ROCHA, Augusto
*
RESUMO: A partir deo Eulógio de Córdoba,
que no século IX construiu uma representação do
Islã visto como inimigo, utilizamos elementos da
nova história cultural como instrumentos que
permitem somada a historiografia que analisa o
Islã apresentar como se formou uma visão
estereotipada sobre essa cultura. Diante disso,
pelo fato de que essa representação está pautada
num discurso que expressa motivações pessoais,
é necessário ampliar os estudos relativos à
cultura mulçumana para desconstruir o que está
por trás do “mal islâmico”.
PALAVRAS-CHAVE: Representação e Realidade,
a imagem do Islã; Cultura Islâmica; Mártires de
Córdoba em Al-Andaluz.
ABSTRACT: From São Eulógio de Córdoba,
which in the 9th century built a representation
of Islam seen as an enemy, we used elements of
the new cultural history as an instruments that
allow - added to the historiography that analyzes
Islam - to present how a stereotyped view of this
culture was formed. Therefore, due to the fact
that this representation is based on a discourse
that expresses personal motivations, it is
necessary to expand the studies related to
Muslim culture in order to deconstruct what is
behind “Islamic evil”.
KEYWORDS: Representation and Reality, the
image of Islam; Islamic culture; Córdoba Martyrs
in Al-Andaluz.
Recebido em: 16/03/2020
Aprovado em: 28/04/2020
* Pós Graduado em Docência na Educação Profissional e Superior pelas Faculdades QI, Porto Alegre-RS,
mestrando do Programa de Pós-Graduação da UFSM, Santa Maria, RS. Pesquisador do The David and
Barbara Pryor Center for Arkansas Oral and Visual History, Fayetteville, Arkansas. E-mail:
amrocha721@gmail.com
Introdução
Ao longo dos anos, a História tornou-se múltipla, principalmente no que diz
respeito aos seus resultados e possibilidades. Isso decorre do fato de existir mais do que
uma definição geral para o que ela seria. Enquanto historiador há uma introspecção
relativa ao conceito de nossa matéria, que se aceita, se refuta ou se altera de acordo com
perspectivas e interesses.
Em primeiro lugar, nosso embasamento está no horizonte grego com Heródoto e
Tucídides, onde a história começaria a afastar-se dos mitos divinos, baseando-se nos
acontecimentos terrenos. Como Vitor de Azevedo afirma (1964) no prefácio da tradução
de História de Heródoto, teria sido com Tucídides que a historiografia grega começou a
apoiar-se na vida pública e política, deixando de lado uma perspectiva de história
baseada no “selvagem”. Nesse momento, passavam a crer em um desenvolvimento do
fazer histórico a partir, diretamente, da ação humana. Ainda que muito distante do que
viria a se tornar a História, a contar com o fim do século XVIII, aqui surge uma das bases
de uma ciência histórica por conta de uma verdade. Em outras palavras, no que teria
realmente acontecido e procurando escrever sobre o passado para que as futuras
gerações conhecessem e não esquecessem o que as antecedeu. De certa forma, este foi
o tempo da historia magistra vitae de Cícero.
Desde suas origens, a história preocupa-se com seus grandes heróis, como
Alexandre, Césares e reis do medievo, e seus grandes eventos, como a História de Roma,
ascensões e quedas de dinastias e a história da Igreja; portanto, procurou mostrar o
todo. No período final do medievo essa perspectiva foi alterada, posto que história
começou a ser utilizada para ajudar na compreensão das concepções concepção de
identidades locais e de um passado que trouxesse orgulho e pertencimento. Tal
perspectiva viria a ser repensada e reestruturada no Pós-Revolução, pois no século XIX,
por exemplo, percebe-se uma historiografia baseada na ciência, ou que assim o
pretendia.
A problemática de se pensar em uma história linear e cronológica, assumindo o
seu próprio desenvolvimento é o de esquecermos que “[...] uma situação social muda ao
mesmo tempo o modo de trabalhar o tipo de discurso [...]” (CERTEAU, 2015, p. 65). O
esquecimento desta perspectiva é o de manter-se uma representação
1
antiga que o senso
1
Ao utilizarmos a perspectiva de Roger Chartier (2002), como norteador conceitual deste trabalho,
remete-se à ideia de que antigas representações guardam resquícios de preconceitos e visões fechadas
considerando discursos sócio-políticos e o intuito de definir uma visão como a única realidade possível.
Revisitar uma representação torna-se necessário, tendo em vista a multiplicidade de perspectivas que
compõem nosso mundo. Nesse sentido, a percepção de que uma representação pode representar algo que
de fato não é passa pela Nova História Cultural e por pensadores como Roger Chartier, que resume sua
comum define como uma constante verdade, como parte das imagens com relação ao
Islã.
Com essas considerações, propõe-se, com a análise, compreender o discurso que
orientou o desenvolvimento de uma concepção negativa da cultura islâmica; antes,
porém, iniciaremos nossas considerações com Córdoba, do século IX, como espaço de
origem de uma representação do Islã visto como perigo social. Depois disso, nossas
reflexões, a partir de um contexto específico, tratarão da problemática da perpetuação
de tal valor para a contemporaneidade.
O Islã, de São Eulógio a recuperação do perigo islâmico
A representação da cultura islâmica foi construída pelo Ocidente ao longo de mais
de um milênio, sendo múltipla e variada. Ainda que houvesse sua adaptação a diferentes
contextos, houve uma preponderância de uma imagem do Islã em posição de constante
aversão. Um exemplo que se apresenta com relação a essa dualidade, advém da Espanha.
Como afirma Beatriz Bissio (2012, p. 77), no século XIV encontramos uma
representação negativa do Islã a partir de Enrique de Trastámara. Ao atacar seu irmão,
Pedro I, Rei de Castela, construiu sua representação como um monarca cruel por ter-se
ligado aos vis muçulmanos retratados pelo sultão do Reino de Granada. Logo, para
compreender uma representação, é necessário entender seu motivador, uma vez que a
construção de uma narrativa é elaborada pelos interesses que guiam a pena.
Uma das primeiras traduções do Alcorão (ainda que incompleta) data do século
XII, como afirma José Martínez Gázquez (2006, p. 145). Desenvolvida por Pedro de
Poitiers (1130 1215), o texto procurou apresentar uma perspectiva de refutação ao Islã.
Tal ação foi feita ao compará-lo com as heresias cristãs, e com isso apresenta-se a
perspectiva documental do material em análise, oriundo da ecclesia. Sob esse aspecto,
trabalha-se com uma ótica que coloca o Islã em posição de inimigo, uma vez que o
objetivo de afastar a cristandade desse Outro. Essa representação do Islã estava
amparada na fala do secularismo medieval, que buscava criar uma ferramenta de
incentivo ao combate do inimigo tendo em mente o crescimento do poder e a presença
desse adversário.
perspectiva enquanto uma renúncia “[...] à descrição da totalidade social e ao modelo braudeliano, que se
tornou intimidante, os historiadores tentaram pensar os funcionamentos sociais fora de uma divisão
rigidamente hierarquizada das práticas e das temporalidades” (2002, p. 66). A partir disso, trazemos a
perspectiva proposta por Chartier de que as representações são desenvolvidas a partir de intenções e
discursos próprios que podem apresentar o outro, mas que não uma verdade absoluta nessa
representação tendo em mente a parcialidade daquele que a cria.
Dessa forma, retrocedemos para o século IX, onde se encontra, como materiais,
os textos de São Eulógio de Córdoba, que serviram de apoio para Pedro de Poitiers. Sob
seus cuidados houve a formação de uma série de ferramentas terminológicas que ao
descrever a luta “dos segundos mártires”
2
, na Córdoba do século IX, buscou por em
xeque qualquer possibilidade de convivência pacífica entre Cristianismo e Islã.
Como diz Pedro Roldán (2005, p. 24-5), São Eulógio de Córdoba teria nascido em
torno do ano de 819, nos arredores da cidade de Córdoba, então capital do Emirado
Omíada tendo falecido na mesma cidade, no ano de 857. Em virtude de sua educação
monasterial, envolveu-se com a língua latina e com toda a história da Igreja cristã,
atuando e lutando pela preservação de sua cultura. Sua juventude e estudo coincidem
com a década de 830, período em que ocorreram dois dos primeiros martírios cristãos,
em oposição ao mundo muçulmano, como apontam Pedro Roldán (2005, p. 13) e Jessica
Coope (1995, p. 17). Nesse contexto, Eulógio incorporou para si valores voltados para a
preservação de uma tradição que estava sendo perdida: a cultura letrada latina, bem
como os valores de um mundo cristão no qual teria nascido e se instruído. Como salienta
Ariel Guiance (2017, p. 80),
Eulógio de Córdoba se impõem como um claro paradigma da tradição cultural
local e da sobrevivência de tal tradição em um contexto de dominação
muçulmana. Escritor apaixonado, viajante incansável, defensor da cultura latina
e hagiógrafo, o mesmo Eulógio alcançou grande renome por sua defesa do
célebre movimento martírico iniciado em meados do culo IX no sul da
Espanha e que deu lugar a uma volumosa quantia de suas obras autorais.
Constata-se que a formação de Eulógio o encaminhou para uma ardorosa defesa
da Cristã. Ao ser educado dentro do universo cristão, estudou escritos latinos que
começavam a se perder em um mundo onde a língua árabe tornava-se central, conforme
aponta Albert Hourani (1995, p. 91), além de toda uma cultura religiosa que começava a
ser suplantada pela fé muçulmana.
Partindo de Eulógio de Córdoba, verificamos que houve a criação de uma
representação negativa do Islã, uma vez que ao narrar seu Apologeticum martirium, de
857, ocorreu uma descaracterização do Outro e daqueles que o aceitariam. Mais do que
2
Definidos como o grupo de homens e mulheres que, ao contestarem a veracidade da fé Islâmica em praça
pública, descumpriam as leis da Dinastia Omíada, que se fixou nos territórios de al-Ándalus, que dizia
respeito a não criticar os preceitos do Islã pregando um respeito mútuo entre diferentes culturas, e desta
forma acabaram sendo executados como punição de seu crime (entre os anos de 850 e 860, na cidade de
Córdoba). Tal definição foi compreendida a partir da síntese do pensamento de Albert Hourani (2006) e
Karen Armstrong (2002), quanto ao que esse movimento teria representado em seu contexto.
isso, em sua obra o foco de ataque se dirigiu à figura do profeta muçulmano, Mahomat
3
,
descrito como “[...] o abominável profeta Mahomat [que] ocupou o poder por dez anos,
ao final deste tempo morreu e foi sepultado no inferno”
4
(FERNÁNDEZ, 1973. p. 484,
tradução nossa).
A representação feita sobre o Islã, a partir de Córdoba, buscava enaltecer os
chamados mártires do século IX, que, ao atacarem a cultura muçulmana, foram
condenados à morte. Ao privilegiar sua descrição do mal islâmico, Eulógio desenvolveu
uma narrativa que impunha ao Profeta o grande fardo de enganar sua população e
infringir uma série de suplícios perante os muçulmanos. Como o autor de nossa fonte o
descreveria, o Profeta foi
[...] inflado por uma soberba presunção, ele começou a pregar coisas inéditas a
esses animais nojentos e, com certo tipo de raciocínio, ordenou que se
retirassem da adoração de ídolos e adorassem um Deus corporal no céu [...]
5
(FERNÁNDEZ, 1973, p. 484, tradução nossa).
Com isso, uma representação do Islã, considerada como algo negativo, tem sua
origem na dualidade medieval entre ecclesia/perdição, bom/mal, virtude/pecado.
Acreditamos ter sido nos escritos de São Eulógio de Córdoba que a imagem do Islã,
enquanto inimigo da cristandade, desenvolveu sua base no que se refere ao contexto da
Europa Medieval. Tal representação foi propagada, como se percebe ao conectar o
trabalho desenvolvido por Pedro de Poitiers aos textos produzidos no contexto
cordobês.
Identificamos a propagação de uma representação de base similar ao
compreender que o conector de tal imagem está na desconstrução do Profeta. Tal ponto
de ataque buscou afastar a cultura muçulmana das populações cristãs no contexto de
Eulógio na Espanha, e no de Pedro de Poitiers com o intuito de difusão através da Europa
medieval.
A concepção de Islã desenvolvida nesse contexto de análise impede uma real
percepção com relação à multiplicidade dessa cultura. É possível perceber que a
3
Escolhemos por manter a grafia apresentada pelo autor original das obras, ou seja, São Eulógio. Tal
escolha esbaseada no fato de que a real escrita do nome do Profeta seria Muammad, uma vez que a
tradução para Mao incorreria em um erro; tendo em vista que não devemos traduzir um nome,
optamos pelo uso do termo utilizado por São Eulógio para demonstrar com qual representação do Profeta
estamos trabalhando.
4
No original: Obtinuitque praedictus Mahomat nefandus propheta principatum annis X, quibus expletis
mortuus est et sepultus inferno[...]” (FERNÁNDEZ, 1973, p. 484, grifos do autor).
5
No original: Cumque repletus esset tumore superbiae, coepit inaudita brutis animalibus praedicare et
quasi ratione quadam ut ab idolorum cultu recederent et Deum corporeum in caelis adorarent insinuauit”
(FERNÁNDEZ, 1973, p. 484, grifos do autor).
manutenção do Profeta
6
como a representação do mal islâmico constrói uma realidade
irreal, pois uma escolha discursiva por elementos que desmerecem o todo da cultura
muçulmana. Tal desmerecimento, através de uma representação da parte, é o que faz
com que haja a perspectiva macro do Islã enquanto inimigo.
Ainda hoje, tal imagem de “grande malé mantida e, principalmente, vendida. Nos
anos 1980 e 1990, conviveu-se com um recrudescimento do sentimento anti-islâmico, a
começar com a queda do iraniano e com a formação da República Islâmica do Irã no
campo político. no campo cultural, verificamos uma grande revolta das populações
muçulmanas em todo mundo, a contar com a publicação dos Versos Satânicos (1989), de
Salman Rushdie, em virtude de sua representação do profeta e do Islã.
Mas qual a motivação para a manutenção dessa representação? Talvez possamos
refletir alicerçados com as palavras do jornalista francês Stéphane Charbonnier que
afirma o seguinte em relação à forma como se tem buscado representar o Islã:
O medo vende bem. O islamismo que medo vende bem. E o islamismo que
medo se tornou o único islamismo visível aos olhos do grande público. Porque o
islamismo com que a mídia alimenta os consumidores é forçosamente radical e
combatente. Com muita frequência, o que os grandes meios de comunicação
apresentam como uma informação sobre o islamismo é, na realidade, uma
caricatura. (CHARBONNIER, 2015, p. 32).
Assim, a percepção de que uma representação cultural foi desenvolvida no
passado, e se mantém firme e constante no presente. O medo, de fato, era a ferramenta
empregada no medievo para estabelecer regras e padrões. De tal forma, era o modo
utilizado, em um contexto onde o conhecimento era difundido através da oralidade, para
afastar esse Outro diferente, definindo uma má representação desse. Assim, é necessário
refletir que, mesmo com o constante revisionismo científico e histórico pelo qual nosso
mundo passa, essa antiga imagem foi mantida e, em muitos casos, ampliada. Como
aponta o professor Fernando Muñoz (2014, p. 76),
6
Na concepção de Eulógio, o erro no Islã está na figura do Profeta. Sua figura é aproximada com a do
AntiCristo, ou seja, percebemos que falta ao nosso autor o conhecimento da multiplicidade que
encontramos na cultura muçulmana ou o desinteresse em demonstrar tal multiplicidade, uma vez que, em
seu contexto e interesse, um maior enfoque em atacar o Outro. Tal modelo de descrição em ataque ao
Islã, através de seu Profeta, guiou o escrito de Eulógio até o momento de apontar a morte de Mahomat.
Como Eulógio descreve o fim do Profeta: “[...] como merecia que acontecesse, a um profeta de grande
importância e qualidade, [após sua morte] acabou na barriga dos cães, por ter entregue ao inferno não
apenas sua alma como também a de muitos outros. É verdade que cometeu muitos outros crimes que não
foram descritos nesse livro, este foi escrito apenas para que os leitores conhecessem tal figura [...]”
(FERNÁNDEZ, 1973, p. 486, tradução nossa). No original: Digne ei quidem accidit ut canum uentrem
tantus ac talis propheta repleret, qui non solum suam, sed et multorum animas inferis tradidisset. Multa
quidem et alia scelera operatus est, quae non sunt scripta in libro hoc. hoc tantum scriptum est, ut
legentes quantus hic fuerit agnoscant” (FERNÁNDEZ, 1973, p. 486, grifos do autor).
A grande maioria dos textos sobre a temática islâmica insistem na ideia de
explicar o interesse pela biografia de Maomé por razões fundamentalmente
ideológicas. De fato, a religião islâmica tendeu a ser explicada a partir da figura,
circunstâncias vitais e motivacionais de seu fundador, sendo esses detalhes os
mesmos itens biográficos utilizados para refutar o Islã, rebaixando-o a uma
categoria de paganismo herético, de origem Cristã, contaminado por judaísmo,
idolatria e cristianismo.
Logo, o grande foco da representação negativa do Islã está em uma leitura
simplista da biografia do Profeta, bem como dos valores que compõem sua fé. Conforme
Muñoz destaca, a argumentação de ataque à figura do Profeta, enquanto líder de uma
falsa fé, é a mesma utilizada para refutar tal representação, uma vez que, mesmo na
multiplicidade que compõe o Islã, uma retórica que delimita a figura do Profeta a de
homem comum, contrastando com o modelo de construção realizada por autores como
Eulógio de Córdoba e Pedro de Poitiers
7
. Para além desse marcador, capta-se uma
amplitude de valores vindos da cultura muçulmana presente no Corão e na sharia, e que
muitas vezes são deixados de lado.
Ainda que seja fundamental compreender o contexto das fontes em uso, deve ser
realizada uma análise crítica de tal documentação. Hoje, é conhecida a problemática de
uma verdade absoluta; porém para Eulógio de Córdoba, essa não seria uma preocupação,
sendo que a palavra da ecclesia tinha a possibilidade de ser, em uma perspectiva macro,
a final.
Em seu contexto, o Is era algo negativo e, de acordo com seu ponto de vista,
reduzia o poder e influência da Igreja, no entanto, como Jessica Coope aponta (1995),
um grande número de cristãos que estavam satisfeitos sob o domínio muçulmano. Sob o
olhar de Eulógio, aqueles que abandonam os cristãos e se curvam perante o Islã
afrontam os que permanecem fiéis, devendo ser enfrentados, pois acredita
[...] que valha a pena enfrentar os ignorantes, antes de expor as virtudes dos
mártires, que com uma boca repleta de blasfêmias, insultam os mártires de
nosso tempo e afirmam que eles não são iguais aos primeiros mártires.
Finalmente, eles afirmam que aqueles pagãos do passado [que atacavam aos
cristãos] eram devotados ao culto de estátuas, invadidos pela idolatria de
diferentes imagens e submetidos à monstruosidade de mil ídolos, e que, como
muitas formas de coisas terrenas que admiravam, tantas figuras de deuses
foram criadas, na ideia de que o benefício material, pelo qual com suas maiores
forças eles consumiram seu esforço miserável, não poderia ser obtido de outra
maneira senão com um abundante culto às divindades. Enganada por seu erro, a
7
Compreendemos que autores como os já citados, mas também somados a autores medievais como Arnau
de Vilanova, Jacopo de Varazze (Hilário Franco Júnior, 2003), Paulo Álvaro e Pedro, o Venerável, buscam
demonstrar o quão deturpada a cultura muçulmana era em comparação com o Cristianismo. Logo, em tal
contexto, refletindo com relação aos objetivos dos autores, é possível compreender o seu modo de
representar o Islã, porém sendo necessária uma análise que apresente à multiplicidade uma cultura
representada de forma minimalista e sob o viés do pecado.
milícia cristã que os enfrentou e se opôs foi punida com cruel perseguição [...]
8
(FERNÁNDEZ, 1973, p. 499, tradução nossa).
É necessário ter em mente que o discurso de Eulógio está pautado em atacar um
ideal de integração; ainda que a ideia de um paraíso andaluz seja mais próxima de um
mito, não evidências que comprovem um constante estado de violência na região.
Nesse sentido, há, aqui, uma perspectiva política que justificava uma assimilação do
outro dentro da comunidade islâmica, sem a violência presumida na narrativa de Eulógio
de Córdoba, como pode ser percebido em Albert Hourani ao afirmar que a chegada dos
islâmicos gerou na Europa o mesmo dilema existente no oriente, quando da formação do
Islã:
Uma sociedade em que os muçulmanos governavam uma maioria não muçulmana
foi se transformando numa sociedade em que a maior parte da população
aceitava a religião e a língua dos governantes, e um poder que governava a
princípio de um modo descentralizado foi se tornando, por manipulação política,
um poder poderosamente centralizado, governando mediante o controle
burocrático. (HOURANI, 1995, p. 69).
Em face do contexto do domínio islâmico sobre uma maioria da população, seria
“impossível” a realização de uma grande opressão visando à conversão em massa da
população. Tal noção existe em virtude de compreender que tal ato geraria um
sentimento de confronto, que levaria ao ataque e expulsão dos dominadores. Como
Karen Armstrong reafirma, não havia uma pressão institucional
[...] sobre judeus, cristãos ou zoroastristas para que se convertessem ao islã; os
muçulmanos mantiveram o antigo pluralismo religioso do Oriente Médio e
aprenderam a coexistir com os membros de outras religiões que, segundo o
Corão, eram revelações anteriores e perfeitamente válidas. (ARMSTRONG,
2002, p. 292).
A porta aberta, visada pela assimilação, era a de um crescimento social coletivo, por isso,
se há o interesse em analisar uma representação, é fundamental assimilar seus contextos
e usos, uma vez que a perpetuação de uma imagem negativa do Islã parte de uma
compreensão micro com relação ao Outro. Nesse sentido, é necessário fazer uso dos
8
No original: “Sed priusquam eorum exequar tropaea insígnia, operae pretium resistere credidi imperetis,
qui ore blasfemo horum temporum martyribus derrogantes non esse illos consimiles prioribus martyribus
uolunt. Illa denique, aiunt, gentilitas olim simulacrorum cultibus dedita uariisque imaginum sacrilegiis
occupata milleno extitit idolorum portento subacta, et quot mundialium mirata est species rerum, tot sibi
instituit formas deorum, putans non alias obtinere posse temporarium commodum, ob quod suum
miserabilem summis uiribus expendebat conatum, nisi haberet numerosam obseruantiam numinum. Cuius
errore decepta crudeli persecutione resistentem ac aduersantem sibi Xpianam uexabat militiam
conuiccis. (FERNÁNDEZ, 1973, p. 477, grifos do autor)
vestígios de Ginzburg, com o intuito de analisar as variações por trás de uma
representação que jamais será totalizada.
Os Dilemas de uma Representação
A objetividade pensada por muitos, no que concerne a questões históricas, se
remete à ampliação do conceito de ciências humanas, ainda no século XIX, quando uma
perspectiva positivista deu base ao mundo das ciências. Nesse horizonte, o
conhecimento estaria amparado na empiria, objetividade e na experimentação, como
apresentado por Christian Laville e Jean Dionne. Em outras palavras, o positivismo
empregaria uma tentativa de exatidão que o combinaria com a perspectiva que
suporte às humanidades e sua múltipla formatação. “A realidade dos fatos humanos é
delas amplamente tributária, e raramente se pode determiná-la enquanto absoluta [...]”
(LAVILLE; DIONNE, 2002, p. 14).
Não como crer que uma representação possui algo absoluto, observando a
multiplicidade de perspectivas. E, no caso em foco, como diz Edward Said (2007, p. 19), o
Oriente tornou-se todo o conjunto de coisas que o Ocidente não é (nos campos da
cultura, ciências, artes, entre outros); assim, o que acontece é a representação do
Outro, no caso, o oriental, mais especificamente o muçulmano.
Uma das representações construídas com relação ao outro está toldada sob uma
perspectiva estereotipada, que pode retornar sua raiz ao passado medieval e além. Do
ponto de vista de Said (2007, p. 41), no caso do Islã, existe uma construção que o
posiciona enquanto um perigo para o ocidente, que foi imposto em um período muito
anterior aos arroubos midiáticos dos séculos XX e XXI. É aqui que se insere a escrita de
Eulógio de Córdoba, uma visão que ao atacar esse Outro “favoreceu a simplificação
sobre o Islamismo” (GOMES, 2014, p. 86).
No tocante à ciência histórica, é necessário evitar as garras da objetividade
procurando por novos espaços e verdades. Torna-se, quase, uma obrigação refletir sobre
as representações e noções de verdade absoluta. Acreditamos no dever de investigar a
origem das imagens que são apresentadas sobre o passado e assumidas como
verdadeiras em um presente que parece se esquecer de que existe mais de uma visão
sobre qualquer fato.
Em relação ao Islã, percebe-se que a manutenção de seu imaginário, considerado
inimigo, é algo comum no Ocidente, e muito similar ao imaginário da unidade africana e
da precariedade dos países subdesenvolvidos, assim como outros estereótipos.
Novamente, como afirma Karen Armstrong,
no Ocidente, nunca fomos capazes de lidar com o islã; nossas ideias sobre essa
religião têm sido cruéis, desdenhosas e arrogantes, mas agora aprendemos que
não podemos permanecer numa atitude de ignorância e preconceito.
(ARMSTRONG, 2002, p. 14).
Reconhecemos o compromisso de ampliar o número de estudos que permitam um
aumento da percepção da multiplicidade contida no Islã. Lembremos que o contexto de
escrita da referida autora era posterior a grandes manifestações muçulmanas, ocorridas
em Londres, após a publicação dos Versos Satânicos. Em um contexto onde poderia ter
enfatizado apenas o lado negativo dessa crença, ela adotou o tom da necessidade de
revisarmos nosso conhecimento e abrirmos nossos olhos a uma nova possibilidade de
representar o Outro.
Um dos grandes problemas que a própria Armstrong apresenta, é que ao
trabalhar com o Islã, é essencial ter uma base e uma leitura profunda no que diz respeito
aos detalhes culturais, considerando ser uma cultura oral posteriormente transcrita para
o papel. O principal apontamento que levou a essa perspectiva é a utilização da figura do
Profeta para representar o Islã, seja de maneira positiva ou negativa, mas como principal
referencial para os vícios de uma falsa fé.
Desse modo, é preciso conhecer sua figura e o que representa para a cultura
muçulmana. A isso se soma a dificuldade de serem poucas as biografias que encontramos
sobre o profeta. As que encontramos, em sua maioria, indicam a necessidade de
conhecermos um pouco da história muçulmana e de seu profeta, visando uma
compreensão plena e de impacto, e em sua maioria mantendo uma perspectiva toldada
pela visão da Igreja combativa do período medieval. Somam-se como narrativas da vida
do profeta os escritos clássicos de Muhammad ibn Ishaq (767), Muhammad ibn Sa’d
(845), Abu Jafar at-Tabari (923) e Muhammad ibn Ummar al-Waqidi (820), quatro autores
que ainda no primeiro milênio narraram, sob diferentes perspectivas, a vida de Mahomat.
Diante dessas considerações, é importante estudar o Islã e questionar formas e meios,
visando, de fato, uma ampliação do conhecimento com relação à multiplicidade dessa
cultura religiosa.
A partir disso, reconhecemos que 1) a maioria dos escritos que detalham a vida do
profeta estão na língua árabe, algo que se torna uma barreira para o ocidental, na grande
maioria dos casos; 2) se a representação mais próxima de uma verdade está em um
idioma “desconhecido” para o ocidente, o material base para construir uma
representação terá que vir de outra fonte, nesse caso, a audição. Podemos concluir que o
representado jamais será retratado da melhor forma em uma representação feita por
terceiros. Tal afirmação propõe expressar que o grande foco de qualquer narrativa é o
interesse contido em sua formação, seja pelos detentores do poder, seja por pessoas que
queiram apostar em sua verdade como a final.
Como Hegel afirma em Princípios da Filosofia do Direito (1997), o ser humano,
apesar de vinculado a uma sociedade, não é submisso aos desígnios de quem detém o
poder, mesmo ser este o detentor da garantia de sua liberdade e formação político-
pedagógica. Dessa maneira, podemos dizer que a história não se constituiu como um
processo anônimo, levando em conta que são as pessoas que lhe dão base e forma,
atuando através de uma voz ativa e de uma ação constante. Para Hegel, o norteador da
história estaria na ação humana de sua perspectiva pode-se tomar a ideia de que o
coletivo sempre estaria além de qualquer ação individual. Assim sendo, é essencial
analisar as motivações que norteiam determinadas representações, pois, ao analisar o
alicerce de uma representação, teremos uma noção sobre uma origem (que sempre será
múltipla), mas que ao menos pode ajudar a compreender o que hoje seria uma verdade.
Trabalhando com esse pensamento, se determina, por exemplo, que a imagem da
cultura islâmica como grande mal, nos territórios europeus, surge de um contexto
ancestral, ainda no princípio do período medieval. Em tal período, funcionários dos
antigos reinos visigodos da Península Ibérica começam a perder seu poder a partir da
conquista muçulmana, iniciada em 711, bem como a ruptura por conversões familiares em
diversos lares, como nos diz a professora Jessica Coope, da Universidade de Nebraska,
ao analisar os escritos de São Eulógio de Córdoba (? 857).
Com esse fato, a representação histórica sempre teve como eixo uma verdade
absoluta, ligada àqueles que detinham o poder. O problema dessa visão é que apesar de
haver a possibilidade de se concentrar em parcelas da população que estavam abertas a
uma interação, a uma troca genuína, elas remetiam exclusivamente à perspectiva
necessária para a manutenção de determinada ordem e valores sendo estes, quase
sempre, calcados em uma minoria social ou em uma visão muito fechada.
É sob esse aspecto que se coloca a representação do Islã, isto é, a partir de
Eulógio de Córdoba. Ainda que não estivesse em posição de detentor do poder, em suas
obras uma tentativa de recuperar um passado e um valor que estão perdidos em
função da ascensão da cultura muçulmana. Como não era mais o dominante, demonstrou
como era agredido por um grupo de brutos, pois como afirma o Profeta, “[...] aos seus
seguidores ordenava que tomassem em armas e, com um novo ardor por sua fé,
ordenava que trucidassem seus adversários [...]”
9
(FERNÁNDEZ, 1973, p. 484, tradução
nossa).
Como se viu no passado, a violência empregada para representar o Islã fazia parte
de um recurso retórico que visava afastar o cristão desse Outro, uma vez que havia uma
maior atratividade no mundo islâmico do que no cristão. Em face disso, é importante
analisar a história das representações sob à luz dos vestígios (motivos) que lhes deram
origem, visto que, se entendermos a motivação, compreendemos o todo. Isto posto,
devemos seguir os rastros deixados por aqueles que agiram no passado, legando história
e representações para o presente. Ao focar no detalhe se forma uma perspectiva quanto
às motivações, permitindo reinterpretações e novas significações, como a que se levanta
na introdução deste texto sobre os muçulmanos.
Ainda hoje se convive com uma representação que trata como verdade o fato de
as populações árabes-muçulmanas serem violentas e propensas a diversos ataques ao
Ocidente, porém pouco se reflete quanto a esta imagem construída ainda no século IX.
Repensar a construção da história enquanto ciência levaria a questionamentos
referentes às motivações desta formação, analisando sobre o modo como foram feitas e
quais suas consequências; questionar verdades é abrir-se para possibilidades.
Desconstruindo verdades que, na realidade, estão baseadas em falsidades, a história,
vista como ciência do século XX e XXI, tem se preocupado em ir além de antigas
totalidades, ou seja, redescobrir-se e respeitar mais o real, e antes de tudo, recorrer a
uma verdadeira compreensão.
Como tal, deve-se refletir sobre a alteração de significados, principalmente sobre
a necessidade de investigar novas teorias e visões, que são, portanto, o papel do
historiador: apto para pesquisar e difundir conhecimento. Para o exemplo trabalhado
aqui, trazemos as palavras do professor espanhol José Martínez Gázquez, que afirma que
os escritos sobre o Islã, do período medieval, possuem
Todo o conjunto de auxílios dispostos por quem trabalhou nos manuscritos das
traduções latinas do Alcorão, que visualizam a hostilidade que se sente contra
Maomé e sua obra, concebem um verdadeiro depósito de armas, segundo
expressão de Pedro o Venerável, ao serviço do melhor conhecimento do Islã [
como inimigo] e suas traduções [como ferramentas] para melhor dispor de um
ataque eficaz que refute e desmascare os infiéis. (GÁZQUEZ, 2006, p. 145).
Uma análise acerca da formação da representação permite compreender a
motivação para o seu desenvolvimento, bem como possibilitar uma percepção quanto à
9
No original: Arma sibi credentibus assumere iubet et quasi noue fidei zelo ut aduersarios gladio
trucidarent instituit [...]”( FERNÁNDEZ , 1973, p. 484, grifos do autor).
sua difusão e ampliação; por isso, encontra-se a necessidade de alterar, a começar com
sua incompletude, perspectivas absolutas. É preciso garantir a reinvenção da história
pensando na importância de oferecer uma visão que alcance e renove perspectivas tidas
como fechadas, como a percepção que temos, ainda hoje, quanto ao Islã.
Ao traçar uma representação no presente baseada em elementos do passado, com
relação ao Islã, caímos no uso de diversos estereótipos, algo que no tempo de São
Eulógio de Córdoba não seria compreendido como tal. Com esse argumento, defendemos
dois pontos: 1) a necessidade de utilizar um novo modelo teórico metodológico que
permita uma análise ampliada de representações que diminuam o Outro, e 2) a ampliação
do número de pesquisas com relação ao Islã.
No que tange à abordagem, nossa proposição aproxima-se de práticas que hoje
são definidas como Pós-Modernismo. Nessa perspectiva de ampliação e renovação dos
conteúdos da historiografia, procuramos ir além de uma mera continuação do chamado
modernismo histórico, uma vez que com essa nova perspectiva abriram-se novas
metodologias de análise, antes deixadas de lado. Como Juliana Marques sustenta,
[...] o s-moderno é o resultado estridente das consequências do novo na
modernidade: definido a partir dos anos 1970 e consolidado definitivamente com
os novos paradigmas sociais e tecnológicos do mundo da virada do milênio,
consiste temporalmente parto de Perry Anderson (1999) na derrocada final
do antigo mundo aristocrático, mas também no fim do triunfante mundo burguês
modernista, no arranjo político “sem nuances” submetido ao capitalismo
especulativo e, em especial, no triunfo do progresso aceleradíssimo da tecnologia
e de seu alcance global. Os teóricos pós-modernistas, referenciados pela vivência
no próprio fim do modernismo, ainda tateiam em busca de definições teóricas
abrangentes que não sejam contraditórias entre si [...](MARQUES, 2013, p. 68).
Com isso, percebe-se a virada que novas perspectivas e possibilidades trouxeram
para a história, mudando referenciais e repensando formações. Nota-se que o conceito
de pós-modernidade, na realidade não passa de uma ampliação de uma perspectiva
moderna. Dentro desse horizonte, torna-se necessário expandir significados e
representações, ou seja, a história como uma ciência em constante revisão e alteração,
uma história composta por verdades; e ao historiador, por sua vez e por meio de seu
aparato teórico-metodológico, precisa apresentar uma argumentação que comprove sua
teoria, estando aberto a mudanças e reinterpretações. Isso indica que a pesquisa
histórica nunca será absoluta, mas sim um diferencial, possibilitando uma nova
interpretação, um impacto diferenciado que permitirá novos conceitos, principalmente
pelo fato de gerar melhores questionamentos.
É preciso levar em conta que a história é considerada como uma ciência do
presente, cujo ângulo de análise está em constante expansão, visando englobar o todo
deixando de lado antigas noções preocupadas com as partes fechadas. Esta área do
conhecimento ainda preocupa-se com a verdade, mas entende que essa é condicionada a
uma perspectiva que deve ser compreendida no plural. Tal questão permite mostrar que
é preciso ampliar o ato de questionar, em virtude de que apenas com esse ato será
possível expandir noções além de antigas percepções.
A importância de uma ampliação de análises
Não cabe, porém, apenas realizar uma mudança na forma como ocorre a pesquisa,
devem-se alargar questionamentos e campos que são, muitas vezes, relegados. Com
relação ao Islã, percebe-se, hoje, uma aceitação a um discurso específico que o aloca
enquanto figura, predominantemente ou agressiva. Assim, torna-se imprescindível
desenvolver pesquisas que demonstrem a problemática de tal crença, uma vez que tal
representação está amparada em uma perspectiva micro, que pode ser rastreada até o
período de São Eulógio.
Ao perpetuar uma visão que apresenta o Islã como sinônimo de violência, se
assume um discurso que assim o representa, sem oferecer uma análise macro ou se
preocupar com a veracidade. Quando se aceita uma imagem totalizante, o perigo de
conceber como verdadeira uma representação que vincula a crença islâmica a um “[...]
homem louco e endemoniado que arrebatado por um espírito imundo, construiu sua
como um verdadeiro precursor do anticristo [...]
10
, como São Eulógio a descreveu
(FERNÁNDEZ, 1973, p. 482, tradução nossa).
À vista disso, nos dedicamos sobre esta perspectiva oriental: a multiplicidade
cultural contida no Islã. Aponta-se que hoje, sob o horizonte midiático, o
fortalecimento de uma representação estereotipada com relação a essa cultura. A
problemática de tal ação é o fortalecimento de uma noção de história única, que impede
que a população, muitas vezes, compreenda que uma representação não é,
necessariamente, fidedigna para com o representado.
Como Chimamanda Adichie acentua (THE DANGER of a single story, 2009), para
escapar de uma história única é importante evitar uma análise do Outro baseada apenas
em nossa própria crença, ou seja, a autora tem uma preocupação no que se refere aos
10
No original:“[...] cuiusdam pestilentiosi ac daemoniosi homunculi diuinationibus collocantes, qui ab
spiritu immundo praereptus iniquitatis mysterium ut uerus Antixpi praecursos exercens, nescio quam
nouitatis legem pro suo libito et instinctu daemoniorum perdito uulgo instituit.” (FERNÁNDEZ , 1973, p.
482, grifos do autor).
perigos de uma visão estereotipada, que não voz àqueles que não conseguem
escrever sua própria história.
O papel do historiador é dar voz a figuras que tiveram sua representação
construída, mas que não foram ouvidas ou compreendidas. Com isso, temos que tecer
uma narrativa que permita que aqueles que são objetos e agentes da história, com base
em suas individualidades, possam ser compreendidos como um todo. Em razão desse
fato, pesquisas sobre essa temática devem ser enxergadas como uma necessidade para
superar uma série de representações que reduzem o Outro.
O envolvimento com o mundo muçulmano parte dessa ideia. Ao analisar fontes e
pesquisas recentes, encontram-se muitos trabalhos que mantém uma atenção na crítica
e na diminuição da figura do muçulmano. Tal afirmativa pode ser comprovada ao
analisarmos produções relacionadas ao Islã, no Brasil, por meio do banco de periódicos
da CAPES
11
. Em tal pesquisa, se encontra um número mínimo de trabalhos que se
dedicam ao Islã, principalmente no que se refere à base dessa cultura ou ao viés que a
representa negativamente. Isto posto, os números são os seguintes: 46 trabalhos sobre
“a origem do islã”, 65 resultados para “O Islã e o medievo”, 108 pesquisas voltadas para o
termo “Mártires de Córdoba”. Podemos dizer que pesquisas que procuram se debruçar
sobre as origens do Islã e a sua representação possuem um número irrisório. Quando se
compara esses números a um termo como “terrorismo islâmico”, que conta com 800
resultados, é importante revisitar a formação representativa do Islã, incentivando uma
ampliação de significados.
Por outro lado, quando há uma comparação com uma linha histórica baseada no
Ocidente em si, encontramos números muito maiores, como: Ditadura Militar no Brasil
(3.000 resultados), Segunda Guerra Mundial (18.000 resultados) e História dos Estados
Unidos (16.000 resultados). Percebe-se, aqui, um número absurdamente superior ao que
encontramos na pesquisa sobre o Islamismo, por exemplo, encontrando 950 resultados.
Desta forma, estudar uma cultura ancestral e, principalmente, a formação de uma
representação, com a qual até hoje se convive, torna-se primordial para uma boa
compreensão histórica, cujo historiador expõe um passado escondido, e por vezes
esquecido.
Ao perceber o quadro irrisório de pesquisas em um campo de estudos específicos
é necessário se pensar na proposição de novos questionamentos para averiguar quais as
possibilidades de pesquisa e revisão que são possíveis. Mesmo que nas ciências exatas
11
As pesquisas no banco de dados da CAPES ocorreram em diferentes momentos, entre 2016 e 2019,
porém os dados apresentados aqui são referentes a abril de 2019.
muitas verdades são postas à prova por novas teorias e experimentos, cabe ao
historiador, por seu turno, mostrar que o mesmo processo ocorre com a história, ou seja,
que ela também é uma ciência que possui um quadro multifacetado de verdades e que
são essas que a norteiam até que novos questionamentos e possibilidades surjam.
Uma revisão histórica parte da desconstrução de representações muitas vezes
enraizadas no senso comum, e tais formulações podem ser determinadas enquanto um
mito político
12
, uma vez que através de uma série de repetições busca-se construir uma
imagem que preencha o imaginário popular. Reconfigurar uma representação é
fundamental para que seja possível captar uma mudança interna e externa em diferentes
grupos sociais, principalmente quando refletimos sobre uma história cultural. Em
consonância com Chartier e Ginzburg
13
, referenciais para o campo das representações
sócio históricas, convém expandir o campo histórico desde a ampliação de
representações tidas como totais e construídas em um passado distante.
Como Karen Armstrong destaca (2002), a motivação que levou a reprodução do
Islã como inimigo esteve ligada ao contexto de formação dos heróis laicos da sociedade
medieval, como Rei Arthur, Robin Hood e Carlos Magno. Tal representação usou de
elementos de um passado, como os escritos de São Eulógio e Pedro de Poitiers, que
deram ferramentas para que um Islã nefasto fosse difundido. É sob tal concepção que
defendemos a ampliação do combate da representação fechada do Islã, uma vez que se
uma cultura jamais será monolítica, sua forma também não o pode ser.
Vimos que a construção de toda representação está imbuída em motivações
próprias que demonstram uma tendência, pois no caso do Islã, quando representado
negativamente, há um contexto de apresentá-lo como inimigo local, projetado de maneira
macro, e com intuito de angariar apoio para aquele que desenvolve a imagem. Essa
representação do mal islâmico originou-se no passado medieval, onde havia uma
necessidade de apresentar a eterna dualidade do mundo, entre bom e mal, certo e
errado. Todavia, se mesmo no contexto medieval tal perspectiva não pode ser
12
Aceitamos a perspectiva apresentada por Christopher Flood (1996) e Hans Blumenberg (1985) ao
dizerem que, embora as pessoas compreendam a diferença entre um mito (representação) e a realidade
que cerca o representado, a constante exposição a uma perspectiva fechada acaba impedindo a geração e
compreensão para além do mito. Acreditamos que o caráter de mito político oriundo da representação
feita sobre o Ispode ser percebido como uma problemática, uma vez que a imagem construída recebeu
um caráter de verdade. Refletimos que a constante exposição a uma determinada perspectiva consolidou
um caráter de verdade que desmerece o Outro, impedindo uma verdadeira representação quanto à sua
multiplicidade cultural. Ao conciliarmos presente e passado em nossa análise, queremos demonstrar a
importância de desconstruirmos o mito, mostrando o processo que o formou e retirando seu valor de
verdade, para o presente, a partir do passado.
13
Onde encontramos uma noção de que “[...] por um lado a representação faz às vezes a realidade
representada e, portanto, evoca a ausência; por outro, torna visível a realidade representada e, portanto,
sugere a presença.” (GINZBURG, 2001, p. 85).
compreendida como totalizada, por qual razão ela seria hoje? Como ressaltado, se
indicarmos estudos sobre as representações do Islã, será possível superar uma imagem
macro e estereotipada.
Conclusão
O ser humano é múltiplo e cada um pode ser o autor de um novo sentido
histórico, em virtude de questionamentos e hipóteses que diferem do que foi e do que é.
Hoje, se o próprio tempo sofre com novas problematizações ao se pensar no que era e
no que será, podemos apontar em qual realidade de determinado período se teria
formado certa teoria. Assim, remete-se à ideia de que a principal ferramenta da
construção histórica é a motivação do autor, isto é, a visão do historiador, ou daquele
que se define enquanto tal, é o que move a visão histórica para o bem e para o mal.
O que norteia a visão do historiador, e fortalece a história como uma ciência
(ainda que volátil), é a metodologia que se apresenta como um guia, ao definir e expor o
modo de realizar uma pesquisa histórica e qual deve ser o caminho seguido pelos
historiadores. Ao optar por tal metodologia, um dos papéis de nossa ciência é, partindo
do presente, questionar acontecimentos e representações de um passado que
reverberam em nosso tempo.
Cabe, a essa altura, revisitar e revisar a representação que foi construída sobre o
Islã, e oferecer a imagem da multiplicidade que lhe é devida. Essas atitudes fazem evitar
cair no erro de acreditar que há uma figura totalizante com relação ao Outro.
Levando em conta essas considerações, concluímos o texto com uma reflexão
conduzida por Karen Armstrong:
Se quisermos melhores resultados no século XXI da era cristã, os ocidentais
deveriam aprender a compreender os muçulmanos, com quem dividem o planeta.
Devem aprender a valorizar e a respeitar sua religião, suas necessidades,
angústias e aspirações. (ARMSTRONG, 2002, p. 14).
Com a citação é reafirmada a necessidade de olhar para o Outro para entender o
emaranhado de representações que o formam. Não deve existir o objetivo de eleger uma
representação como correta, sendo que isso é impossível; contudo, produzir uma
reflexão sobre a multiplicidade de elementos que compõem o Outro, e sobre os
motivadores de uma representação ser mais aceita do que outra, fortalece o papel do
historiador; afinal, questionar mais o Ocidente e o Brasil poderá render trabalhos que
ajudem a investigar essa cultura múltipla indo além de suas simplificações.
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