DOMINGUES, Ângela; RESENDE, Maria Leônia Chaves de; CARDIM, Pedro (orgs). Os
Indígenas e as justiças no mundo Ibero-Americano (Sécs. XVI XIX). Lisboa: Atlantica
Lisbon Historical Studies. Centro de História da Universidade de Lisboa, CHAM Centro
de Humanidades (NOVA FCSH-UAc) e Programa de Pós-Graduação em
História/Universidade Federal de São Joao del-Rei (PPGH-UFSJ), 2019. 364 p.
ARAÚJO, Lana Gomes de
*
Em 2019, sob a organização de Ângela Domingues, Maria Leônia Resende e Pedro
Cardim, foi publicado o livro Os Indígenas e as justiças no mundo Ibero-Americano
(Sécs. XVI XIX) composto por vários artigos de pesquisadores que entendem a
sociedade colonial não como um espaço dinâmico, mas complexo, diverso e criativo,
onde o tratamento dado aos indígenas gerava uma pluralidade de respostas e das suas
justiças frente à cultura jurídica da sociedade colonial da América espanhola e
portuguesa.
Abrindo as discussões, Ailton Krenak denuncia as violências reais e simbólicas
sofridas pelo povo Krenak ao longo dos séculos. Foram perseguidos, tiveram suas
famílias escorraçadas, massacradas, despejadas, expulsas de suas próprias terras e
perambularam por diversas regiões do Brasil. Situação agravada durante o regime
militar, quando juntamente com outras etnias foram jogados em um Reformatório, sob a
desculpa governamental de que precisavam ser reeducados, enquanto tomavam-lhes as
suas terras. Terras que as famílias indígenas nunca desistiram.
* Bacharela em Direito pelo Centro Universitário Unifacisa, Campina Grande - PB, licenciada em História
pela Universidade Federal de Campina Grande - PB, mestre em História pela Universidade Federal de
Campina Grande, Campina Grande - PB, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História pela
Universidade Federal de Pernambuco, Recife - PE. Bolsista CAPES. E-mail: lana.araujo@ufpe.br.
Recebido em: 14/03/2020
Aprovado em: 29/05/2020
Em Os Povos Indígenas, a dominação colonial e as instâncias de Justiça na
América portuguesa e espanhola, Pedro Cardim discute os esforços dos próprios
indígenas ao longo da história em se afirmarem enquanto grupo étnico. Apontando que o
movimento indígena, a produção acadêmica mais recente desenvolvida pelos próprios
pesquisadores indígenas, a aproximação da história com outras disciplinas, métodos,
conceitos, assim como as cnicas de manuseio de fontes documentais e as influências
do conceito de subaltern studies
1
, têm sido importantes ferramentas para “superação
dos silêncios nada inocentes e mostrar a voz e o rosto dos ameríndios”
2
. (FISCHER, 2009
apud CARDIM, 2019, p.31)
Apesar dos avanços, Pedro Cardim destaca que é preciso estar atento ao
“vocabulário da conquista” (CARDIM, 2019, p. 41), referindo-se aos termos comumente
encontrados nos documentos coloniais como “índio”, “gentio”, “bárbaro” e outros. Uma
vez que estes possuíam efeitos jurídicos diferentes dentro do cenário da América
portuguesa e podiam significar manutenção ou perda de direitos, por exemplo.
Em Da ignorância e rusticidade: os indígenas e a inquisição na América
portuguesa (séculos XVI-XIX), Maria Leônia Resende traz uma importante abordagem
sobre a atuação do Tribunal da Inquisição e como a produção historiográfica sobre
tratou o tema, apresentando uma luta ideológica entre as diversas facções religiosas da
Europa na Idade Moderna: ora uma visão detratora por sua crueldade, ora pelo certo
grau de misericórdia diante aos considerados ataques ao catolicismo.
Todavia a história institucional do dito Tribunal se deu no plural na Europa e nos
domínios ultramar, ao ponto de podermos afirmar que houve Inquisições. E, os estudos
das denúncias e processos têm mostrado as maneiras que a Inquisição lidou com as
expressões das práticas religiosas, costumes e culturas indígenas tendendo, muitas
vezes, em uma interpretação jurídica-canônica mais benevolente para as “populações
desprotegidas”, fundamentada no uso do conceito persona miserabilis” e da “ignorância
(in)vencível”.
O conceito de persona miserabilis permeia o debate de outros pesquisadores,
como o de Jaime Goveia, Maria Regina Celestino de Almeida, Hal Lagfur e de Pedro
Cardim. Este último, inclusive, compreende que a classificação de miserabile garantia
1
O conceito de Subaltern Studies trabalhado por Florencia Mallon (1994) foi utilizado para tratar da análise
de “baixo para cima realizada por um grupo de estudiosos sobre a Índia e o colonialismo, mas que
forneceu inspiração para historiadores americanicistas. MALLON, Florencia. The Promise and Dilemma of
Subaltern Studies: Perspectives from Latin American. History. The American Historical Review: 1491-1515.
DOI:10.1086. 1994.
2
FISHER; O’HARA. Introduction Racial Identities and their Interpreters in Colonial Latin America. In:
FISCHER, Andrew; O’HARA, Matthew Imperial Subjects. Race and Identity in Colonial Latin America.
Durham: Duke University Press. 2009. p. 1-37.
certa proteção aos indígenas, situando-os numa condição especial frente à Inquisição,
aos tribunais ordinários, ou ainda, aos colonos, sustentadas por uma posição
evangelizadora mais benevolente. Esse entendimento, de pessoas “miseráveis,
ignorantes, pessoas rústicas”, fazia com que acreditasse que os indígenas eram
incapazes de dar conta dos seus próprios erros, por não terem consciência plena do
“pecado”.
As principais denúncias contra os indígenas fundamentavam-se em questões de
feitiçaria, adivinhações, bigamia, blasfêmias, por comerem carne em dias proibidos e até
por pequenos roubos, como foi o caso de Anselmo da Costa. Este, um jovem índio de 14
anos, confessou ter roubado pequenos adereços e pedaços de fita do berço do Menino
Jesus para confeccionar uma bolsa de mandigas, a fim de se livrar dos perigos de
mordidas de cobras e onças. O jovem passou 4 anos no cárcere, mas teve seu processo
encerrado quando o Tribunal alegou sua capacidade de discernimento (RESENDE, 2019,
p.113).
Em Sem medo de Deus ou das justiças (...), a professora Ângela Domingues
analisou os “poderosos do sertão” através dos discursos do capitão-mor e governador
Francisco Xavier de Mendonça Furtado na Capitania do Grão-Pará e como eles estavam
alinhados com a política pombalina. De acordo com ela, através da análise desse período
administrativo é possível perceber as estratégias, alianças e negociações interétnicas,
revelando situações em que os indígenas passaram a ser considerados infratores por não
se enquadrarem nos projetos do Estado para a Amazônia e desafiarem a vontade dos
poderosos da região.
Em Índios, territorialização e justiça improvisada nas florestas do sudeste do
Brasil, Hal Langfur levanta uma interessante questão acerca da implementação da justiça
no Brasil colonial imposta em prejuízo aos indígenas. Segundo ele, a legislação colonial
mascarou uma realidade jurídica, retirou os índios das suas terras, legitimou o trabalho
forçado etc., mas “os indígenas não aceitaram esta perseguição jurídica sem resistência”
(HANGFUR, 2019, p.157).
Jaime Gouveia, em Os indígenas nos auditórios eclesiásticos do espaço luso-
americano, debate sobre as relações envolvendo os povos indígenas e a justiça episcopal
no período colonial, tema que gerou algumas generalizações equivocadas, sobretudo, por
não ter existido no caso português um “direito canônico” como existiu na América
hispânica.
No Brasil, os auditórios tinham alçada sobre todo o clero secular - excetuando
alguns crimes (como os de lesa-majestade e disputas relativas aos bens da Coroa) - e
leigos (membros da Capela Real e das ordens militares). E poderes quanto a matéria, ou
seja, sobre a natureza dos delitos, abrangendo os pecados públicos, independente dos
autores serem leigos ou eclesiásticos. Mas, não tinha competência para julgar as
consideradas heresias indígenas.
Porém, com os índices populacionais nos territórios indígenas, as necessidades de
evangelização esbarravam na escassez de estruturas necessárias a esse exercício,
passando a exigir responsabilidades mais amplas. De todo modo, os processos judiciais
contra os réus indígenas decorriam na mesma formalidade de praxe dos não-indígenas,
com exceção do privilégio jurisdicional de miserabilidade, que era visto como concessão
de uma graça do direito canônico aos indígenas.
No sétimo artigo, Maria Regina Celestino de Almeida apresenta uma nova versão
de dois capítulos de seus livros publicados em 2005 e 2009
3
, desenvolvendo uma
relevante análise sobre a cultura política indígena e política indigenista no Rio de Janeiro
colonial através das disputas jurídicas sobre as terras e a identidade étnica dos índios
aldeados entre os séculos XVIII e XIX. Evidenciando o fato de que, para evitarem a perda
total de suas terras, os indígenas passaram a assumir nitidamente a identidade de índios
aldeados e súditos cristãos, assumindo uma posição de privilégios em relação aos negros
e índios escravos (ALMEIDA, 2019, p. 221).
Isso porque, assumindo essa condição, podiam solicitar mercês, ter direito à terra,
embora uma terra reduzida. Tinham direito ainda a não se tornarem escravos, embora
obrigados ao trabalho compulsório. Por fim, o direito a se tornarem súditos cristãos,
embora tivessem de se batizar e abdicarem de suas crenças e costumes. Sendo que as
lideranças ainda tinham direito a títulos, cargos, salários e prestígio social, o que dentro
de condições limitadas, restritas e opressivas, eram possibilidades de agir para valer o
mínimo de direito assegurado por lei.
Como parte das investigações mais recentes, escrito em espanhol, o artigo de
Pablo Ibáñez-Bonillo, Procesos de Guerra Justa en la Amazonía portuguesa (siglo XVII),
aponta a influência indígena na construção das fronteiras coloniais, partindo da premissa
de que a guerra justa é uma ferramenta para se explorar as relações de fronteira. Com
isso, a construção de alteridades e a influência das dinâmicas indígenas na história
colonial não podem ser vistas como um mecanismo de dominação, mas sim um processo
mais amplo de negociação e resistência.
3
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Índios, Missionários e Políticos: Discursos e Atuações Político-
Culturais no Rio de Janeiro Oitocentista.” In: SOIHET, Racehel el al (org). Culturas Políticas. Ensaios de
História Cultural, História Política e Ensino de História. Rio de Janeiro: Mauad, 2005, p. 235-255;
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Cultura Política Indígena e Política Indigenista: Reflexões sobre
Etnicidade e Classificações Étnicas de Índios e Mestiços no Rio de Janeiro Séculos XVIII e XIX. In.:
AZEVEDO, Cecilia et al (org.) Cultura, Política, Memória e Historiografia. Rio de Janeiro: FGV, 2009, p. 211-
228
O texto do professor Juan Marchena e da Nayibe Montoya (2019) traz um valioso
estudo sobre as justiças indígenas andinas e sua relação com a aprendizagem da cultura
escrita. Os autores destacam que as sociedades originárias lutaram e lutam
permanentemente pela independência, justiça, dignidade e necessidade de combater a
pobreza, não se renderam, não se deixaram comprar, mesmo enquanto eram abatidos e
destruídos. Sendo que, com a luta mantida durante os séculos até o presente, por suas
terras, cultura e identidade, representam uma luta que deveria ser de todas e todos nós.
Por fim, o artigo de Camilla Macedo alude sobre a propriedade moderna e a
alteridade indígena no Brasil entre meados de 1755-1862, partindo da análise da
implementação do Diretório dos Índios e suas implicações para as questões de terra e
propriedade privada, observando as rupturas e continuidades através das políticas
indigenistas na transição da jurisdição eclesiástica para a secular, envolvendo os
indígenas, administradores coloniais, religiosos etc.
Com esta obra, os autores dão continuidade ao relevante trabalho que o
movimento indígena juntamente com os historiadores e antropólogos vêm
desenvolvendo ao longo das últimas décadas. As reflexões contribuem para a percepção
de que os homens e mulheres indígenas foram e continuam sendo protagonistas das suas
próprias histórias através das suas ações, ressignificações e agenciamentos
4
frente aos
ditames da Coroa portuguesa.
As pesquisas apresentadas nos permitem refletir acerca dos regimes de
memória
5
, trabalhados e discutidos por João Pacheco de Oliveira (2011), que construíram
no Brasil imagens preconcebidas sobre os índios, definindo-os e limitando-os
negativamente, condicionando o indígena exclusivamente ao passado colonial e
estereótipos como de nomadismo, bravura ou de exuberante beleza extraído da literatura
romântica.
Além de ressaltar as questões de estratégias e que interações proporcionadas
pelos contatos interétnicos na realidade política colonial eram plurais, como fez a
professora Maria Cristina Pompa (2001). E problematizar sobre a circularidade cultural
entre os indígenas e os outros agentes coloniais, como fez Gláucia de Souza Freire
4
O conceito de agenciamento indígena incorpora o protagonismo dos povos indígenas e nos permite
repensar do ponto de vista histórico as diferentes identidades e historicidades dos homens e mulheres
indígenas ao longo dos anos. Compreendendo que, são sujeitos históricos que ressignificaram e continuam
ressignificando suas ações de acordo com suas necessidades e interesses. A partir deste conceito,
conseguimos perceber as diferentes relações interétnicas no período colonial, onde emergem como
agentes de sua própria história. Ver: MONTEIRO, John. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens
de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
5
OLIVEIRA, João Pacheco de (org.). A presença indígena no Nordeste: processos de territorialização,
modos de reconhecimento e regimes de memória. Rio de Janeiro: Contra Capa. 2011.
(2013), ao apontar que os missionários religiosos se prevaleciam de práticas ritualísticas
dos indígenas que eram consideradas “feitiçarias”, como o uso da jurema sagrada.
Os diálogos contrariam ainda a historiografia dita oficial que reservava aos
indígenas um papel secundário e descarta antigas concepções sobre “índio puro”, “índio
aculturado”, “resistência”, “aculturação”, embasados nas tentativas de reduzir a
participação dos indígenas a um processo inevitável de extinção e desaparecimento.
Sendo que os indígenas estão cada vez mais presentes nas questões políticas, se
apropriando e ressignificando sua cultura e lutando pelo reconhecimento de seus
direitos constitucionalmente garantidos após muita persistência do próprio movimento
indígena.
Referências
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Índios, Missionários e Políticos: Discursos e
Atuações Político-Culturais no Rio de Janeiro Oitocentista. In: SOIHET, Racehel el al
(org). Culturas Políticas. Ensaios de História Cultural, História Política e Ensino de
História. Rio de Janeiro: Mauad, 2005, p. 235-255.
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Cultura Política Indígena e Política Indigenista:
Reflexões sobre Etnicidade e Classificações Étnicas de Índios e Mestiços no Rio de
Janeiro Séculos XVIII e XIX. In.: AZEVEDO, Cecilia et al (org.) Cultura, Política,
Memória e Historiografia. Rio de Janeiro: FGV, 2009, p. 211-228
DOMINGUES, Ângela; RESENDE, Maria Leônia Chaves de; CARDIM, Pedro (orgs). Os
Indígenas e as justiças no mundo Ibero-Americano (Sécs. XVI XIX). Lisboa: Atlantica
Lisbon Historical Studies. Centro de História da Universidade de Lisboa, CHAM Centro
de Humanidades (NOVA FCSH-UAc) e Programa de Pós-Graduação em
História/Universidade Federal de São Joao del-Rei (PPGH-UFSJ), 2019. 364 p.
FISHER; O’HARA. Introduction Racial Identities and their Interpreters in Colonial Latin
America. In: FISCHER, Andrew; O’HARA, Matthew Imperial Subjects. Race and Identity
in Colonial Latin America. Durham: Duke University Press. 2009. p. 1-37.
MALLON, Florencia. The Promise and Dilemma of Subaltern Studies: Perspectives from
Latin American. History. The American Historical Review: 1491-1515. DOI:10.1086. 1994.
MONTEIRO, John. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São
Paulo: Companhia das Letras, 1994.
OLIVEIRA, João Pacheco de (org). A presença indígena no Nordeste: processos de
territorialização, modos de reconhecimento e regimes de memória. Rio de Janeiro:
Contra Capa. 2011.
POMPA, Maria Cristina. Religião como tradução: missionários, Tupi e “Tapuia” no Brasil
Colonial. 2001. 455 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Universidade Estadual de
Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, SP, 2001.
SOUZA, Glaucia Freire. Das “feitiçarias” que os padres se valem: circularidade cultural
entre indígenas Tarairiú e missionários na Paraíba setecentista. 2013. 159 f. Dissertação
(Mestrado em História) - Universidade Federal de Campina Grande, PB, 2013.