BASTOS NETO, Ernesto Pereira
*
LAROQUE, Luís Fernando da Silva
**
RESUMO: A história indígena no Rio Grande do
Sul tem dado ampla atenção ao que se pode
chamar de mecanismos oficiais de conquista dos
territórios autóctones: reduções, aldeamentos,
entre outros espaços marcados pela presença,
tanto dos indígenas quanto de agentes e
instituições oficiais, como ordens religiosas ou
órgãos tutelares. O presente trabalho analisa
outras formas de relações entre indígenas e não
indígenas, que se reportam a processos históricos
distintos. Metodologicamente, partiu-se de
trajetórias e memórias indígenas para, desde uma
perspectiva vista de baixo, visibilizar aspectos
pouco conhecidos de alguns temas de maior
abrangência, como o estabelecimento de
latifúndios durante a primeira metade do século
XIX, bem como os processos de imigração
europeia promovidos pela Província de São Pedro,
durante a segunda metade da referida centúria.
PALAVRAS-CHAVE: História Indígena; Kaingang;
Santa Cruz do Sul; Vale do Rio Pardo; Etno-história;
ABSTRACT: The indigenous history in Rio Grande
do Sul has given ample attention to what can be
called official mechanisms for the conquest of
indigenous territories: reductions, indians
reservation, among other spaces marked by the
presence, both of indigenous people and of official
agents and institutions, such as religious orders or
guardianship bodies. The present work analyzes
other forms of relations between indigenous and
non-indigenous people, which refer to different
historical processes. Methodologically, we started
with indigenous trajectories and memories in
order to, from a perspective seen from below,
show little-known aspects of some broader
historical processes such as the establishment of
large estates during the first half of the 19th
century, as well as the arrival of european
immagrants encouraged by the Province of São
Pedro during the second half of that century.
KEYWORDS: Indigenous History; Kaingang; Santa
Cruz do Sul; Vale do Rio Pardo; Ethno-history;
Recebido em: 15/03/2020
Aprovado em: 01/06/2020
* Graduado em História pela Universidade do Vale do Taquari Univates, Lajeado/RS. Mestrando no
Programa de s-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), São
Leopoldo/RS. Bolsista CNPq. O texto é parte dos resultados do Trabalho de Conclusão de Curso de
Graduação do primeiro autor e está inserido no Projeto de Extensão História e Cultura Kaingang e no
Projeto de Pesquisa Identidades Etnicas em espaços territoriais da Bacia Hidrográfica Taquari-Antas/RS,
da Universidade do Vale do Taquari Univates e contou com auxílio financeiro desta Universidade e da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul (FAPERGS). E-mail:
ernesto.bastos@universo.univates.br.
** Doutor em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), São Leopoldo/RS.
Professor do Curso de História e do Programa de Pós-Graduação em Ambiente e Desenvolvimento na
Universidade do Vale do Taquari Univates, Lajeado/RS. E-mail: lflaroque@univates.br.
Introdução
A trajetória histórica do povo Kaingang vem sendo representada em perspectiva
historiográfica a partir de fios condutores muito diversos (LAROQUE, 2000; MOTA,
2008). Sendo conhecido um quadro geral desta trajetória, atualmente, é possível refletir
também desde escalas de análise reduzidas, com vistas a explicitar as complexidades que
muitas vezes escapam às abordagens gerais.
No trabalho que segue, apresentou-se parte dos resultados de uma pesquisa
realizada entre início de 2016 e final de 2019. Embora este trabalho seja constituído,
como se verá, por fontes de natureza variada, seu sustentáculo é dado pelo diálogo
estabelecido com os moradores da Terra Indígena Kaingang Jamã Tÿ Tãnh
1
, situada no
município de Estrela, no Estado do Rio Grande do Sul.
Pesquisas anteriores sobre essa comunidade haviam empreendido análises
sincrônicas, sobretudo com ênfase no processo de intensificação cultural, provocado por
uma tentativa de expropriação territorial de que o grupo foi alvo durante a primeira
década do século XXI (SILVA, 2016). Nesse contexto, a narrativa histórica aparece no
primeiro plano do discurso público dessa coletividade indígena, cujos membros, que se
comunicam exclusivamente em português, afirmam ter deixado de praticar a língua e
muitos costumes do seu povo em função das pressões coloniais.
O propósito geral que orientou a pesquisa foi contextualizar diacronicamente
algumas das narrativas contadas pelas anciãs dessa comunidade. O recorte que ora
apresentamos nos limites deste artigo, todavia, discute algumas aproximações
comparativas entre as narrativas coletadas na Jamã Tÿ Tãnh, com estudos publicados
desde o final da década de 1980 a respeito da comunidade Kaingang conhecida como
Borboleta, nomeadamente: Simonian (1987), Venzon (1993a), Souza (1998), Soares (2001),
entre outros.
O objetivo, portanto, do presente trabalho é, ao apresentar a análise comparativa,
demonstrar como uma série de processos complexos de relações interpessoais e
interétnicas conformou-se, ao longo do tempo, como um mecanismo extraoficial de
expropriação territorial, com uma série de outras implicações negativas para as pessoas
indígenas envolvidas. Por outro lado, demonstra-se também que os indígenas não se
consideram vítimas passivas desses acontecimentos, tendo movimentado os recursos de
1
A noção de Terra Indígena adotada neste texto, utilizada muitas vezes como sinônimo de “comunidade
indígena”, é entendida a partir dos preceitos constitucionais de direito à autodemarcação das terras
habitadas pelos grupos indígenas. Não corresponde, necessariamente, às informações oficiais sobre
situação jurídica das terras, conforme a Fundação Nacional do Índio (FUNAI).
que dispunham para viabilizar suas existências, articulando, a partir de uma consciência
coletiva sobre as violências sofridas, um horizonte de ações e lutas em diferentes arenas
de disputa.
Não são apontadas, portanto, causas que, supostamente, explicariam o presente a
partir de uma narrativa sobre o passado, pretende-se ao invés, lançar a partir dos casos
em tela, novos feixes de luz sobre processos históricos que podem ter influenciado nas
escolhas dos sujeitos envolvidos. Explicitando-se, assim, um entendimento de que nem
os indivíduos são determinados pelas estruturas sociais, tampouco agem no mundo
absolutamente alheios a estas (IMÍZCOZ, 2004).
A Terra Indígena Jamã Tÿ Tãnh
A Terra Indígena Kaingang Jamã Tÿ Tãnh situa-se às margens da BR-386, na
altura do Km 360, no município de Estrela/RS. Na primeira década do século XXI, essa
comunidade ganhou visibilidade regional, pois, durante as obras de duplicação da
referida rodovia, surgiu a possibilidade de remoção do grupo (SILVA, 2016). Frente aos
riscos, a comunidade articulou-se com outros coletivos Kaingang vizinhos, de modo que,
não apenas a manutenção desse grupo no espaço onde se encontram foi garantida, como
também se estipulou uma série de medidas compensatórias e mitigatórias para essa
comunidade e todas as demais que, segundo estudos antropológicos, foram impactadas
indiretamente pela obra (SILVA, 2016).
Essa comunidade se formou a partir da união poligâmica de Samuel Soares com três
mulheres: Jônia Soares, Rosa Evalina de Mello e Lua do Couto
2
. Dessas uniões, que
ocorreram na zona rural do município de Santa Cruz do Sul e adjacências, nasceram
aproximadamente 30 filhos (as). Entre o final da década de 1960 e o início da seguinte,
essas pessoas deixaram Santa Cruz do Sul e passaram a residir, provisoriamente, em
vários municípios. Relatam ter morado sob pontes, em casas de capim às margens de
estradas, sobrevivendo da caça, pesca, coleta, venda de artesanato e prestação de
serviços diversos.
No início da década de 1970, o grupo acampou às margens da estrada da produção
(atualmente conhecida como Rodovia Leonel de Moura Brizola BR-386), no trevo de
2
Considerando que o presente trabalho foi realizado no âmbito das atividades de projetos de pesquisa e
extensão mais antigos, adotou-se os procedimentos ético-metodológicos acordados entre os
pesquisadores dos referidos projetos e as lideranças da comunidade Jamã Tÿ Tãnh. Dentre esses
procedimentos, comprometeram-se os integrantes dos projetos de preservar a identidade dos
colaboradores indígenas da pesquisa. Desse modo, foram utilizados pseudônimos ou apelidos ao invés dos
nomes verdadeiros dos interlocutores e de todos os seus ascendentes e descendentes mencionados. Seus
sobrenomes, contudo, foram mantidos.
acesso ao município de Bom Retiro do Sul/RS. Alguns filhos (as) haviam nascido em
Santa Cruz do Sul, outros nasceram em alguma das cidades por onde passaram, a
maioria veio ao mundo nesse acampamento, na BR-386. Ao longo dessas movimentações
desde Santa Cruz do Sul, os filhos maiores passaram a frequentar espaços de
sociabilidade etnicamente diversos e foram incorporando ao grupo, pela via do
casamento, pessoas que não necessariamente consideravam-se indígenas.
Samuel e Jônia chegaram a casar-se no Registro Civil
3
. No termo de casamento,
registrado no município de Bom Retiro do Sul, no ano de 1979, consta que Samuel era
agricultor, nascido em Santa Cruz do Sul, no ano de 1942. Filho de Marina Albertina
Soares, nascida em 1911, residente e domiciliada em Santa Cruz do Sul. Jônia foi registrada
da seguinte forma: do lar, nascida em Santa Cruz do Sul, no dia 16 de agosto do ano de
1946. Filha de Marina Redentora Soares, nascida em 1920, residente e domiciliada em
Santa Cruz do Sul. Todas as demais informações a respeito de Jônia e Samuel são
oriundas da memória da comunidade.
Jônia nasceu em Linha Desirio/RS. Quando conheceu Samuel, ela e seus irmãos
moravam com a mãe: No meio dos alemão, morava assim, nas terras deles. E daí a gente
tinha a casinha da gente pra morar, né!” (Jônia Soares, entrevista 14 jun. 2018, p. 2). Casas
feitas de barro e capim, segundo contam. Quando Jônia tinha treze anos, Samuel foi
trabalhar nas terras desses colonos e, então, ambos passaram a se relacionar.
O cenário delineado pela memória de Jônia remete claramente à condição de
agregação, que, segundo Eckert (2011), era situação recorrente na região de Santa Cruz
do Sul ainda nas primeiras décadas do século XX. O autor afirma que a presença de
trabalhadores agregados
4
nas propriedades rurais ocorria tanto na atividade extrativista
sobretudo relativa à colheita da erva-mate quanto nas propriedades agrícolas, nas
quais a fumicultura logo se tornou o carro-chefe. nia, entre outras pessoas da
comunidade, descreve com detalhes a atividade de plantio, colheita e secagem do fumo.
A documentação pessoal de Jônia não informa a paternidade. Ela afirma que não
conheceu o pai, mas segundo sua mãe, ele se chamava Jacó Jovino da Rosa. A mãe de
Jônia era natural de Herveiras/RS e sua avó “foi pegada no mato à cachorro”
(GONÇALVES; ROSA, 2013, p. 238). A recordação mais latente a respeito do modo de
3
Com vistas a preservar a identidade das pessoas, informa-se apenas que a certidão de casamento se
encontra no Registro Civil do município de Bom Retiro do Sul.
4
O termo agregado é conhecido com sentido análogo ao que se aplica aqui desde o período colonial
brasileiro, pelo menos. Na acepção praticada nessa pesquisa, a agregação consiste grosso modo em
um acordo estabelecido informalmente, no qual uma ou mais pessoas ou família sem acesso à propriedade
privada, residem na propriedade de outrem, onde também auxiliam os proprietários no cultivo, mediante
alguma forma de pagamento.
vida dessas pessoas era seu apreço por caminhar: “Ela não tinha parada” (Jônia Soares,
entrevista, 14 jun. 2018, p. 6), afirma Jônia a respeito de sua mãe.
Assim como o registro de nascimento de Jônia, o de Samuel apresenta apenas o
nome da mãe, portanto, a paternidade é conhecida em função da memória da
comunidade. A mãe de Samuel, conforme lembra uma das anciãs, era natural de Monte
Alverne/RS
5
: “Lá pra banda de Linha Saraiva” (MELLO, 2018, p. 4), tinha cabelos pretos e
longos, afirmam ter vivido mais de cem anos. O pai era conhecido como Beto Coito; Jônia
e Rosa chegaram a morar com Samuel na casa do pai, localizada em Monte Alverne, na
localidade de Linha Brasil. Segundo Rosa, Beto era “bem índio”:
Rosa: Ele era! Ele era bem índio aquele io! Ele faleceu bem velho, né, mas
nunca se entregou. E também nunca ficou doente, ou ia pro hospital, se curava
com chá do mato. Ele conhecia os chá. Ele não ia procurar médico assim. Se
curava em casa. (Rosa Evalina de Mello 6 ago. 2018, p. 6).
Rosa Evalina de Mello não sabe precisar onde nasceu, mas se recorda que,
quando passou a morar com Samuel e Jônia, sua mãe, Fabiana Ambrosina de Mello, era
agregada de um casal de idosos, na localidade de Linha Saraiva, também situada no
distrito de Monte Alverne: “Tinha um casal de velho e daí ela morava num forno de fumo!
Ela morava dentro!” (Rosa Evalina de Mello 6 ago. 2018, p. 4). Rosa conheceu Samuel
em um “baile de brasileiro”, seu pai, João Zenon, já havia falecido, e então Rosa “se achou
com Samuel”.
Lua Maria do Couto nasceu na localidade de Linha Chaves/RS, no dia 07 de julho
de 1951, filha de Adão Mariano do Couto e Josefa Sehn do Couto. Sua mãe nasceu na
Linha Brasil, em Monte Alverne. Lua conta que parte de sua família é formada por
pessoas indígenas e outra por descendentes de alemães. Seu avô (não se sabe se
materno ou paterno) era “bugre” de nome Martin Caetano. O seu bisavô teria sido um
“bugre do beiço furado”
6
que fora pego no mato, na altura da localidade de Paredão
7
.
5
Distrito do município de Santa Cruz do Sul/RS.
6
Entre os Kaingang atualmente, é recorrente à referência aos xokleng como “índios do beiço furado.
Estudos sobretudo de cunho histórico e antropológico ainda carecem de maior aprofundamento nesse
sentido, aponta-se, a título de ilustração, a obra do historiador Lauro Cunha, “Índios xokleng e colonos no
litoral norte do Rio Grande do Sul (século XIX)” (2012) e o estudo da antropóloga Juracilda Veiga,
Kaingang e Xokleng: inimigos preferenciais” (2003). No trabalho antropológico, com base em registros
orais dos Kaingang das aldeias de Nonoai, Rio da Várzea e Inhacorá, são mencionados conflitos entre
Kaingang e Xogleng. Por outro lado, a pesquisa arqueológica de Schneider (2019) identificou na região do
médio rio Forqueta, muito próximo dos espaços aos quais estamos nos referindo, a ocorrência de sítios
arqueológicos Tupi-Guarani com grande incidência de adornos labiais tembetá, considerando que a
cronologia dos sítios indica permanência em meados do culo XVIII; não é possível descartar a hipótese
de que essa memória sobre o beiço furado” possa se reportar, também, a essas populações.
7
Linha Paredão, pertencente ao município de Santa Cruz do Sul/RS
A memória toponímica sobre a região de origem corrobora absolutamente suas
narrativas. Todas as localidades mencionadas podem ser localizadas em um mapa do
município de Santa Cruz do Sul, datado de 1922 (IMAGEM 1). Note-se que, por
coincidência ou não ao lado de Linha Desidério, onde Jônia nasceu, existe uma
localidade chamada “Linha do Bugre”.
Imagem SEQ Figura \* ARABIC 1: Recorte parcial do Mapa do Município de Santa Cruz
do Sul, Estado do Rio Grande do Sul.
Fonte: Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul.
As anciãs da Jamã Tÿ Tãnh falam sobre vinculões étnicas de forma mais ou
menos genérica. É necessário ter em vista, no entanto, que a noção de “índio” é
completamente genérica por si só. Souza (1998) propõe que a noção autóctone tem mais
valor heurístico do que teria a de índio, ao indicar uma oposição entre autóctones e
alóctones. No mesmo sentido, as discussões sobre etnicidade, por exemplo, explicitam
que etnônimos são categorias históricas e relacionais, cujo significado se constrói na
interação de grupos étnicos diferentes (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011).
Não obstante, os moradores dessa comunidade indígena costumam vincular o
sobrenome Soares à origem Guarani, enquanto Mello é sobrenome considerado
Kaingang, da região da serra santacruzense, associado às paisagens de araucária
remanescentes e à coleta e consumo do pinhão
8
. Rosa afirma que seus parentes, naquele
território, eram chamados de “os Mello” ou “os Melinho” (Rosa Evalina de Mello 6 ago.
2018, p. 5).
Ainda que alguns dos seus ancestrais tivessem contraído casamentos com
europeus, escolhido constrangidos ou não em deixar de falar sobre sua origem étnica
e tenham se convertido ao cristianismo ou mesmo que, atualmente, não se saiba
exatamente quem eram esses ancestrais, esse grupo foi formado por pessoas que
parecem nunca ter esquecido o fato de serem autóctones. Nesse sentido, tão importante
quanto identificar eventos que ao longo de suas vidas lhes impuseram essa consciência,
ou situações em que deliberadamente buscaram traçar as fronteiras de uma identidade
ética, é perceber que, a partir de experiências e memórias, os sujeitos/coletivos podem
atualizar potências virtuais em uma “etnogênese” (BARTOLOMÉ, 2006) ou um “devir-
índio” (VIVEIROS DE CASTRO, 2015)
9
.
A Terra Indígena Borboleta
No ano de 1987, a antropóloga Lígia Teresinha Simonian (1987) publicou duas
informações técnicas a respeito da reivindicação territorial de um coletivo indígena
formado por indígenas das etnias Kaingang, Guarani e Xokleng, denominada área
indígena Borboleta, localizada entre os rios Jacuizinho e Caixões, afluentes do rio Jacuí,
8
Nome pelo qual é conhecido regionalmente o fruto do pinheiro brasileiro (araucária angustifólia).
9
Essas propostas teóricas não são complementares se bem as entendemos são, em alguma medida,
alternativas umas às outras, inclusive.
abrangendo partes de mais de um município. Desde então seguiram-se inúmeras
pesquisas junto desse coletivo indígena (VENZON, 1993a; SOUZA, 1998; SOARES, 2001)
10
.
O cruzamento dos dados históricos levantados pelos referidos estudos permite
considerar que, até os primeiros anos do século XIX, boa parte dos ancestrais dos
indígenas de Borboleta vivia em um lugar entre o Campo Comprido (atualmente
localizado no município de Espumoso/RS), e as florestas da Serra Geral, referindo-se
precisamente a um núcleo populacional Kaingang situado na cabeceira do rio Botucaraí,
chamado Cerro Branco
11
.
Referente ao século XVIII, informações de expedições pelos Campos Botucaraí e
na Fortaleza de Rio Pardo constam no Diário de Gomes Freire, de setembro de 1754, e
que são analisadas por Tau Golin na obra “A Guerra Guaranítica” (2014). Nesse sentido,
na Carta de 14 de setembro de 1754, endereçada por Gomes Freire de Andrade a D. Jo
de Andonaegui, tem-se o seguinte:
No dia 20 de julho mandei os prizioneiros com cartas aos caciques do theor da
copia junta. E no dia 25 e 26 de agosto passei as Tropas e bagagens a esta parte
do Rio Pardo, não me servindo de embaraço tao furiuzo fogo que devorou, á
maior parte das vivendas, em que muitos officiaes ficarão arruinados, pois huma
camiza não salvarão, o que me foi mais sensível, que a perda de hum grande
armazém de roupa e generos meus, de que só se salvou a pequena parte, que no
mesmo dia se havia carregado, nada obstando, nos já referidos dias passei o dito
Rio e vim campar huma legoa distante delie. Em 28 continuei a marcha, e
corre 2 dias de descanço aos gados cheguei a este do porto Rio Jacuy havendo-
me detido em aplanar as grandes ribanceiras do Rio Botucaray para o poder
pairar com as bagagens grossas e comtanto trabalho a 7 do corrente ao meio dia
reconheci que os rebeldes tinhão fortificado da parte opposta este Rio, que he
de nado e no mais como dirá o Capitão D. Filippe de Mena (ANDRADE, 1936, p.
387).
A desestruturação desses povoados ancestrais parece ter se agravado
definitivamente com a abertura da Picada Botucaraí, iniciada no ano de 1810. Rodrigo
Venzon (1993a) entrevistou indígenas de Borboleta que guardavam memórias sobre
relatos de seus antepassados, que opuseram resistência às invasões territoriais iniciadas
com a abertura dessa picada.
Os índios de Borboleta relatam com riqueza de detalhes os ataques de seus
antepassados às turmas de trabalhadores desta picada [...]. Afirmam os relatos
que na oportunidade os indígenas observavam, escondidos no mato, o trabalho
de abertura das picadas durante o dia, e atacavam os acampamentos à noite
com porretes, abatendo os fugitivos a flechadas, e protegidos pelos “trabalhos”
efetuados por seus pajés, que adormeciam profundamente os oponentes. Da
10
Não sendo o objetivo deste trabalho retomar à exaustão aspectos trabalhados pelos autores
mencionados, não serão discutidos aqui dados que para o entendimento dessa reivindicação territorial são
centrais, como a existência de outros fluxos étnico-culturais que constituem a identidade deste grupo.
11
Nas proximidades desse local existe, atualmente, um município chamado Cerro Branco/RS.
terceira expedição, relatam que os militares fingiam trabalhar durante o dia e,
estando fortemente armados, dizimaram os índios durante o ataque pela
madrugada, mesmo assim restando sobreviventes. (VENZON, 1993a, p. 157).
O historiador Sérgio da Costa Franco (1975) afirma que, com a abertura desse
caminho do município de Rio Pardo/RS, em direção ao território que atualmente
corresponde ao município de Soledade/RS, buscava-se:
[...] uma comunicação direta entre Rio Pardo e o Planalto, procurando-se, com
isso um tríplice objetivo: a) afugentar os bugres da encosta da serra; b) encurtar
o caminho para os tropeiros que se destinavam às capitanias do Norte”, ou seja
a São Paulo; c) estabelecer a possibilidade de um comércio direto entre Rio
Pardo e as Missões. (FRANCO, 1975, p. 19).
Evidentemente que este episódio isolado deve ser pensado como vestígio para a
compreensão de processos de maior abrangência. Não obstante, é de se destacar um
trecho da narrativa a respeito desses eventos:
Ali, pelas cabeceiras do rio Botucaraí, onde os expedicionários conquistaram e
destruíram um toldo indígena, aprisionando sete crianças “de idade de 11 anos
para baixo”, vieram manter violentos combates com os índios [...]. Enviou uma
partida de 14 homens, sob o mando do Cabo Vicente Nunes para descobrir as
cabeceiras dos afluentes do Jacuí. Presumivelmente, do arroio Lagoão e do
Jacuizinho. O Cabo Nunes continuou travando repetidos reencontros com os
bugres. (FRANCO, 1975, p. 20).
Além de relacionar-se diretamente aos conflitos envolvendo interesses
portugueses na região do Prata, frente ao movimento Artiguista, essa expedição
mencionada pelo rio Botucaraí insere-se no processo de avanço luso-brasileiro em
direção ao planalto
12
. Ou seja, esse evento ocorre no mesmo ano em que se inicia a
distribuição de sesmarias nos territórios das antigas Missões Orientais, evidência dos
interesses econômicos e expansionistas das elites luso-brasileiras (OSÓRIO, 1990).
Em termos da história indígena, chama atenção o fato de que após um ano de
conflitos com os indígenas, quando as autoridades locais consideravam reduzida a
ameaça autóctone na borda do Planalto, o comandante de Rio Pardo fez subir à Picada:
“[...] o referido Ten. Carvalho e o Alferes Manoel Machado com quarenta homens
daquela companhia mais alguns Curitibanos que possam ajuntar, para ao menos ver se
12
Esse caminho havia sido identificado e percorrido anos antes pela comitiva de demarcação do Tratado
de Santo Ildefonso (1777), liderada pelo engenheiro demarcador José de Saldanha.
espantam estes malvados (os bugres)” (apud FRANCO, 1975, p. 22). Destaca-se
justamente que a orientação incluía, especificamente, “alguns curitibanos”
13
.
Não se pode esquecer o fenômeno do bandeirantismo que, como demonstrou
Monteiro (1994), foi elementar na formação sociocultural da população paulista.
Tampouco parece interessante, no entanto, considerar esses paulistas um grupo
homogêneo, pois, evidentemente, o que importa é ter em vista que:
A forte proximidade cultural dos paulistas com os indígenas, por sua vez, os
fazia muito mais hábeis que os soldados portugueses para andar pelas matas e
sobreviver nos campos, possuindo os conhecimentos necessários sobre quais
plantas poderiam ser ingeridas, como deveriam ser caçados determinados
animais, entre outros. (GARCIA, 2007, p. 49).
Essa relação estreita entre paulistas e indígenas apresenta desdobramentos na
história da Borboleta. Algumas das famílias entre as consideradas mais antigas nessa
reivindicação, por exemplo, são vinculadas ao sobrenome “de Mello”, reportando-se à
união possivelmente não consentida entre o militar paulista Antônio José de Mello
Brabo e a “índia do beiço furado” Conceição dos Campos Novos (VENZON, 1993a).
Estudando a tradição oral desse grupo, Souza (1998) afirmou que um processo de: “[...]
mútua cooptação pelo casamento integrou o paulista às redes sociais aborígenes [...]”
(SOUZA, 1998, p. 157). Disso surgiram canais de integração assimétrica que perduraram
estáveis em sua complementariedade e mestiçagem.
Ainda que não tenhamos encontrado uma evidência de que Mello Brabo tenha se
casado pelo rito católico com a referida Conceição, inclusive por ter sido casado em
sua província de origem, esse paulista chegou a reconhecer, formalmente, os filhos que
teve com uma mulher chamada Maria Conceição: “[...] mulher solteira que a tem tendo
mantida em sua companhia” (ESCRITURA pública de perfilhação, 1855). Isto é, além de
reconhecer a paternidade, Mello Brabo explicita a relação de concubinato que manteve
com a referida mulher.
Por meio da mencionada Escritura Pública de Perfilhação, Mello Brabo
reconheceu ter tido cinco filhos: “[...] Antonio, Constantina, Apolinária, Fermina e
Amellia”:
Antonio, de idade de quatorze annos, filho de Filippa Maria, mulher solteira e
Constantina, de idade de cinco annos, Apolinaria, idade quatro annos, Fermina,
idade de dois annos e Amellia, idade de um anno, filhos de Maria da Conceição
13
Até dezembro de 1853 o atual Paraná era uma Comarca da Província de São Paulo, com sede em
Curitiba, o que tornava curitibano todo paulista entre os rios Paranapanema e Uruguai, limites da comarca
curitibana.
também mulher solteira que a tem tendo mantinda em sua companhia
(ESCRITURA pública de perfilhação, 1855).
Cruzando-se essas informações aos registros paroquiais de batismo da capela de
Nossa Senhora do Espírito Santo da Cruz Alta, foi possível identificar que, dois meses
após a realização do documento supramencionado, pôs-se os santos óleos do batismo à
inocente Amélia, “[...] china, nascida em quatorze de junho do anno de mil oitocentos e
cinquenta e quatro, filha natural de Maria Conceição, solteira, natural desta Província”
(REGISTRO de batismo de Amelia, 1855). É interessante notar que o padrinho de Amélia,
filha de uma china solteira, não foi um sujeito sem distinção social, mas o Major João
Baptista de Oliveira Mello, homem de confiança do Ten. Cel. Antonio José de Mello
Brabo, conforme é possível notar pelas correspondências deste último
(CORRESPONDÊNCIA encaminhada ao Conde de Rio Pardo, 1841).
As coincidências entre datas de nascimento, maternidade e inserção em uma rede
de compadrio singular permitem sugerir que Améllia
14
, registrada por Mello Brabo como
filha que teve com Maria Conceição, possa ser a mesma Amélia localizada nos registros
de batismo. Caso afirmativo, explicita-se a inserção de Mello Brabo em uma parentela
indígena, uma vez que o termo classificativo “china” tem sido considerado pela
historiografia recente uma referência à origem, associado aos filhos de mãe indígena e
pai branco, ou mesmo filhos de mães e pais indígenas, a depender do padre que realiza o
sacramento, entre outras variáveis
15
.
Antonio José de Mello Brabo, por sua vez, foi apontado pela historiadora Helen
Ortiz (2006) um dos maiores proprietários de terras na região de Soledade. Como
demonstram os registros de batismo da referida paróquia de Cruz Alta, Mello Brabo
residia em um lugar chamado Depósito, na localidade de Jacuizinho, conforme os
batismos realizados em sua residência permitem concluir.
Ao comparar essas informações aos registros de Simonian (1987) sobre a memória
toponímica das habitações e lugares tidos como sagrados pelos indígenas que
reivindicam o território da Borboleta, é possível concordar com Venzon (1993a), para
quem “A história da Borboleta aborda a existência de uma sesmaria indígena na região de
14
É necessário destacar que essas inferências que apresentamos com base em registros paroquiais o
fazem parte dos estudos realizados por pesquisas anteriores. São interpretações que estamos lançando
sobre a documentação escrita, com base na tradição oral do grupo. Nesse sentido, a diferença na grafia
dos nomes pode indicar que sejam pessoas diferentes, ou apenas um erro de algum dos redatores.
15
Cf. Ribeiro (2014); Fontella (2015).
Soledade, Rio Grande do Sul
16
(VEZON, 1993a, p. 155). Dito de outro modo, os campos
que pertenceram a Mello Brabo podem ser entendidos não apenas como a fazenda de um
militar estancieiro do período colonial/imperial brasileiro, mas como uma aldeia indígena
aos moldes de algumas das aldeias descritas por Almeida (2013b), no Rio de Janeiro
colonial.
[...] Conforme os padrões de concessões de datas sem nenhuma ressalva no
sentido de que elas pertenciam ao grupo, pois se estabelecia que “ele haja a
posse e o senhorio das ditas terras para sempre para ele e para todos os seus
herdeiros e sucessores ascendentes e descendentes que após deles vierem”.
Não obstante, os documentos posteriores que tratam dos conflitos em torno
das terras dessa aldeia não deixam qualquer dúvida sobre o caráter coletivo
daquele patrimônio (ALMEIDA, 2013b, p. 258).
Ou seja, nesse encontro de subjetividades heterogêneas, impulsionado por
pressões coloniais e mediado pelas intencionalidades dos diferentes atores, esse grupo
constituiu-se em uma comunidade indígena ao menos para os índios provavelmente
Mello Brabo tivesse outra percepção a respeito dos mesmos processos. Certamente o
tinha, diga-se de passagem, pois a partir da segunda metade do século XIX, esse sujeito
passou a vender porções significativas de sua propriedade e esse período marca a
memória indígena pela nova onda de expropriações que desencadeou.
Assim como ocorreu em outras partes do território da Província de São Pedro,
com a Lei de Terras (1850) e a política de estímulo à entrada de imigrantes de origem
germânica na Província, grandes proprietários passaram a vender parte de suas terras
para colonização. Analisando-se o inventário post-mortem de Antonio José de Mello
Brabo, realizado entre os anos de 1885 e 1889, nota-se que seus bens remanescentes
eram os seguintes:
Uma parte de campo e mattos sita no quarto distrito deste termo, no campo
comprido, situada entre o arroio das Borboletas e um lugar denominado
(apertado) avaliado por cento e oitenta mil reis; Um pequeno pontão de matto
situado também no mesmo distrito e campo comprido, no lugar denominado
(potreiro) avaliado por sessenta mil reis; Um outro pontão de matto, no referido
districto e campo comprido no lugar denominado potreiro, igualmente avaliado
pela quantia de sessenta mil reis; Que demonstra somados todos a quantia de
trezentos mil reis (INVENTÁRIO post-mortem do Ten. Cel. Antonio José de
Mello Brabo, 1885, p. 9-10).
16
Conforme levantamento documental realizado por Montagner (2017), no ano de 1844 Mello Brabo
adquiriu a Sesmaria do Depózito que incluía a fazenda das Borboletas , além das terras que ocupou por
posse, identificadas nos registos paroquiais de terra de Cruz Alta, analisados por Ortiz (2006).
A Fazenda das Borboletas foi, portanto, a última propriedade pertencente ao
Mello Brabo. E, de fato, como alegam os indígenas, o “último a mexer com esse direito”
foi Eustáquio de Mello Brabo, filho do Tenente Coronel, que cuidou deste em seu leito de
morte e, em função das despesas que teve com o moribundo, recebeu o título de
propriedade dessas terras.
Não tivemos acesso a documentos que fornecessem maiores informações sobre
Eustáquio, mas a tradição oral conta que durante a Revolução Federalista
17
: “[...]
Eustáquio Mello foi emboscado por quatro homens dentro do seu rancho e degolado
“por ser um índio sem valor”, deixando sua viúva Inocência Velloso Linhares e oito filhos
vagando sem rumo, pelas fazendas dos invasores” (VENZON, 1993a, p. 159).
[...] A comunidade sempre se refere a Eustáquio de Melo Brabo como a primeira
pessoa a tentar defender o direito sobre a posse da terra, mas que com a sua
morte, nenhum outro parente teria ido procurar os seus direitos [...]. Inclusive
existem relatos que narram que durante muito tempo após a morte de
Eustáquio, diversas famílias iam até o local que ele estava enterrado para rezar
e sempre lembram a atitude tomada por ele na defesa da terra para os parentes
que ali moravam na área da Borboleta (SOARES, 2001, p. 54).
De acordo com Soares (2001): “[...] com a morte de Eustáquio intensificou-se a
chegada de alemães e italianos na área, o que acabou configurando novos padrões de
interdependência entre estes e a comunidade” (SOARES, 2001, p. 55). Quer dizer,
padrões cada vez mais assimétricos em prejuízo das pessoas e famílias indígenas. As
narrativas registradas por esses pesquisadores (as) que conheceram os indígenas de
Borboleta, evidenciam meandros da expansão do capitalismo na zona rural do Rio
Grande do Sul. Por um lado, recorreu-se em larga escala a toda ordem de fraudes:
medições feitas em escritório (KLIEMANN, 1986), redes de favorecimento em disputas
judiciais (CHRISTILLINO, 2010), entre outros expedientes ilícitos. Em paralelo, a
legitimação das posses ocorria em geral por meio da força:
Mas mataram, degolaram, faziam e aconteciam. Chegavam se apossando das
terra, e iam matando e empurrando. Quem ainda, tem algum que nos
canto por lá, tem o Seu Teodoro, um baixinho que mora lá. Aquele num
beiço, num perau lá. E os que queria resisti mesmo era os que mataram, foram
mortos. Assim a contava isso, a mãe. Minha mãe veio de eu tinha 12 anos
(CAMPOS apud SOARES, 2001, p. 62).
17
Este conflito deflagrou-se no ano de 1893, estendendo-se até 1895, em função das mudanças no status
quo regional advindas da Proclamação da República a nível nacional, que impulsionou ao poder uma facção
política nova no Rio Grande do Sul, articulada ao redor do Partido Republicano Rio-grandense. Esse
conflito é amplamente reconhecido pelo teor exacerbado de violência, sendo lembrada com a “guerra da
degola”.
Essa é uma dimensão, conforme mencionado, “extraoficial” da questão indígena,
uma vez que esses indígenas, por estarem muitos anos vinculados por parentesco e
outras formas de relação a um membro da elite regional, não tiveram suas terras
identificadas pelos órgãos destinados a tratar das terras indígenas (SOUZA, 1998;
SOARES, 2001).
A violência acentuada do período republicano constrangeu centenas de famílias
naturais da Borboleta a dispersarem-se territorialmente. O patrimônio, não apenas
material, mas também simbólico e etnológico, do grupo foi prejudicado, uma vez que as
práticas de reciprocidade, visitas, festas, relações de parentesco e trabalho tiveram que
ser readequadas às novas realidades, o que não implicou, todavia, no desaparecimento
das mesmas (VENZON, 1993a).
Por volta do final da década de 1980, em meio a uma conjuntura ampla de
mobilizações indígenas nas terras Kaingang no norte do Rio Grande do Sul e em outros
estados, bem como no contexto de mobilizações democráticas a vel nacional, os
descendentes da Borboleta retomaram suas reinvindicações (SIMONIAN, 1987; VENZON,
1993a; SOUZA, 1998). O processo reivindicatório por demarcação um dos mais antigos
em curso no Rio Grande do Sul ainda tramita irresoluto na Fundação Nacional do Índio
(FUNAI).
História Indígena em Santa Cruz Do Sul? O apagamento da história indígena nas
áreas de imigração europeia no Rio Grande do Sul
A população da Borboleta foi ouvida por pesquisadores ainda na década de 1980.
Naquele contexto, foram registradas entrevistas com pessoas já centenárias, que
permitiram aos referidos pesquisadores uma leitura sincrônica e também diacrônica do
processo com recuo temporal expressivo, como destacou-se. Para o caso da Jamã Tÿ
Tãnh, infelizmente, as pessoas passaram a ser entrevistadas somente no século XXI.
Do ponto de vista da diacronia, considerando-se os pressupostos da história oral,
mantiveram-se apenas as narrativas baseadas em experiências vividas. Desse modo, a
reconstituição remete, no máximo, a meados do século XX. Nesse caso, empreendeu-se
uma investigação bibliográfica a respeito de Santa Cruz do Sul/RS, lançando sobre essa
bibliografia questões levantadas durante as entrevistas e conversas na Jamã Tÿ Tãnh.
O município de Santa Cruz do Sul herda esse nome da colônia agrícola criada pela
Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, no ano de 1849, para a alocação de
imigrantes de origem germânica nas imediações do rio Pardinho. Na revisão bibliográfica
empreendida, o único trabalho que fornece dados consistentes a respeito da presença
indígena nesse lugar após a criação da colônia é o de Venzon (1993b).
Recuando-se temporalmente ao período do estabelecimento da dita colônia, se
percebe a presença indígena. Por um lado, Cunha (1988) observa que a criação desse
núcleo colonial se insere no projeto da Província de tornar produtivas e desinfestadas”
as áreas florestadas entre os rios Pardo e Caí.
Com base nos estudos de Laroque (2000) a respeito das atuações Kaingang
frente aos avanços da colonização nessa Província, é possível perceber que, nas
imediações do rio Caí, ocorreram sistemáticos conflitos envolvendo indígenas e
imigrantes. Vedoy; Laroque e Machado (2018), por sua vez, identificaram processos
semelhantes nas imediações do rio Taquari. Nas proximidades do rio Pardo, poucas
evidências de conflitos envolvendo indígenas e imigrantes. Cunha (2006) permite inferir,
no entanto, que esses conflitos, provavelmente, ocorreram, pois alguns dos articuladores
da imigração germânica nesse local reclamavam que os imigrantes em Santa Cruz do Sul
estavam expostos aos ataques indígenas.
Suspeita-se que incidentes bélicos envolvendo indígenas Kaingang e moradores
da colônia de Santa Cruz do Sul não tenham sido tão frequentes devido ao fato de que a
ocupação luso-brasileira desse local se consolidou ainda nas primeiras décadas do século
XIX, na esteira dos processos ilustrados anteriormente, pelo exemplo da abertura da
Picada Botucaraí. Os já referidos estudos de Venzon (1993a e b) subsidiam essa hipótese.
Além de amplas discussões a respeito da Serra do Botucaraí, o autor localiza uma
referência espefica à colônia de Santa Cruz do Sul, feita pelo naturalista frans Aimé
Bonpland, que passou pela colônia em meados do século XIX:
Fiz hoje uma excursão a duas léguas de Santa Cruz [...]. Há aproximadamente 30
anos, a serra e todas as terras compreendidas entre esta mesma e a margem
oriental do Jacuí Grande, eram ocupadas por estes índios chamados Bugres,
sobretudo na parte desta grande extensão de terra mais próxima a Rio Pardo
[...]. Com o objetivo de determinar de maneira mais positiva o número de
inimigos e de tornar mais praticáveis as estradas, o General Correa mandou
atear fogo nos grandes campos cobertos de uma espessa e impenetrável
vegetação. Este fogo que se estendeu por estes imensos campos ocupados
pelos Bugres chamou-lhes a atenção. Quando o fogo terminou, uma multidão
deles veio então do campo queimado e chegou até a picada [...]. A partir dali
seriam para sempre desapossados dos seus domínios [...]. O comandante ou
governador Correa [da Câmara] usou todas as forças que pôde reunir para
expulsar os índios das margens do Jacuí e obrigou-os a abandonar a picada. O
Governo Brasileiro a par do que acontecera, ajudou o general Correa
fornecendo-lhe todos os meios para combater os Bugres com superioridade de
forças (BONPLAND apud VENZON, 1993b, p. 165).
Não obstante a guerra contra os referidos “bugres”, (que provavelmente fossem
indígenas Kaingang)
18
, é necessário recordar a longevidade da presença Guarani nas
imediações do rio Pardo. E, para tangenciar-se a complexidade desse processo, deve-se
ter em vista inicialmente, que: “No que diz respeito à ocupação pré-histórica, as
pesquisas realizadas ao longo de quase 40 anos mostram uma alta densidade de sítios
arqueológicos, compreendendo as tradições Umbu, Humaitá, Tupi-Guarani, Taquara e
Vieira” (ROGGE, 2004, p. 126)
19
.
Os povos Tupi-Guarani parecem ter chegado na região da bacia hidrográfica do
Rio Pardo entre os séculos XIV e XV da Era Cristã (ROGGE, 2004). Isto é, frente aos
processos de expansão dessas populações nas terras atualmente conhecidas como Rio
Grande do Sul, a ocupação desse espaço pode ser considerada relativamente tardia, ao
passo que, nas imediações do médio rio Jac não muito distante do rio Pardo ,
encontram-se sítios arqueológicos Tupi-Guarani desde o ano 3 A.D. (ROGGE, 2004). O
que não significa, absolutamente, ausência de ocupação humana nesse espaço, como
dito, outras populações circulavam pela bacia hidrográfica do rio Pardo milênios,
talvez 10 mil anos, inclusive (RIBEIRO apud ROGGE, 2004).
Em que pese a arbitrariedade de se cruzar en passant por séculos de história, em
pulos cavalares entre um e outro, parece importante sinalizar a existência dessas
territorialidades sobrepostas desde tempos imemoriais. Durante os séculos XVII e XVIII,
as atuações de parcialidades Guarani em territórios do Rio Pardo foram descritas pelos
padres jesuítas. A partir do século XVII, esses grupos estabeleceram relações com
missionários da Companhia de Jesus, respondendo à Coroa espanhola (CRISTO;
LAROQUE; MACHADO, 2018).
A própria fundação da vila de Rio Pardo tem vínculos estreitos com a população
Guarani. Um dos primeiros núcleos populacionais dessa vila foi constituído por,
aproximadamente, 700 famílias Guarani sobreviventes da Guerra Guaranítica (1754-1756)
que, ao invés de atravessarem à margem direita do rio Uruguai acompanhando os
jesuítas espanhóis, negociaram com Gomes Freire
20
sua permanência em solo recém-
18
Durante a primeira metade do século XIX é amplamente documentada a atuação Kaingang no território
descrito na citação (LAROQUE, 2000).
19
Sem entrar no rito da discussão sobre a existência ou não de “fases” de ocupação humana, importa
reter que cada uma dessas referidas tradições parece ser associada a um horizonte cultural distinto, a
saber, a tradição Tupi-Guarani costuma ser associada aos povos de língua Tupi, enquanto a tradição
Taquara reporta-se aos povos de ngua Jê, Humaitá, Umbu e Vieira a outros grupos, como os Charrua e os
Minuano, por exemplo.
20
Comandante das tropas luso-brasileiras no conflito, Governador e capitão geral do Rio de Janeiro no
período, honrado, posteriormente, com o título de Conde de Bobadela.
conquistado pelos portugueses (RIBEIRO, 2017)
21
. Essa povoação deu origem à aldeia de
São Nicolau do Rio Pardo.
A história do aldeamento de São Nicolau do Rio Pardo contou com a atuação de
várias pessoas, indígenas e não indígenas. Índios guaranis, autoridades coloniais
e provinciais, escravos, negros, missionários, eclesiásticos, índios coroados,
viajantes, imigrantes alemães e italianos se encontraram e relacionaram de
diversas maneiras ao longo do período em que o aldeamento foi fundado e
extinto (MELO, 2011, p. 11).
A trajetória histórica dos Guarani desse aldeamento tem sido investigada amiúde
recentemente e entre os tantos aspectos destacáveis a partir das considerações postas
por esses estudos, salienta-se a heterogeneidade das experiências (GARCIA, 2007;
MELO, 2011; RIBEIRO, 2017). Não cabe aqui reiterar o que é possível verificar,
recorrendo-se diretamente aos autores mencionados, sugere-se que a questão que
enseja vínculos entre esse aldeamento e alguns ancestrais da Jamã Tÿ Tãnh reside na
seguinte consideração:
A missão de São Nicolau foi uma das mais atuantes e resistentes em ceder o
território que julgava ser seu, e São Nicolau do Rio Pardo também foi o
aldeamento que mais esteve envolvido em guerras e conflitos gerados em torno
das lutas por controle territorial. Foi também o único que conseguiu exercer
certo domínio sobre suas terras junto às esferas poticas da época colonial e
provincial, assegurando que aquele espaço fosse eminentemente indígena ao
longo de, praticamente, todo o Oitocentos (MELO, 2011, p. 36).
Quer dizer, a extinção desse aldeamento durante a década de 1860 ocorreu
em função da criação de colônias em seus territórios. Santa Cruz do Sul (1849) e Monte
Alverne (1859) são colônias agrícolas criadas a partir da expropriação das terras dessa
aldeia, portanto. Mais instigante do que própria constatação geral da autora é o seu
argumento para sustentar a presença Guarani após a extinção desse aldeamento.
Consultando o registro documental chamado Ementário Eclesiástico do Rio Grande de
São Pedro desde 1737, cuja redação foi concluída no ano de 1891, Melo (2011) nota que o
responsável pela elaboração do texto deixa entrever a permanência de famílias Guarani
de São Nicolau, já na última década do século XIX:
Embora o arcediago tenha, por algum motivo, suprimido cerca de 50 anos da
história de São Nicolau, ao passar imediatamente do ano de 1812 para o ano de
1860, como se nada tivesse ocorrido nesse intervalo, e como se a extinção do
aldeamento decorresse apenas da perda da administração dos sacramentos; por
outro lado, recupera outros anos ao afirmar que, por volta de 1891 ano de
21
Ainda ao longo do século XVIII, parte destas 700 famílias foram enviadas à Freguesia de Viamão para
fundar a Aldeia dos Anjos (no local atualmente conhecido como município de Gravataí/RS).
conclusão do Ementário ainda viviam ‘alguns descendentes’ dos ‘primitivos’
moradores. Isso significa que a extinção do aldeamento não levou,
necessariamente, ao seu esvaziamento (MELO, 2011, p. 37).
Ao analisarmos a documentação referente a esse aldeamento no Arquivo
Histórico do Rio Grande do Sul, notou-se que muitos dos indígenas residentes nessa
aldeia tinham o sobrenome Soares, isto é, o mesmo que na comunidade Jamã Tÿ Tãnh os
indígenas indicam ser de origem Guarani (MAPPA dos Alumnos, 1863)
22
. Entrementes, é
evidente que ocorreu nesse espaço algo que, segundo Manuela Carneiro da Cunha,
aconteceu em praticamente todo o Brasil:
[...] Começa-se por concentrar em aldeamentos as chamadas hordas
selvagens”, liberando-se vastas áreas, sobre as quais seus títulos eram
incontestes, e trocando-as por limitadas terras de aldeias; ao mesmo tempo,
encoraja-se o estabelecimento de estranhos em sua vizinhança; concedem-se
terras inalienáveis às aldeias, mas aforam-se áreas dentro delas para o seu
sustento; deportam-se aldeias e concentram-se grupos distintos; extinguem-se
aldeias a pretexto de que os “índios se acham confundidos com a massa da
população”; ignora-se o dispositivo da lei que atribui aos índios propriedade da
terra das aldeias extintas e concedem-se lhes apenas lotes dentro delas;
revertem-se as áreas restantes ao Império e depois às províncias, que as
repassam aos municípios para que vendam aos foreiros ou as utilizem para a
criação de novos centros de população. Cada passo é uma pequena burla, e o
produto final, resultante desses passos mesquinhos, é uma expropriação total
(CUNHA, 1992, p. 146).
As famílias indígenas, que já vinham criando diversas formas de relação com os
grupos estrangeiros estabelecidos em seus territórios, parecem ter se mantido
vinculadas a essas lealdades heterogêneas, circulando entre os remanescentes de
floresta e as propriedades rurais dos descendentes de imigrantes. Não obstante possíveis
redefinições dos repertórios culturais dessas famílias indígenas, acredita-se na constante
manifestação de etnicidades, por vezes associadas inclusive a conflitos deflagrados entre
descendentes de grupos autóctones e estrangeiros. Um trecho da fala de Jônia a respeito
da relação com os descendentes de imigrantes ilustra o processo de manutenção de
fronteiras étnico-raciais, que aparece no discurso de todos os moradores da
comunidade, em alguma medida: “Eles não eram ruim, assim... Tinha uns que eram... ã,
bem bom assim pra nós, mas tinha outros que chamavam a gente de negro... gostavam de
chamar a gente de negro assim, né, humilha a gente assim... (SOARES; SOARES, 2019, p.
5)”.
22
Em comunicação pessoal estabelecida via e-mail, o pesquisador Rodrigo Venzon, que presenciou o
processo de reconhecimento da identidade étnica desse grupo, no início dos anos 2000, afirma ter ouvido
que a mãe, um irmão da mãe e avó materna de Jônia são referidos como naturais de São Nicolau do Rio
Pardo.
Nesse ínterim, chama atenção que tanto parte dos indígenas que foram expulsos
de suas terras na área da Borboleta, quanto boa parte dos ancestrais da comunidade
Jamã Tÿ Tãnh nasceu e/ou viveu em lugares situados na escarpa meridional da Serra
Geral. Existem alguns estudos que apontam a diversidade étnica e sugerem a
permanência de fronteiras culturais, opondo os residentes da serra aos descendentes de
imigrantes, predominantemente situados nas planícies onde se fundaram os núcleos
coloniais.
Essa relação de estranhamento e de diferenças entre esses grupos ficam bem
definidas em uma série de registros. Pois, “os ervateiros nem sempre eram bem
vistos por serem estranhos, [...], por desconhecerem a língua alemã, por não
possuírem títulos de propriedade de suas terras. Também eram indiretamente
vigiados pelas autoridades policiais e administrativas: não pagavam impostos,
não se ofereciam aos comissários seccionais para trabalharem na abertura e
conservação de estradas, não mandavam seus filhos para a escola, não
registravam casamentos e nascimentos, não tinham moradias cadastradas no
“livro dos contribuintes”. Não votavam, enfim não eram cidadãos”
(SCHIERHOLT apud COSTA, 2015, p. 7).
O reduto dessas populações, que foram classificadas por seus vizinhos como
“serranos”, situa-se nas “bordas do Planalto Médio, numa escarpa acentuada em direção
à Depressão Central do RS na porção conhecida por Serra do Botucaraí” (COSTA, 2015,
p. 3). O autor observa ainda que a constituição sociocultural desse território é anterior
tanto aos processos de formação dos latifúndios escravistas do Planalto, presentes a
partir do município de Soledade/RS, quanto ao estabelecimento das áreas de imigração,
que, em alguma medida, espalharam-se a partir das planícies banhadas pelos rios dos
Sinos, Caí, Taquari e Pardo, para somente depois se espraiarem em direção às porções
mais acidentadas do território.
Sugere-se, diante do exposto, que embora muitas representações historiográficas
a respeito da formação sociocultural do Rio Grande do Sul tenham negligenciado a
dimensão histórica da construção do espaço, ainda durante o século XX eram
reconhecidas fronteiras culturais em diferentes lugares do estado. Desse modo, note-se
que a despeito de imaginários e pretensões assimilacionistas, casos como os expostos,
sem negar as marcas da colonização e da colonialidade, reiteram a potência criativa das
culturas ameríndias e dos modos de vida que engendram.
Considerações Finais
Pretendeu-se demonstrar ao longo desse trabalho a operação de mecanismos
extraoficiais de desindianização, bem como as respostas indígenas a esses desafios.
Quer dizer, os mecanismos oficiais são amplamente mais conhecidos: reduções,
aldeamentos, descimentos, catequeses de toda ordem, tentativas de civilização, em geral.
Processos que, no entanto, costumam ter vínculos com instituições específicas, a saber,
as ordens religiosas, setores do poder público voltados às questões dos índios, em suas
versões coloniais, imperiais ou republicanas e outros agentes que atuaram/atuam
diretamente entre os indígenas, representando interesses alheios aos deles.
Considera-se, ainda, ter evidenciado que o Rio Grande do Sul, inclusive em suas
“regiões de imigração”, não só foi como é, também, indígena. Contrariando-se narrativas
que associam a presença indígena ao passado desses espaços, representando
populações autóctones como evanescentes, arredias, “fantasmas das brenhas(SOUZA,
1998). Trata-se, não obstante, de contribuir para a atualização sistemática da História,
que muda conforme se olha, e no ritmo dos novos diálogos interdisciplinares. Ou seja,
tendo em vista que, antropologicamente, não são aceitas noções como “aculturação”
ou “perda cultural”, parece oportuno ponderar que:
O homem livre da ordem escravocrata, para usar a linguagem da Maria Silvia
Carvalho Franco, é um índio. O caipira é um índio, o caiçara é um índio, o
caboclo é um índio, o camponês do interior do Nordeste é um índio [...]. No
sentido de que são o produto de uma história, uma história que é a história de
um trabalho sistemático de destruição cultural, de sujeição política, de
“exclusão social (ou pior, de “inclusão social”), trabalho esse que é
propriamente interminável. Não é possível fazer todos os brasileiros deixarem
de ser índios completamente. Por mais bem sucedido que tenha sido ou esteja
sendo o processo de desindianização levado a cabo pela catequização, pela
missionarização, pela modernização, pela cidadanização, não para zerar a
história e suprimir toda a memória, porque os coletivos humanos existem
crucial e eminentemente no momento de sua reprodução, na passagem
intergeracional daquele modo relacional que “é” o coletivo, e a menos que essas
comunidades sejam fisicamente exterminadas, expatriadas, deportadas, é muito
difícil destruí-las totalmente. E ainda quando o foram, quando foram reduzidas a
seus componentes individuais, extraídos das relações que os constituíam, como
aconteceu com os escravos africanos, esses componentes reinventam uma
cultura e um modo de vida um mundo relacional que, por constrangido que
tenha sido pelas condições adversas onde vicejou, jamais deixou de ser uma
expressão da vida humana exatamente como qualquer outra. Não culturas
inautênticas, pois não culturas autênticas (VIVEIROS DE CASTRO, 2006, p.
11).
O autor supracitado é enfático: a discussão sobre quem é ou não indígena é uma
questão exclusivamente política, de modo algum uma pergunta científica. Isto é, como
ocorreu em alguma medida em toda a América, a construção da nacionalidade dos países
nesse continente ancora-se em pressupostos de identidade étnica (LINARES, 2015).
Todavia, os coletivos humanos não parecem se definir por identidades, mas em
diferenciações subjetivas constantes. A tentativa de alguns projetos político-intelectuais
para compreender/capturar essas diferenciações, redundou no desenvolvimento de
noções como mestiço ou algum correlato, quer dizer, na representação de alguém que
não é nem completamente índio-negro, tampouco absolutamente branco: “[...] um
prodígio de hipocrisia conceitual que define a ‘identidade brasileira’ – que define na
cabeça, pois nascido da cabeça, dos Brancos brasileiros” (VIVEIROS DE CASTRO, 2017,
p. 5). Ainda segundo o autor:
Transformar o índio em pobre. Para isso, foi e é preciso antes de mais nada
separá-lo de sua terra, da terra que o constitui como indígena. O pobre é antes
de mais nada alguém de quem se tirou alguma coisa que tinha, de modo a fazê-lo
desejar outra coisa que não pode ter. Para transformar o índio em pobre, o
primeiro passo é transformar o Munduruku em índio, depois em índio
administrado, depois em índio assistido, depois em índio sem-terra, índio que, se
insistir em ser índio, ou ‘voltar’ a se reivindicar índio, será um ‘índio falso, um
índio de jeans, um espertalhão (VIVEIROS DE CASTRO, 2017, p. 5).
Ou, mais especificamente, nas palavras de Augusto Ope da Silva, liderança
Kaingang que contribuiu fundamentalmente para a inclusão da comunidade Jamã Tÿ
Tãnh no Conselho Estadual dos Povos Indígenas (CEPI) e que também teve importante
participação no movimento reivindicatório da Borboleta: “O futuro de nossos filhos é a
terra... Nós temos que nos organizar primeiro e depois pressionar os órgãos do
governo... Eles dizem que nós não somos mais índios, pois não falamos mais a ngua.
Mas isso é porque não temos terra e temos que morar na periferia” (SILVA apud SOUZA,
1998, p. 159).
Referências
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