrativas acerca da prática de sacrifícios humanos pelos incas.
Uma notável exceção, entre autores de origem ibérica, é a do jesuíta Blas Valera, que defende a noção de
que os incas jamais praticaram tais sacrifícios. Na concepção do padre, os incas teriam sido responsáveis
por iniciar um processo de civilização entre os nativos peruanos, que teria preparado as populações
andinas para receber o cristianismo. O Inca Garcilaso defendia a mesma ideia, e cita Valera diretamente
em várias partes de sua obra (VEGA, 1991, p. 41-42).
Se ao tempo que atormentavam ao triste [este] fizesse algum sinal de
sentimento com o rosto ou com o corpo ou desse algum gemido e suspiro,
fazem pedaços de seus ossos depois de terem comido-lhe as carnes, entranhas
e tripas, e com muito menosprezo os jogam no campo ou no rio. Mas se nos
tormentos se mostrou forte, constante e feroz, havendo comido suas carnes
com todo o interior, secam os ossos com seus nervos ao sol e os em no alto
dos morros e os têm e adoram por deuses e lhes oferecem sacrifícios. Esses são
os ídolos daquelas feras, porque não chegou o Império dos Incas a eles e nem
até agora chegou o dos espanhóis, e assim estão hoje em dia. (VALERA, apud
VEGA, 1991, p. 41, tradução nossa).
13
Garcilaso considera que havia formas de sacrifício menos cruéis em outras etnias
nativas, como o uso de sangue humano coletado por meio de sangrias, e não do
assassinato da vítima (VEGA, 1991, p. 57). Mas, de qualquer forma, o autor usa esses
rituais como meio para provar que os incas salvaram os povos andinos do barbarismo.
14
Garcilaso coloca seus ancestrais incas como responsáveis por algo análogo a uma
missão civilizadora. E, embora fossem um povo idólatra, os incas destruíram as formas
mais bárbaras de idolatria durante a expansão do Tahuantinsuyu, e prepararam os povos
andinos para a chegada do cristianismo. Por outro lado, a maioria das narrativas
coloniais traz informações contrárias ao que diz Garcilaso. Nelas, os incas foram
retratados como praticantes dos sacrifícios humanos. É o caso do cronista nativo Felipe
Guamán Poma de Ayala, que viveu no mesmo período que Garcilaso e tem uma visão
bem diferente daquele autor.
Na obra Nueva Crónica y Buen Gobierno, do cronista Felipe Guamán Poma de
Ayala, os curacas são apresentados ao leitor como os senhores naturais e legítimos dos
Andes, cuja ancestralidade dava direito ao controle da terra e do trabalho das
comunidades nativas (AYALA, 1987, p. 84). A breve dominação incaica nos anos do
Tahuantinsuyu (1438-1532) teria assimilado e corrompido os caciques andinos e suas
respectivas etnias por meio da introdução de práticas como o sacrifício humano. A partir
de então, os curacas paulatinamente perderam seus poderes, deixaram de ter o respeito
de seus comandados e sofreram um crescente processo de decadência moral. Assim,
Guamán Poma buscou convencer seus leitores e interlocutores de que o advento do
13
[No original] Si al tiempo que atormentaban al triste hizo alguna señal de sentimiento con el rostro o
con el cuerpo o dio algún gemido o suspiro, hacen pedazos sus huesos después de haberle comido las
carnes, asadura y tripas, y con 1mucho menosprecio los echan en el campo o en el río. Pero si en los
tormentos se mostró fuerte, constante y feroz, habiéndole comido las carnes con todo lo interior, secan
los huesos con sus nervios al sol y los ponen en lo alto de los cerros y los tienen y adoran por dioses y les
ofrecen sacrificios. Estos son los ídolos de aquellas fieras, porque no llegó el Imperio de los Incas a ellos ni
hasta ahora ha llegado el de los españoles, y así están hoy día” (VALERA, apud VEGA, 1991, p. 41).
14
Termos como “bárbaros”, “nobres”, “plebeus”, entre outros, são muito presentes na obra do autor. Sabe-
se que Garcilaso possuía títulos de vários autores romanos clássicos em sua obra e esteve presente em
círculos de humanistas na Espanha. Isto explica o uso destes termos nas páginas dos Comentarios Reales
de los Incas (PEASE, 2009, p. 19).
Tahuantinsuyu a partir de Manco Capac e Mama Huaco desencadeou uma
degenerescência das práticas e costumes ancestrais dos povos andinos.
15
Na concepção
do autor, a maior expressão dessa decadência seria a perda da no verdadeiro Deus
cristão, que fora conhecido pelos andinos antes do início da expansão dos incas. É
possível observar, no texto, que Guamán Poma culpa os incaicos pela presença do que
ele considera as piores formas de idolatria e práticas contrárias à fé cristã:
Ó, perdido Ynga! Assim te quero dizer [sic] porque desde que entrastes fostes
idólotra, inimigo de Deus porque não haveis seguido a lei antiga de conhecer ao
senhor e criador Deus, que fez os homens e o mundo, que é o que chamaram os
índios antigos de Pacha Capaca [criador do universo], deus Runa Rurac [aquele
que fez o homem]. Que assim o conheceram que assim o diziam [sic] os
primeiros Capac Apo Yngas antigos. (AYALA, 1987, p. 119, tradução nossa.).
16
Na citação acima, Guamán Poma afirma que os nativos andinos pré-incaicos
conheciam o verdadeiro Deus, e o adoravam de maneira semelhante a como faziam os
homens do Antigo Testamento. Porém, com o tempo, o conhecimento de Deus por esses
“primeiros homens
17
se perdeu. Esses, então, se esqueceram do Dilúvio, que Guamán
Poma chama uno yaco pachacuti (o cataclismo da água) e da descendência de Adão e
Eva (AYALA, 1987, p. 23-25). Mesmo depois de perder o contato com Deus, os andinos
pré-incaicos teriam vivido, não obstante, sem cultuar o que o autor chama de idolatrias.
Essas teriam surgido com as conquistas incas, e foram motivadas pelo Demônio. Além
disso, chama atenção o uso do termo “Pacha Capac”, que o cronista traduz como
“criador do universo”. Esse seria o próprio Deus cristão, cujo culto pré-incaico fora
destruído pelos incas durante a expansão do Tahuantinsuyu. A narrativa de Guamán
Poma a entender, assim, que os curacas foram cooptados pelas idolatrias
disseminadas pelos incas e passaram, eles mesmos, a fazer parte do sistema de crenças
15
Essa postura de Guaman Poma faz sentido se pensarmos na trajetória pessoal do autor. Em sua vida
adulta, Guaman Poma passou décadas colaborando com a Igreja e a administração espanhola. O autor
tinha claras pretensões senhoriais, que expressa em vários momentos de sua crônica. Nela, o autor se
intitula “príncipe” do Peru, e clama ao rei Felipe III por restituição do poder que seus ancestrais teriam
perdido após a chegada dos espanhóis e a instituição do vice-reino do Peru. Consideramos, pois, que seu
ataque à imagem dos incas esteja em consonância com tais pretensões, pois o autor precisava deslegitimar
o domínio incaico para defender os direitos ancestrais de sua família paterna, que não tinha ascendência
incaica (LIMA, 2019, p. 59).
16
[No original] “¡O perdido Ynga!, ací te quiero dezir porque desde que entrastes fuestes ydúlatra, enemigo
de Dios porque no as seguido la ley antigua de conoser al señor y criador Dios, hazedor de los hombres y
del mundo, que es lo que llamaron los yndios antigos Pacha Capac [creador del universo], dios Runa Rurac
[hacedor del hombre]. Que ací lo conocieron que ací lo decía los primeros Capac Apo Yngas antigos”
(AYALA, 1987, p. 119).
17
Guamán Poma divide sua história andina em eras, ou idades (AYALA, 1987, p. 22-32). De acordo com o
cronista, a história dos Andes podia ser dividida em quatro eras. Em síntese, o processo histórico que teria
se desenrolado nessas quatro eras foi da passagem de uma espécie de utopia primitiva andina, em que os
nativos estavam em comunhão com Deus e viviam como os homens do Antigo Testamento, até a ascensão
incaica, que teria sido obra do demônio para subjugar os povos andinos e afastá-los de Deus.
incaico. Tal sistema envolvia a prática sacrificial de humanos, relacionada com a
presença das construções cerimoniais espalhadas pelo Tahuantinsuyu conhecidas como
ushnu (ou usno):
Que os Yngas tem terra assinalado [sic] em todo este reino para sacrifícios
chamado [sic] usno [construção cerimonial], que é para sacrificar sempre
capacocha [oferenda ao Inka, sacrifícios humanos] ao sol e às uacas, uaca
caray [dar de comer à waqa], ao caminhar apachita [adoratório]. É a lei e
sacrifício dos Yngas. De como o Ynga sacrificava a seu pai o sol com ouro e
prata e com meninos e meninas de dez anos que não tivessem sinal nem
mancha nem lunar e fossem formosos [sic]. E para isso fazia juntar quinhentos
meninos de todo o reino e sacrificava no templo de Curi Cancha, que todas as
paredes alto e baixo [sic] estava guarnecida [sic] de ouro finíssimo. (AYALA,
1987, p. 30, tradução nossa).
18
Do que foi exposto até aqui, é possível concluir que a ideia do sacrifício humano
foi muito usada como instrumento de legitimação para justificar diferentes projetos e
anseios dentro da realidade colonial. Para o Inca Garcilaso, a negação de que os incas
imolavam vítimas humanas serve para aproximá-los da civilização e dos valores cristãos.
Ao mesmo tempo, o cronista visava limpar a honra de sua linhagem materna e desarmar
os detratores dos incas. Na obra de Guamán Poma, a narrativa sobre os sacrifícios tem o
mesmo efeito, embora busque legitimar outro grupo étnico. O autor busca eximir os
andinos não incaicos, ou ao menos sua linhagem Yarovilca, da prática sacrificial
considerada nefasta pela fé dos dominadores brancos. Hediondo para os cristãos, o
sacrifício humano se converteu em um argumento forte, que se manifestou em diversos
âmbitos, como debates eclesiásticos, crônicas e registros jurídicos. Assim, a noção de
que os andinos sacrificavam timas humanas foi usada para legitimar interesses
diversos e, por vezes, opostos. Como veremos abaixo, o fato é que a prática de
sacrifícios humanos nos Andes foi consumada por incas e por outras etnias, com
objetivos religiosos e políticos.
Elites nativas e Capacocha no Tahuantinsuyu e na Justiça Espanhola
Como vimos acima, muitas narrativas coloniais dos séculos XVI e XVII sugerem
que a prática sacrificial foi ubíqua nos Andes pré-hispânicos
19
. Festas, celebrações de
18
[No original] Que los Yngas tienen tierra señalado en todo este rreyno para sacrificios
llamado usno [construcción ceremonial], que es para sacrificar cienpre capac ocha [afrenta al Inka,
sacrificios humanos] al sol y a las uacas, uaca caray [dar de comer a la waqa]
b
, al
caminar apachita [adoratorio]. Es la ley y sacrificio de los Yngas. De mo el Ynga sacrificaua a su padre
el sol con oro y plata y con niños y niñas de dies años que no tubiesen señal ni mancha ni lunar y fuesen
hermosos. Y para ello hazía juntar quinientos niños de todo el rreyno y sacrificaua en el tenplo de Curi
Cancha, que todas las paredes alto y bajo estaua uarnecida de oro finícimo” (AYALA, 1987, p. 30).
19
É importante salientar que, neste artigo, o termo “Andes pré-hispânicos” se refere ao território do antigo
Tahuantinsuyu, que os espanhóis denominaram “Império Inca”. Tal império se estendia pelo território dos
colheitas e comemorações de vitórias militares eram ocasiões em que incas e curacas
podiam atuar em conjunto, e oferecer variadas formas de imolação ao divino. Ao analisar
tais práticas, é preciso sempre reconhecer que, de acordo com as diferentes localidades
andinas, rituais com sacrifícios podiam apresentar características distintas.
20
Abaixo,
veremos como as práticas sacrificiais descritas nos documentos supracitados se
assemelham com um dos mais importantes sítios arqueológicos da época do
Tahuantinsuyu e como um dos primeiros processos jurídicos coloniais do Peru aborda a
questão.
De maneira geral, as evidências arqueológicas disponíveis nos mostram com
alguma certeza que, no século XV, Cusco deixou de ser “[...] núcleo de uma comunidade
local para tornar-se um importante centro urbano, capital do Tahuantinsuyu descrita
pelos europeus.” (MURRA, 1990, p. 84). A capital incaica não era apenas um centro
administrativo, mas também religioso e cerimonial. A partir desse centro, incorporava-se
ao Tahuantinsuyu as etnias que habitavam as montanhas, vales e costas.
A arqueologia não chegou a um consenso a respeito de como os incas intervinham
na governança dos povos assimilados ao império. É sabido que os Incas do Tahuantisuyu
chegaram a designar governantes diretos para regiões recém-anexadas. Por outro lado,
sabemos também que, sendo a elite incaica insuficiente em números para administrar a
totalidade do império, deu-se a prática de elevar socialmente à condição de inca alguns
membros das elites nativas locais nas regiões circunvizinhas de Cusco (MURRA, 1990, p.
85-86), como veremos a seguir.
No seio das comunidades nativas, os curacas exerciam o poder por meio de
símbolos, rituais e da força em si, obedecendo ou não aos dominadores incaicos. De uma
forma ou de outra, é notável a associação entre a posição do curaca e ritos sacrificiais.
Em 1547, por exemplo, o cronista Pedro Cieza de León (1520-1554) relatou o momento
em que um grupo de curacas se reuniu para celebrar a colheita da batata de acordo com
as tradições andinas:
Vestidos com suas mais belas roupas e ao som de tambores, o grupo de curacas
sentou-se à praça principal formando um círculo. Em seguida, iniciou-se uma
procissão, liderada por um menino e uma menina vestidos de acordo com o
atuais Peru, Chile, Equador, Bolívia e Argentina. Obviamente, um território o vasto apresenta inúmeras
especificidades regionais. Porém, podemos observar que as práticas sacrificiais que estudamos aqui não se
restringem a uma única região do Tahuantinsuyu, mas podem ser encontradas em vários pontos distintos.
20
O controle de novas terras anexadas pelos incas podia ocorrer de maneira direta, com a presença de
membros das elites incaicas, de construções no estilo cusquenho e do deslocamento de colonos (mitimac);
ou de maneira indireta, sendo o controle exercido pelas elites nativas locais. O caso da imolação do
Llullaiaco que veremos abaixo ilustra uma realidade local, que não necessariamente vale para todo o
Tahuantinsuyu (MIGNONE, 2015, p. 70).
costume local. No final do cortejo, doze homens (seis com chaquitacllas e seis
com sacos de batatas) tocavam tambores. No centro do festejo, um dos curacas
foi rodeado pela população local enquanto uma lhama era sacrificada segundo a
tradição andina: suas vísceras foram arrancadas e então oferecidas aos
adivinhadores responsáveis pela tarefa de “ler” suas entranhas. Em seguida, no
momento em que a festa se encontrava em seu ápice, o sangue de camelídeo foi
jorrado sobre os sacos de batatas. Nesse exato momento, um curaca
recentemente convertido ao cristianismo gritou a todos que cessassem o “rito
diabólico”, que foi então imediatamente interrompido. (CIEZA DE LEÓN apud
BERTAZONI, 2017, p. 265).
O relato acima, elaborado com base na crônica de Cieza de León, ilustra a maneira
como os espanhóis observaram a participação dos curacas nos rituais andinos. O poder
dos curacas foi considerado, pelos europeus, como uma maneira eficaz de se efetivar o
controle e a conversão dos povos nativos. O curaca conduz o sacrifício, clímax da
celebração da colheita. Mais adiante, o curaca convertido cessa o ritual para dar fim à
ação do diabo e abrir caminho para a conversão dos demais.
No sacrifício relatado acima, Cieza de León conta um caso de imolação animal.
Mas os cronistas da conquista também relataram rituais sacrificiais de vítimas humanas,
que podiam levar a tima à morte ou utilizar apenas partes do corpo, como o sangue.
Ambas as formas de sacrifício eram definidas pela voz quéchua Capacocha. De acordo
com Maria Rostworowski,
Estas expressões da religiosidade andina se chamavam em quéchua capacocha e
com o mesmo nome se designavam outras cerimônias usadas na costa central;
daí a existência de duas formas de capacocha sobre as que temos notícia. Uma
com a informação transmitida pelas crônicas e praticada pelos incas, consistia
em sacrificar meninos pequenos e formosos ou ternas dozelas; a segunda se
realizava com sangue líquido transportado em uma vasilha consduzida em um
determinado trajeto ritual, e é narrada em um importante e breve documento do
Archivo General de Índias (1558[1570]). (ROSTWOROWSKI, 2003, p. 105,
tradução nossa).
21
Além da imolação, a Capacocha envolvia uma outra prática importante: a
mobilidade territorial. O ritual costumava envolver longas procissões, que levavam as
vítimas das imolações das diversas regiões do Tahuantinsuyu até a capital cusquenha.
Rostworowski observa, ainda, que elementos arqueológicos indicam que a Capacocha
continha um caráter de proteção do Inca contra possíveis adversidades. Assim, “[...] a
21
[No original] Estas expresiones de la religiosidad andina se llamaban en quechua capacocha y con el
mismo nombre se designaban otras ceremonias usadas en la costa central; de ahi la existencia de dos
formas de capacocha sobre las que tenemos noticias. La una con la informacion transmitida por las
cronicas y practicada por los incas, consistia en sacrificar niños pequeños y hermosos o tiernas doncellas;
la segunda se realizaba con sangre liquida transportada en una vasija conducida en un determinado
trayecto ritual, y es narrada en un importante y temprano documenta del Archivo General de Índias (1558
[1570]).” (ROSTWOROWSKI, 2003, p. 105).
cada acto importante del Inca se realizaba una capacocha, por ejemplo cuando partia a la
guerra, al iniciar una obra importante y a su término.” (ROSTWOROWSKI, 2003, p. 106).
Por meio dos sacrifícios, os povos andinos acreditavam apaziguar a ira das
divindades e conseguir favores no mundo material. A prática envolvia a participação
direta das elites indígenas do Peru. A presença de múmias e outras oferendas imoladas
ao sol e às divindades andinas é constante não apenas na região de Cusco, onde
habitavam as elites incaicas, mas em todos os quatro suyu. A mobilidade descrita por
Rostworowski indica que, quando o sacrifício era conduzido pelos incas, as vítimas eram
primeiro levadas a Cusco, e depois seguiam para o local da oferenda.
As crônicas coloniais sugerem que as lideranças nativas não incaicas
desempenharam um papel chave na expansão territorial do Tahuantinsuyu, e, por isso,
recebiam uma série de direitos dos Incas. O direito mais importante seria o de portar as
insígnias de distinção social da elite incaica para governar suas respectivas etnias em
nome do Inca. Incas de privilegio foi a alcunha utilizada pelos espanhóis para definir os
beneficiários dessa prática (LIMA, 2017, p. 67).
Guamán Poma faz uma distinção clara entre os incas de sangue, que nasciam
dentro da etnia incaica, e os nativos não incaicos que se tornavam incas de privilegio. De
acordo com a Nueva Crónica, os curacas que se tornavam incas de privilegio recebiam
os direitos e os fatores de distinção social reservados aos próprios incas, tais como o
controle de determinado contingente de mão de obra, o ritual de perfuração e
alargamento dos lóbulos e o corte dos cabelos. As crônicas e a arqueologia levam a crer
que a ngua quéchua, compartilhada por outras etnias além dos cusquenhos, era um
critério importante para a oferta desses privilégios. Ademais, os incas de privilégio
deveriam aderir ao culto solar incaico, intimamente relacionado aos mitos de origem dos
incas (SOMEDA, 2004, p. 32).
Sobre os incas de privilegio, o historiador Hidefuji Someda diz o seguinte:
Em resumo, os incas de privilégio eram uma categoria social que o Estado
incaico teve que criar na época inicial da expansão, para estabelecer e
consolidar sua hegemonia na região do Cusco, antes de por em marcha a
campanha expansiva em grande escala, e sua importância aumentou depois do
avanço da expansão, porque o Inca devia mostar claramente perante às etnias
belicosas ou desobedientes o poder do Estado cusquenho. Este, que não queria
assimila-los totalmente dentro de sua hierarquia social, os proibiu, para
diferenciá-los dos orejones reais, viver dentro da cidade de Cusco e portar as
orelhas abertas da mesma forma. Por isso mesmo, os descendentes dos nobres
incaicos, orejones reais, aos quais pertenciam em sua maioria os informantes da
história do Tahuantinsuyu, não ofereceram de boa vontade a informação sobre
os incas de privilégio aos espanhóis, que eles tentaram justificar e glorificar
sua própria história, como bem indica Silverblatt (1987: xxv) (SOMEDA, 2004, p.
32, tradução nossa).
22
O sistema de ceques nos traz elementos importantes para pensar o grupo dos
incas de privilegio e sua relação com a capacocha. As linhas que partiam do tempo do
sol (qoricancha) em Cusco não serviam apenas para o fim prático da demarcação
territorial. Nessas linhas se assentavam muitas das huaca, e se construíam os ushnu
estruturas destinadas a servir como receptáculos dos líquidos produzidos pelas
imolações, principalmente o sangue de animais. Os deslocamentos populacionais da
época do Tahuantinsuyu
23
seguiam os ceque, que se aproximavam ou se distanciavam de
Cusco. Em meio a tais deslocamentos eram realizadas as cerimônias da capacocha. Em
outras palavras, dentro do sistema de ceques, que se expandia ao passo que aumentava o
próprio Tahuantinsuyu, se davam as relações que buscamos compreender no presente
texto. Desta forma:
Procissões pela paisagem andina, frequentemente marcadas por oferendas
feitas em santuários locais e regionais, juntamente com enterramentos capac
ucha em altas altitudes patrocinados pelo Estado, pretendiam garantir
benefícios recíprocos como parte de um fluxo de circulação contínuo de objetos
de valor, libações líquidas e bem-estar espiritual, ligando centro e periferia.
(MCEWAN, 2017, p. 101).
Uma das características principais do sistema de ceque era a visibilidade de um
ponto a outro. Tal visibilidade dependia do posicionamento da huaca, ushnu ou
enterramento sacrificial no topo de um monte ou montanha, dos quais era possível
22
[No original] “En resumen, los incas de privilegio eran una categoría social que el Estado incaico hubo de
crear en la época temprana de la expansión, para establecer y consolidar su hegemonía en la región del
Cuzco, antes de poner en marcha la campaña expansiva a gran escala, y su importancia aumentó después
del avance de expansión, porque el Inca debía mostrar claramente ante las etnias belicosas o
desobedientes al poder del Estado cuzqueño. Este, que no quería asimilarlos totalmente dentro de su
jerarquía social, les prohibió, para diferenciarlos de los orejones reales, vivir dentro de la ciudad de Cuzco
y traer las orejas abiertas de la misma forma. Por eso mismo, los descendientes de los nobles incaicos,
orejones reales, a los que pertenecían en su mayoría los informantes de la historia de Tahuantinsuyu, no
ofrecieron de buena gana la información sobre los incas de privilegio a los españoles, ya que ellos
intentaron justificar y glorificar su propia historia, como bien indica Silverblatt (1987: xxv)” (SOMEDA,
2004, p. 32).
23
As relações familiares e de trabalho, como se sabe, eram caracterizadas pela mobilidade. Vários
indivíduos tinham vidas itinerantes, realizando trabalhos em locais distintos de acordo com as
determinações dos poderes maiores. As crônicas indicam que essas mobilizações envolviam diferentes
grupos para variados fins. Alguns dos trabalhadores deslocados eram chamados mitmaqkuna. Em geral,
esses desempenhavam duas funções: povoar e explorar melhor os recursos de uma região, e colonizar
regiões fronteiriças ou recém-anexadas, onde o risco de sublevações era maior. O Inca tinha um grupo
pessoal de mitmaqkuna específicos, que parecem haver constituído importantes comunidades de
povoadores mobilizados e mantido seu status diferenciado após a Conquista. Outro grupo de populações
transplantadas era a dos yanakuna, que as crônicas identificaram como escravos. Isso porque as tarefas
que desempenhavam necessitavam de dedicação integral e geralmente se davam no ambiente doméstico.
(PEASE, 19, p. 118).
enxergar outros, e assim por diante. Por isso, os sucessivos territórios anexados ao
Tahuantinsuyu apresentam elementos como esses nos locais mais altos e com mais
visibilidade. Tal prática parece ter sido profundamente sagrada para os incas, pois esses
sítios costumam apresentar condições de conservação altas, sem a presença de
modificações posteriores ao primeiro contato com o local. As evidências arqueológicas
indicam que o sistema de ceques representava a ideia de que havia uma matriz comum
que originava todos os seres, e à qual esses voltavam após a morte (MCEWAN, 2017, p.
115-136). Dessa forma, ao posicionar as imolações capacocha no alto de uma montanha
sagrada integrada a outras por meio do campo visual, os incas assimilavam as timas,
provenientes das elites nativas locais, ao universo incaico.
Assim, nas diferentes regiões do antigo Tahuantinsuyu, há registros materiais que
indicam a participação conjunta de incas e curacas na Capacocha. Tais vestígios
materiais compreendem corpos mumificados e elementos artesanais diversos,
geralmente encontrados no topo de montanhas. Esses registros vão ao encontro das
afirmações dos primeiros cronistas espanhóis que escreveram sobre o Peru, no que diz
respeito à prática sacrificial de seres humanos realizada pelos incas (CERUTI, 2015, p. 7).
As vítimas da Capacocha encontradas por todo o Peru são meninos e meninas menores
de 15 anos, cercados por elementos rituais que os primeiros cronistas associaram à
Capacocha. Essas vítimas pertenciam sempre à nobreza incaica ou às elites nativas
locais. Na maioria dos casos, os próprios pais ofereciam as crianças com o objetivo de
reforçar laços políticos com a nobreza cusquenha, tornando-se, assim, incas de
privilegio. Não queremos dizer, com isso, que todo curaca aspirava a se tornar um inca
de privilegio. É certo que a expansão do Tahuantinsuyu não foi feita apenas com base
em negociações e rituais celebrados entre os incas e as autoridades étnicas locais. Houve
resistência e guerras por parte de muitos curacas, como registram as próprias crônicas
que discutimos aqui. Muitos deles não aceitaram a dominação incaica. Nesses casos,
obviamente, não havia celebrações como estas entre as partes beligerantes.
Abaixo discutiremos um sítio arqueológico que julgamos primordial para
compreender as relações entre os curacas e a capacocha, por dois motivos: 1) trata-se
de uma imolação realizada pelos incas nos confins do Tahuantinsuyu, onde hoje se
localiza a fronteira norte entre Chile e Argentina, um dos pontos mais distantes da
expansão incaica; 2) o estado de conservação dos corpos mumificados encontrados no
local é excelente, o que aumenta a qualidade das conclusões a serem tiradas a respeito
do ritual realizado no local durante o século XV. É certo que inúmeras outras
imolações humanas a serem estudadas nos quatro cantos do Tahuantinsuyu, mas, dadas
as limitações do presente artigo, optamos por tratar apenas desta.
O local a que nos referimos é o topo do vulcão Llullaiaco. A alta posição social dos
indivíduos mumificados ali foi confirmada pelas camadas de tecido adiposo encontradas
nas vítimas, o que sugere que elas foram bem alimentadas durante a vida, e pelo bom
estado dos ossos das múmias, que também se justifica por uma alimentação de qualidade
(CERUTI, 2015, p. 8). A análise das mias do Llullaillaco indica, ainda, que as vítimas
eram enterradas vivas e amarradas, possivelmente devido à crença pré-hispânica de que
as divindades somente aceitariam vítimas sem mutilações corporais, e com todo o
sangue dentro do corpo (CERUTI, 2015, p. 9).
No topo do vulcão, foram encontrados três corpos mumificados que, de acordo
com os arqueólogos, foram vítimas em uma Capacocha (MIGNONE, 2015, p. 69). No sítio
do sacrifício, havia algumas estatuetas chamadas pelos andinos de illas [Imagem 1], que
continham alguns elementos relacionados à prática de elevação dos curacas à condição
de incas de privilegio. Elas apresentam características zoomorfas e antropomorfas, são
feitas de ouro ou prata, e vestidas com roupas andinas em miniatura bordadas com
padrões cromáticos que possivelmente transmitiam significados.
24
Nos rostos das
estatuetas, pode-se observar a perfuração e alargamento dos lóbulos, prática comum
entre as elites incaicas. Além disso, arqueólogos defendem a hipótese de que as próprias
vítimas eram descendentes diretas de incas de privilegio, com base na presença de uma
insígnia trapezoidal, ou canipu, que coroa a testa das oferendas humanas (MIGNONE, p.
2015, p. 72). De acordo com Guamán Poma, o canipu [Figura 2] era um marcador de
distinção social não da nobreza de sangue incaica, mas da nobreza de privilégio. A
mesma insígnia é reproduzida por Guamán Poma em vários desenhos do autor que
representam os incas de privilegio (AYALA, 1987, p. 342-369).
24
Para Galen Brokaw, as cores encontradas em diversos materiais andinos como os khipu, as túnicas
coloridas, as yupana, entre outras, continham significados específicos ainda a serem decifrados. O termo
quilca, traduzido pelos espanhóis de várias formas diferentes, foi associado por alguns escritores do
século XVI à ideia de escrita e seus suportes. Uma evidência é a tradução de quillcani como “bordar com
cores” no dicionário de Santo Tomás (1560). Quilca pode, ainda, ser associado com mecanismos de
contabilidade relacionados com o verbo yupay, cujas traduções têm a ver com o verbo “contar”, e com a
yupana, tabuleiros usados provavelmente para fins contábeis e administrativos, e que podiam ou não,
como os quipos, apresentar o uso das cores (BROKAW, 2017, p. 30-32). Diante disso, é possível que as
cores encontradas nas estatuetas e nas roupas das vítimas da capacocha do Llullaillaco tenham
significados que ainda desconhecemos.
Imagem 1. Umas das illas encontradas no Llullaillaco
Fonte: (MIGNONE, 2015, p. 75).
Imagem 2. Visitador e inspetor destes reinos, taripacoc [visitador, inspetor], papri ingá
Fonte: (AYALA apud MIGNONE, 2015, p. 79).
A crônica de Guamán Poma apresenta, ainda, uma categoria de incas de privilégio
que jamais foi nomeada em outras crônicas conhecidas do Peru colonial. Trata-se dos
allicac curaca:
E assim nenhum se chamava capac apo [poderoso senhor] se não fosse
descendente e legítimo dos que saíram de Uari Uira Cocha Runa, pacarimoc;
este é capac apo. E outros hão de chamar-se apo [senhor] e outros, curaca
[autoridade local] e outros camachicoc [local ou menor]. O muito menor não
que não lhe vem de direito [sic] de chamar-se allicac curaca; este se fez de
índio baixo tributário. (AYALA, 1987, p. 458, tradução nossa).
25
O termo allicac é traduzido pelos editores da crônica como “ascendido”. Com
essa categoria, Guamán Poma se refere à prática de conceder o status de curaca e de
inca de privilegio a índios pobres, com controle de mão de obra sobre quantidades
inferiores a dez unidades familiares. Assim temos, em Guamán Poma, três grandes níveis
hierárquicos em que se organizavam as lideranças nativas nos Andes: a nobreza incaica
de Cusco, a nobreza provincial andina, cujos membros podiam tornar-se incas de
privilegio, e a nobreza criada por favores concedidos a índios de menor estatura social,
os allicac curaca (MIGNONE, 2015, p. 82). Como vimos acima, as vítimas mais comuns
do sacrifício humano na Capacocha eram infantes nascidos entre as elites de sangue e
de privilégio, como as descreve Guamán Poma, e que a oferta de vítimas para imolação
era uma das formas de se conseguir favores dos Incas. Uma prática semelhante pode ser
observada em um documento elaborado pelo extirpador de idolatrias Hernández
Príncipe, analisado por Maria Rostworowski. O extirpador narra o sacrifício da filha de
um curaca que buscava ascensão. O relato é notável pois traz elementos semelhantes ao
que foi encontrado na Capacocha do Llullaillaco:
Não contente Hernândez Principe de contar os sucessos quis subir ao monte de
Aixa para destruir o adoratório que se havia formado em torno da menina,
convertida em huaca. Depois de uma penosa subida chegou à paragem da
alacena e alí estava Tanta Carhua, cercada de suas jóias, cautarillos e topos de
prata doados pelo Inca. O corpo desfeito conservava ainda algo de sua finíssima
roupa. Com o tempo a capacocha se havia convertido em um adoratório ao qual
acudiam os fiéis a depositar suas oferendas e a consultar seu oráculo. Os
numerosos irmãos de Tanta Carhua se converteram, um por um em seus
sacerdotes, e parece que com voz de menina emitiam respostas às perguntas de
seus devotos. Caque Toma teve numerosas prebendas e vantagens do sacrifício
de sua filha, pois recebeu o título de curaca de Ocras e se instituiu toda uma
dinastia familiar. (ROSTWOROWSKI, 2003, p. 106, tradução nossa).
26
A narrativa de Hernandez Principe vai ao encontro dos vestígios materiais
encontrados no Llullaillaco. Em ambos os casos, curacas oferecem seus filhos em
25
Y ací nenguno se llamaua capac apo [poderoso señor] cino fuese desendiente y lexítimo de los que
salieron de Uari Uira Cocha Runa, pacarimoc; éste es capac apo. Y otros an de llamarse apo [señor] y
otros, curaca [autoridad local] y otros camachicoc [local o menor]. El muy menor que no le uiene de
derecho a de llamarse allicac curaca; éste se hizo de yndio uajo tributario (AYALA, 1987, p. 458).
26
[No original] No contento Hernândez Principe de contar los sucesos quiso subir al cerro de Aixa para
destruir el adoratorio que se habia formado en torno a la niña, convertida en huaca. Después de un penoso
ascenso llegó al paraje de la alacena y ahi estaba Tanta Carhua, rodeada de sus alhajas, cautarillos y topos
de plata donados por el Inca. El cuerpo deshecho conservaba aùn algo de su finisima ropa. Con el tiempo la
capacocha se habia convertido en un adoratorio al cual acudian los fieles a depositar sus ofrendas y a
consultar su orâculo. Los numerosos hermanos de Tanta Carhua se convirtieron, uno por uno en sus
sacerdotes, y parece que con voz de niña emitian respuestas a las preguntas de sus devotos. Caque Toma
tuvo numerosas prebendas y ventajas del sacrificio de su hija, pues recibió el titulo de curaca de Ocras y
se iustituyó toda una dinastia familiar” (ROSTWOROWSKI, 2003, p. 106).
oferenda na Capacocha. De acordo com a investigação de Pablo Mignone, é possível
construir a hipótese de que a Capacocha envolvia tanto as elites nativas incaicas quanto
as elites regionais que buscavam ascensão social (MIGNONE, 2015, p. 85).
Por fim, resta salientar uma outra faceta da Capacocha que também figura nos
documentos coloniais. No Archivo General de Índias, consta um registro de processos
jurídicos intitulado Justicia 413. O documento traz, entre outras coisas, uma das
primeiras menções à Capacocha em documentos oficiais da Coroa espanhola. De acordo
com o texto, podemos observar que o ritual foi usado como pretexto para que curacas
rivais legitimassem suas reivindicações por terras e mão de obra. Isso ocorreu porque a
conquista incaica das diferentes regiões andinas teria alterado as relações de poder
entre os curacas locais, o que gerou disputas envolvendo vários grupos étnicos. Foi o
caso da região central do Peru, palco da disputa em questão. As partes litigantes eram os
curacas da etnia Chacalla, sob tutela do espanhol Francisco de Ampuero (1511-1580), e da
etnia Canta, aliados do espanhol Nicolás de Ribera, o moço (1497/1551?-1582). (MARCUS,
1988, p. V-VII).
A disputa entre ambos estava em andamento no momento da chegada dos
espanhóis. O Justicia 413 começa com a queixa dos Chaclla por restituição de terras que
teriam sido usurpadas pelos Canta. O desenrolar do processo ilustra as dificuldades de
se relacionar conceitos oriundos do âmbito jurídico do mundo ibérico, como a ideia de
posse privada da terra,
27
com o vocabulário e as categorias andinas relacionados ao
controle, à divisão e ao trabalho agrícola. As disputas eram intensas, com ferozes
acusações partindo de ambos os lados. Quando os administradores espanhóis tentavam
resolver litígios por meio da venda ou transferência de direitos sobre a terra, os
indígenas pleiteantes costumavam resistir de maneira firme, tendo em vista que, antes de
1532, eles jamais haviam “comprado” ou “vendido” propriedades rurais (MARCUS, 1988,
p. VII). Para resolver a situação, Ribera e Ampuero, responsáveis respectivamente pelos
Canta e pelos Chaclla, buscaram selar a paz entre os curacas de cada etnia, impondo um
acordo em que os Chaclla deveriam vender suas terras aos Canta pelo preço de duzentos
camelídeos.
27
O ayllu é uma estrutura indígena que, no período pré-hispânico, conformava um grupo ligado por laços
de parentesco, possuidor ou não de um espaço territorial delimitado. O comando do ayllu garantia ao
curaca responsável o direito sobre a mão-de-obra de seus parentes, que podiam ser alocados em
diferentes localidades, de modo a garantir a produção dos bens necessários à subsistência destas unidades
de parentesco. Assim, nos Andes pré-hispânicos, não existia a propriedade privada da terra como existia
na Europa. Quando os europeus chegaram nos Andes e começaram a implantar o modelo dos títulos
pessoais de terras, os membros de um mesmo ayllu podiam estar a desempenhar suas tarefas em
localidades distintas. Essa discrepância entre os modos andinos e europeus de ocupação e trabalho da
terra está no cerne das numerosas disputas jurídicas que eclodiram entre os indígenas durante o período
colonial, especialmente nos séculos XVI e XVII. (PORTUGAL, 2009).
O fato documentado, contudo, é que nenhuma das partes ficou satisfeita com esse
resultado, devido à incompatibilidade da mentalidade andina com os conceitos
tipicamente europeus de posse da terra, como dissemos acima, e ao grande valor
simbólico e religioso que a coca plantada no local representava.
A argumentação de cada um dos lados estava diretamente relacionada a duas
características das sociedades andinas pré-hisnicas. A primeira eram os
deslocamentos dos mitimac, enviados pelos incas para diferentes localidades do império
para desempenhar funções administrativas, militares, religiosas, entre outras. A segunda
característica é a mobilidade associada aos rituais da Capacocha, que explicamos acima.
Os Canta alegaram que os Chaclla jamais haviam sido mitmac na localidade, e que a
presença desta etnia era fruto das cerimônias de Capacocha e, portanto, estes
deveriam se retirar quando o ritual terminasse. Assim, ambas as etnias se julgavam no
direito de ocupar aquelas terras, e como a situação não fora resolvida pelos incas,
deveria ser solucionada nos tribunais espanhóis.
As Capacocha retratadas no processo não falam de sacrifícios humanos, mas sim
de vítimas animais. De qualquer forma, a maneira como o ritual é retratado no texto e as
longas descrições consagradas à prática indicam as dimensões da importância que os
curacas andinos atribuíam ao ritual, e como ele pode ter sido utilizado de maneiras
inusitadas para que os curacas alcançassem benefícios pessoais:
Os cantenos relataram como em distintos episódios, os Chaclla aproveitaram o
fato de portar os sacrifícios, e passaram os limites assinalados, entrando em
terras dos Canta em Quivi (folha 245v). Enquanto levavam os mates iam
dizendo; “saim da frente, saiam da frente, capacocha capacocha... até aqui chega
minha capacocha, até aqui é minha terra” (folha 250r). Os Canta se enfurecíam
por tamanha desfaçatez e, em uma oportunidade, um deles chamado Choqui
Guaranga atacou o portador dos mates para impedir-lo de passa, e, na investida,
derramou o sangue. O castigo não se fez esperar e o culpado foi enforcado e
enterrado no lugar dos fatos (folhas 252r, 263r e outras). (ROSTWOROWSKI,
1988, p. 79, tradução nossa)
28
.
Acima, Rostworowski sintetiza as longas páginas em que os Canta acusam os
Chaclla de se aproveitarem de Capacocha realizadas nos anos finais do Tahuantisuyu
para adentrar terras sobre as quais não possuíam direitos. Os relatos chamam atenção
para a ideia de que o sangue transportado na Capacocha, animal ou humano, jamais
28
[No original] “Los cantenos relataron cómo en distintos episodios, los Chaclla aprovecharon el hecho de
portar los sacrifícios, y pasaron los linderos senalados, adentrándose en tierras de los Canta en Quivi (foja
245v). Mientras llevaban los mates iban diciendo; “aparte, aparte, capacocha capacocha...hasta aqui llega
mi capacocha, hasta aqui es mi tierra” (foja 250r). Los Canta se enfurecían por tamana desfachatez y, en
una oportunidad, uno de ellos llamado Choqui Guaranga se abalanzó sobre el portador de los mates para
impedirle el paso, y, en la embestida, se derramó la sangre. El castigo no se hizo esperar y el culpable fue
ahorcado y enterrado en el lugar de los hechos (fojas 252r, 263r y otras).” (ROSTWOROSKI, 1988, p. 79).
poderia ser derrubado, sob pena de que seu portador, ou o responsável pela queda, fosse
morto. Por esse motivo, os Chaclla teriam conseguido adentrar as terras dos Canta
impunemente. Independentemente da legitimidade do direito de cada etnia sobre as
terras em questão, é fato que, no início do século XVI, a Capacocha esteve no centro de
uma das mais importantes contendas entre curacas que ocorreu na primeira metade do
mesmo século. Assim, o Justicia 413 oferece mais uma evidência em favor da tese de que
a Capacocha esteve intimamente relacionada à ascensão social e a obtenção de poder
político nos andes pré-hispânicos.
Considerações finais
O exercício do poder pelos curacas andinos foi multifacetado, complexo e
envolvia uma série de elementos que ainda estão em vias de serem compreendidos pelos
estudiosos do tema. Neste artigo, direcionamos o foco a um desses elementos: os
sacrifícios que os povos andinos e seus líderes destinavam às suas divindades.
Designados genericamente pelo termo Capacocha, os autores do sacrifício ofereciam
diferentes imolações, que podiam ser alimentos, animais, roupas, armas e, mais
importante, seres humanos. Diante de tudo que foi exposto, dispomos de evidências mais
que suficientes para comprovar a ideia de que a Capacocha foi, não necessariamente a
única, mas uma importante forma de ascensão social e obtenção de poder pelos curacas
andinos que aspiravam ao incado de privilégio.
Longe de conclusiva, contudo, tal tese ainda precisa ser desenvolvida e elaborada.
Para tanto, consideramos necessária a análise de documentos eclesiásticos que julgaram
os costumes nativos; a releitura das crônicas coloniais e o estudo sistemático dos
registros jurídicos que imortalizaram as intensas disputas por poder entre os curacas.
Analisando tais fontes, podemos observar que muitos chefes nativos pareciam dispostos
a pagar qualquer preço por uma posição mais alta na sociedade e pelo favor dos incas e
das divindades andinas.
De maneira geral, os curacas andinos tinham duas opções diante da rápida
expansão incaica: aceitar a dominação estrangeira ou resistir contra ela. Diante da
impossibilidade de qualquer sociedade de governar apenas pela força, os incas se valiam
de outros elementos para assimilar populações vizinhas de Cusco, e além. Tais
subterfúgios, como a capacocha, eram oriundos das milenares tradições andinas, que os
espanhóis objetivavam usar para seu próprio benefício ou extirpar dos Andes. Todas as
fontes que discutimos aqui robustecem a ideia de que uma quantidade importante de
curacas se valeu da capacocha como meio de ascensão social. O aporte do Justicia 413,
por sua vez, mostra que a prática podia ser vista pelos ingenas como um instrumento
de legitimação de seus próprios direitos ancestrais na nova realidade.
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