SABINO, Wedster Felipe Martins
*
ALMEIDA, Vasni de
**
RESUMO: O objetivo deste trabalho é investigar,
em perspectiva histórica, as formas de
evangelização e as práticas de descaracterização
cultural adotadas pelas missões batistas junto às
populações tradicionais do vale do rio Tocantins,
a partir dos relatos de viagem do missionário
norte americano Lewis Mallen Bratcher
publicados em O Jornal Batista, entre o final da
década de 1920 e início de 1930. O encontro entre
os missionários batistas e as populações
tradicionais do vale do rio Tocantins gerou
narrativas caracterizadas pela tentativa de
desconstruir e erradicar um sistema simbólico
das culturas e práticas indígenas encontradas
pelos religiosos em busca de substituí-lo por
outro cristão e protestante, a partir do qual os
agentes religiosos condenariam em seus relatos
as crenças e práticas daquelas populações
tradicionais.
PALAVRAS-CHAVE: História das Religiões;
Protestantismo; Práticas de Descaracterização
Cultural; Missionarismo; Vale do Rio Tocantins.
ABSTRACT: The objective of this work is to
investigate, from a historical perspective, the
forms of evangelization and cultural de-
characterization practices adopted by the Baptist
missions with the traditional populations of the
Tocantins River valley, from the travel reports of
the North American missionary Lewis Mallen
Bratcher published in O Jornal Batista, between
the late 1920s and early 1930s. The encounter
between the Baptist missionaries and the
traditional populations of the Tocantins River
valley generated narratives characterized by the
attempt to deconstruct and eradicate a symbolic
system - of the indigenous cultures and practices
found by the religious - in search of replacing it
with another Christian and Protestant, the from
which religious agents would condemn in their
reports the beliefs and practices of those
traditional populations.
KEYWORDS: History of Religions; Protestantism;
Cultural De-Characterization Practices;
Missionaryism; Tocantins River Valley.
Recebido em: 27/12/2020
Aprovado em: 11/06/2020
1
O presente trabalho resulta da pesquisa de iniciação científica “’Destruindo as trevas espirituais, morais e
intelectuais’: história, mediação cultural e missionarismo batista no vale do rio Tocantins (1925-1940)”,
realizada pelo autor sob a orientação do Prof. Dr. Vasni de Almeida, na Universidade Federal do Tocantins,
entre agosto de 2018 e julho de 2019, com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq).
* Licenciado em História pela Universidade Federal do Tocantins (UFT), Campus de Porto Nacional (TO).
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo (USP). E-mail:
wedstersabinohist@gmail.com.
** Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). Docente do
Curso de Licenciatura em História da Universidade Federal do Tocantins (UFT), Campus Porto Nacional. É
Coordenador do Programa de s-Graduação em História das Populações Amazônicas (PPHispam UFT).
E-mail: vasnidealmeida@gmail.com.
Introdução
Em seu trabalho mais recente, Lilia Schwarcz analisa a gênese do autoritarismo
brasileiro. A autora aborda as diversas expressões desse autoritarismo que, como nos
mostra no título do livro Sobre o Autoritarismo Brasileiro seria fruto da nossa
própria historicidade, e não algo apenas de passagem por nossas terras. Presente dentre
todas as expressões autoritárias abordadas pela autora escravidão e racismo,
mandonismo, patrimonialismo, corrupção, desigualdade social, violência e intolerância
estaria a violência sistemática contra as populações indígenas presentes no país desde a
colonização. Para a antropóloga (2019, p. 169), “[...] o tema anda particularmente presente
nestes últimos anos, em que políticos e setores do agronegócio, empreiteiras,
mineradoras e industriais põem em questão o direito dos indígenas a suas reservas e
atualizam argumentos do passado.”. Assim, “[...]o estado tem se preocupado em trazer as
sociedades indígenas para a civilização, mas buscando descaracterizá-las.” (SCHWARCZ,
2019, p. 171).
Lado a lado a esta característica das expressões autoritárias analisadas por Lilia
Schwarcz, podemos identificar, junto às populações indígenas no Brasil, um avanço
sistemático de projetos missionários protestantes nas primeiras décadas do século XX,
com a implantação das missões protestantes norte americanas no país a partir da
segunda metade do século XIX (REILY, 2003). Seguindo essa linha, em trabalho
publicado em 2015, a historiadora Elizete da Silva aponta para o crescimento exponencial
dos grupos evangélicos e o recrudescimento da intolerância religiosa em nosso país
uma das expressões deste “autoritarismo brasileiro” (SCHWARCZ, 2019). Segundo a
autora, “[...] atualmente, o pêndulo da História aponta para o crescimento de instituições
eclesiásticas que disputam o mercado religioso com um perfil fundamentalista.” (SILVA,
2015, p. 30). Por isso, interessa-nos explicitar como determinados grupos religiosos têm
atuado para efetivarem estas práticas de descaracterização, principalmente, sua gênese
histórica.
O objetivo deste trabalho é investigar, em perspectiva histórica, as formas de
evangelização e as práticas de descaracterização cultural adotadas pelas missões
batistas junto às populações tradicionais do vale do rio Tocantins, a partir dos relatos de
viagem do missionário norte americano Lewis Mallen Bratcher publicados em O Jornal
Batista (OJB), entre o final da década de 1920 e início de 1930. As reflexões oferecidas
neste estudo partem de noções teóricas e metodológicas oriundas da História das
Religiões, apoiadas em aportes da Sociologia e da Antropologia. Este deslizar teórico e
metodológico se pela necessidade de se utilizar as noções de “religiãoe “civilização”
em uma perspectiva histórico-religiosa, alinhada às proposições da escola italiana de
história das religiões, procurando “[...] colocar em discussão o sistema ocidental de
valores diante da alteridade, em vez de utilizar-se mecanicamente dele.” (MASSENZIO,
2005, p. 177).
Problematizar este sistema de valores ocidental é parte imprescindível do aparato
epistemológico do historiador das religiões encarregado da investigação dos movimentos
missionários, uma vez que, segundo Adone Agnolin (2013, p. 161), “[...] os missionários se
tornam, de fato, os primeiros civilizadores do sentido que encontra na religião o código
mais importante da cultura ocidental.”. E essas noções a serem relativizadas, neste caso,
“religião” e “civilização”, sendo um produto cultural que tem sua gênese e percurso
histórico próprios deste sistema de valores ocidental, carregam intrínsecas em si um
ethos e produzem uma “visão de mundo” própria das sociedades ocidentais. Para Clifford
Geertz (1989, p. 143-144), “[...] o ethos de um povo é o tom, o caráter e a qualidade de sua
vida, seu estilo moral e estético e sua disposição, é a atitude subjacente em relação a ele
mesmo e ao seu mundo que a vida reflete [...]”, enquanto que a visão de mundo “[...] é o
quadro que elabora das coisas como elas são na simples realidade, seu conceito da
natureza, de si mesmo, da sociedade”.
Para compreendermos as narrativas de legitimação, das ações e crenças dos
missionários batistas, frente à crítica das missões católicas, teremos como instrumento
de análise os conceitos de campo e campo religioso cunhados pelo sociólogo francês
Pierre Bourdieu. Segundo o autor (2007, p. 58-59), o campo religioso funciona como um
“mercado de bens de salvação”, onde “as diversas instâncias em competição pela
legitimidade religiosa” disputam “o monopólio dos instrumentos de salvação”. Neste
caso, a oposição entre Protestantes e Igreja Católica, muito em voga na Primeira
República.
Os editores d’O Jonal Batista, segundo Micheline Reinaux de Vasconcelos,
“pretendiam-se à voz nacional dos batistas brasileiros, podendo, portanto, representá-
los” (2010, p. 84). Em 1909, a partir de uma decisão tomada na terceira assembleia anual
da Convenção Batista Brasileira (CBB), o periódico semanal ganharia o posto de órgão
oficial da denominação no Brasil. Como nos aponta Tânia Regina de Luca, ao trabalhar
com fontes impressas é “preciso dar conta das motivações que levaram a decisão de dar
publicidade a alguma coisa”, levando sempre em consideração o “destaque conferido”
para os acontecimentos no momento da publicação, pois, “[...] a ênfase em certos temas,
a linguagem e a natureza do contdo tampouco se dissociam do público que o jornal ou
revista pretende atingir [...]”, assim como materializam os interesses, as ideias e os
projetos dos autores da publicação (2006, p. 140).
O artigo encontra-se estruturado em três tópicos, de forma a evidenciar os
aspectos considerados de suma importância para a compreensão dos interesses batistas
em suas relações com as populações do vale do rio Tocantins. No primeiro tópico,
traçamos um panorama das primeiras ações desenvolvidas pelos missionários batistas na
região, a partir do início da implantação dos campos missionários em 1925. Em seguida,
explicitamos as disputas pelo campo religioso brasileiro entre protestantes e católicos,
muito presentes no contexto histórico da Primeira República, bem como do
entrelaçamento entre os campos religioso e político no interior protagonizado pelos
missionários batistas. Por último, abordamos as relações protagonizadas pelos
missionários e as populações tradicionais situadas às margens do rio Tocantins, em
especial, o caráter proselitista e descaracterizador das práticas desenvolvidas junto as
populações indígenas Xerente e Krahô, entre as quais os batistas mantinham trabalhos
de evangelização desde 1926.
Mais joias para a corôa do mestre”: o contexto histórico do plano de evangelização
batista para o interior do Brasil
Ao abordarmos a viagem desses dois missionários, levamos em consideração a
perspectiva histórica, buscando compreender em que contexto histórico ocorreu. Para
tanto, nos orientamos pela proposta de Karina Bellotti, quando afirma que é necessário
“[...] buscar a historicidade dos discursos, práticas, crenças e agentes religiosos, tendo
em vista certas ferramentas conceituais na relação entre sociedade e indivíduos sob uma
perspectiva cultural.” (2011, p. 41).
Neste sentido, as fontes analisadas para a realização deste trabalho despertaram
o nosso olhar sobre expressões que indicam as diferentes visões de mundo, ou seja,
como o encontro entre protestantes e as populações tradicionais foi materializado pelas
missões batistas que se instalavam no vale do rio Tocantins. Uma destas expressões
encontra-se na série de textos encontrados no OJB, entre os anos de 1931 e 1933,
publicada com o título Voltando ao Sertão. Mais joias para a corôa do Mestre
(BRATCHER, 1931, ed. 45, p. 11). Estes relatos, escritos pelo missionário batista Lewis
Mallen Bratcher e publicados no OJB, tinham o objetivo de divulgar os trabalhos da Junta
de Missões Nacionais (JMN) aos fiéis da denominação, visando “[...] convencer ofertantes
e missionários a investirem recursos humanos e financeiros para a salvação das ‘almas
perdidas’ que habitavam o interior do país.” (SILVA, 2016, p. 81).
Lewis Mallen Bratcher, norte americano, nascido no dia 11 de junho de 1888, no
interior do estado do Kentucky nos Estados Unidos, foi nomeado missionário para
trabalhar no Brasil pela Junta de Richmond, em 1918, tendo sua chegada no país ocorrida
no dia 5 de fevereiro de 1919 (SILVA, 2016). Em 1925, viajou pela primeira vez ao interior
do país, no intuito de conhecer as localidades situadas às margens dos rios Araguaia e
Tocantins. O objetivo, segundo Paulo Julião da Silva, era “elaborar e consolidar um plano
de evangelização no Brasil” (SILVA, 2016, p. 81). Após essa primeira expedição realizada
por Bratcher, a JMN havia iniciado o seu plano de evangelização do Vale do Rio
Tocantins, enviando, em 1926, o casal de missionários Zacharias e Noemi Campello e, em
1929, o casal de missionários Francisco e Beatriz Collares (SILVA, 2016). A viagem
empreendida em 1931 foi marcada, então, por um caráter de avaliação e divulgação, por
parte da JMN, dos trabalhos que estavam sendo realizados.
A partir de 1925, o foco da evangelização batista no Brasil se voltou para as
populações tradicionais do interior, especialmente, “pela salvação do índio brasileiro”
(BRATCHER, 1932, ed. 35, p. 06). Para os batistas, ao voltar ao “sertão”, representados
pelos missionários Lewis Mallen Bratcher e Jayme de Andrade, estariam “[...] voltando ao
sertão para levar a luz do amor de nosso bemdito Salvador e procurar outras joias para
Sua corôa (sic).” (BRATCHER, 1931, ed. 45, p. 11).
Em 1931, Lewis Mallen Bratcher, nomeado Secretário Correspondente da JMN da
CBB desde 1926, iniciou a sua segunda viagem pelo vale do rio Tocantins. Bratcher,
comandando os trabalhos de expansão da Igreja Batista para a Amazônia, realizaria mais
uma viagem de reconhecimento pelo interior. Dessa vez, percorrendo os vales dos rios
São Francisco e Tocantins. Diferentemente da primeira viagem, realizada em 1925, foi
acompanhado de outro missionário batista, o brasileiro Jayme de Andrade. Jayme, por
sua vez, médico recém-formado na cidade do Rio de Janeiro, nunca teria viajado pelo
interior e acompanharia o missionário “para assim dedicar o primeiro anno de pratica ao
Mestre (sic)” (BRATCHER, 1931, ed. 45, p. 11).
Essa segunda viagem teve início na cidade do Rio de Janeiro, de onde Lewis
Mallen Bratcher e Jayme de Andrade partiram no dia 21 de fevereiro de 1931 para
percorrer os estados da Bahia, Piauí, Minas Gerais, Goiás, Maranhão e Pará. Durante boa
parte do ano de 1931, os missionários estiveram em movimento. Para atravessar essa
parte do território brasileiro utilizaram os mais diversos meios de transporte da época,
como ferrovias, barcos a vapor, canoas e barcos motores e, também, por meio animal.
A rota escolhida pelos missionários para se alcançar o interior estaria
profundamente ligada às ambições de expansão da denominação batista para o Brasil no
contexto histórico da chamada Primeira República. Segundo Margarida de Souza Neves
(2016, p. 16), nas primeiras décadas do século XX, a república brasileira estaria dividida
por dois cenários: a “modorra” e “marasmo” da vida no interior e a “vida vertiginosa” do
litoral. Nesse contexto, a navegação a vapor pelo rio São Francisco constituía-se numa
das mais importantes rotas de ligação entre esses dois cenários e, para os batistas,
ocupá-la com campos missionários seria essencial para a expansão da denominação no
Brasil. Da mesma forma, a ocupação do vale do rio Tocantins teria grande importância
no projeto de evangelização da Amazônia.
Após realizar a primeira parte da viagem pela ferrovia, que ligava as cidades do
Rio de Janeiro e Pirapora, em Minas Gerais, os missionários deveriam seguir viagem pelo
rio São Francisco até a cidade da Barra, na Bahia. Como fora realizado em 1925, por
ocasião da primeira viagem missionária pelo interior (naquela ocasião navegando pelos
rios Araguaia e Tocantins), Lewis Mallen Bratcher deveria explorar o vale do rio São
Francisco observando as condições para a implantação de trabalhos missionários na
região. Assim, após a viagem realizada em 1931, seria lançado pela JMN, em 1932, o Plano
de Evangelização dos Vales dos Rios São Francisco e Tocantins, que visava ligar as duas
regiões através do estabelecimento de trabalhos missionários entre as cidades de
Barreiras (BA), Natividade e Porto Nacional (GO) (SABINO, 2019). Para Lewis Mallen
Bratcher, o São Francisco seria um rio de oportunidades: “[...] viajámos ao longo do seu
curso aproximadamente 1.000kms (sic), em três dias e meio. Passámos vinte cidades e
villas, algumas com milhares de habitantes. Nem uma das vinte cidades passadas tinha
uma única igreja evangelica ou baptista, tanto quanto me foi dado saber.” (BRATCHER,
1931, ed. 49, p. 9).
Protestantes, católicos e políticos: sociabilidades religiosas e as disputas pelo campo
religioso no interior do Brasil
Observamos, por meio dos relatos publicados pelo missionário Lewis Mallen
Bratcher no OJB, as disputas próprias do campo religioso às quais se referem Pierre
Bourdieu (2007). Ao descrever a ausência de igrejas protestantes na região, o
missionário faz questão de evidenciar a influência da Igreja Católica nas localidades
situadas às margens do rio São Francisco. Segundo o religioso:
Em todos os lugares desembarcámos e passeámos um pouco. Em quase todos
uma enorme Igreja Catholica na praça principal da cidade. Muitas não estão
terminadas mas, sommas immensas foram gastas com ellas. Todas estavam
fechadas e mostravam muito pouco uso. Nem uma dava indicação de poder ou
influencia espiritual na vida do povo. Verdadeiramente são sepulcros
branqueados, nos quaes estão enterradas as esperanças e os ideaes espirituaes
do povo. [...] Igreja Catholica está, mas toda a sua energia é gasta na tentativa
de escravizar e conservar o povo na superstição e ignorancia, assim ella póde
ter ainda uma grande renda e mantêr o seu poder. (BRATCHER, 1931, ed. 49, p.
8).
Para ele, a presença católica na região seria a responsável por manter o povo na
“superstição e ignorancia”, com os clérigos católicos se utilizando da para
“escravizar” o povo e manter “uma grande renda” e “poder”. Os missionários batistas
relatariam de maneira enfática, durante todo o percurso da viagem, aquilo que, segundo
a visão de mundo protestante, seria considerado como os prejuízos da influência
católica. Dessa forma, buscariam legitimar a abertura de campos missionários naquelas
localidades, reafirmando junto à denominação uma imagem de corrupção do catolicismo
e a necessidade dos esforços financeiros para a ocupação do interior brasileiro. Segundo
os religiosos, “[...] emquanto a imagem estava ricamente vestida, e offertas de muitos
contos de réis são recebidas cada anno, as quaes vão encher os cofres do Bispo, o povo
morre de fome e sem esperança. Em toda a parte ha morte, e desespero, em vez de vida
e esperança.” (BRATCHER, 1931. ed. 49, p. 9).
Esse embate por espaços no campo religioso, muito em voga naquele período,
pode ser explicado também pelo contexto da expansão protestante ocasionado pelo
rompimento das relações oficiais entre o Estado e a Igreja Católica a partir do advento
da República. Naquele contexto, os conflitos entre protestantes e católicos no alvorecer
da república seriam acirrados, também, pela expansão do aparato institucional católico a
partir de 1889. Como demonstra Jacqueline Hermann:
[...] as autoridades eclesiásticas adaptaram-se aos novos limites políticos
impostos pela República, chegando mesmo a alargar sua esfera institucional no
período de 1889 a 1930: no ano da instauração do novo regime o Brasil
constituía apenas uma província eclesiástica, com uma arquidiocese e 11
dioceses; em 1930 eram 16 arquidioceses, 50 dioceses e 20 prelazias ou
prefeituras apostólicas; o contingente de padres aumentou com o estímulo ao
estabelecimento de religiosos e religiosas estrangeiros no país. (HERMANN,
2016, p. 124-125).
Esse aspecto de adaptação e expansão da esfera institucional católica é
importante no contexto das disputas pelo campo religioso aqui abordadas, pois, é
exatamente dentro desse movimento que seria criada a diocese da cidade de Porto
Nacional, situada às margens do rio Tocantins, em 20 de dezembro de 1915 (SANTOS,
1996). Dessa forma, a preocupação em deslegitimar as crenças e práticas católicas
encontradas nas regiões dos vales dos rios São Francisco e Tocantins estaria no centro
da retórica dos missionários batistas.
Após desembarcarem na cidade da Barra, Lewis Mallen Bratcher e Jayme de
Andrade seguiriam viagem até Corrente, no Piauí, onde visitariam o Instituto Industrial
Baptista (IIB), instituição mantida pela CBB e que atuava como colégio secundário na
região e também na formação de obreiros. A viagem até Corrente seria realizada em um
barco motor, através do Rio Grande, até a localidade de Boqueirão. De lá, o restante do
percurso, até o encontro com as águas do Rio Tocantins, se efetivaria no “Automovel do
Sertão” a “conducção animal” (BRATCHER, 1932, ed. 1, p. 12).
Nas narrativas sobre o IIB, podemos perceber o caráter de legitimação pretendido
pelos missionários acerca dos trabalhos batistas desenvolvidos na região. De acordo com
o Secretário Correspondente da JMN, o Instituto “[...] é um Oasis que é a esperança do
Sertão [...]” (BRATCHER, 1932 ed. 5, p. 9), e o seu fundador, o Dr. Joaquim Nogueira
Paranaguá: “[...] verdadeiro Pioneiro da Liberdade no Brasil, tanto civil como religiosa,
deu sua vida ao grande interior da sua amada pátria [...]” (BRATCHER, 1932, ed. 5, p. 8).
Isso exemplifica, uma vez mais, as disputas pelo campo religioso que estariam sendo
travadas no contexto de formação da república. Nesse caso, para os protestantes, a
influência exercida pela Igreja Católica seria sinônima a “corrupção”, “ignorância” e
“superstição”, enquanto que a atuação deles nos campos missionários seria a própria
expressão dos ideais republicanos, do liberalismo, da “liberdade no Brasil, tanto civil
como religiosa” ou “a maior esperança no desenvolvimento” do interior (BRATCHER,
1932, ed. 5, p. 8). Essa representação buscada pela denominação batista, através dos
missionários e das publicações n’O Jornal Batista, te grande importância para o
desenvolvimento dos projetos de evangelização e expansão sobre as populações
tradicionais do interior legitimando suas ações, especialmente, entre os indígenas do vale
do rio Tocantins.
A terceira parte da viagem seria realizada por condução animal, a cavalo, com o
auxílio de tropeiros, acompanhando os religiosos de Corrente até Porto Nacional, na
região norte do estado de Goiás. Assim, o destino seria alcançado através das cidades e
vilas de Formosa, Brejo Grande, São José de Duro, Almas, Natividade, Chapada e Porto
Nacional. Bratcher registra, nesse ínterim, a dura vida dos “tropeiros” que os
acompanhariam na viagem, segundo ele: “[...] a vida de um tropeiro não é fácil, ao
contrário, é cheia dos trabalhos mais árduos, e, ás vezes, de perigos.”. Esses homens do
interior trabalhavam durante as viagens como “guias, cozinheiros e ajudantes” além de
“preparar os animaes, fazer café, carregar os animaes de modo conveniente” e sua
alimentação durante o percurso consistia de “feijão, arroz, carne secca e farinha”. Para o
missionário, “[...] o conforto dos viajantes e dos proprios animaes, e o sucesso da
viagem” dependem da perícia dos tropeiros. (BRATCHER, 1932, ed. 21, p. 11).
Partiram de Corrente no dia 15 de abril, após uma estadia de três semanas no IIB,
com o objetivo de percorrer um trecho de “umas cem leguas”, no qual os missionários
gastaram “dezesseis dias na viagem” (BRATCHER, 1932, ed. 7, p. 7). Neste trajeto,
passaram por diversas cidades e vilas, sempre destacando a ausência de trabalhos
missionários na região. Os missionários relacionaram isso a um estado de decadência do
comércio nas localidades do interior.
Depois de uma penosa viagem, chegámos a uma villa chamada Almas. Este é um
logar absolutamente morto, no que diz respeito ao desenvolvimento do
commercio. Foi em tempo um centro de exploração do ouro e de constituição de
fortunas. Diz-se que ainda ha uma grande quantidade de ouro na região, mas
póde-se ouvir isso em todo o caminho. Si houvesse tanto ouro como dizem,
estou certo de que ali haveria alguem que faria se desenvolvimento. O logar foi
construido por um português, cuja vida pecaminosa deixou ali mancha indelevel.
Ha uma doença no meio do povo. Dizem que o ouro traz ruina e maldição.
Alguem olhando para Almas bem podia acreditar que isto é verdade. Certamente
ruina moral e espiritual ali, que não vi em nenhum outro logar, em toda
viagem através do Sertão. (BRATCHER, 1932, ed. 11, p. 9).
Para os missionários, a região estaria esquecida. De acordo com a visão de mundo
destes, aquelas cidades e vilas estariam arruinadas do ponto de vista moral” e
“espiritual”, onde a “vida pecaminosa” deixara uma “mancha indelevel”.
Após alguns dias de viagem, os missionários alcançariam a cidade de Natividade,
onde Lewis Mallen Bratcher se encontraria com algumas pessoas conhecidas durante
sua primeira viagem ao vale do rio Tocantins, em 1925. Em Natividade, o caráter de
evangelização dos religiosos batistas ganha um aspecto mais ordenado. A partir dessa
localidade, seriam acolhidos por representantes dos poderes locais, recebendo
hospedagens, realizando seus cultos em espaços públicos, dentre outras coisas:
No segundo dia da nossa estadía, o Prefeito e outras autoriddades nos visitaram.
Foram muito cordeaes e nos disseram que estavam alegres com a esperança de
ouvir a pregação do Evangelho. As reuniões cresciam tanto em interesse como
em poder, dia após dia. A sala tornou-se muito pequena para os auditorios e o
povo estava impaciente por não poder ouvir como desejava. Finalmente alguem
sugeriu que prégassemos na praça, onde havia um coreto para as reuniões
publicas. A principio me oppuz á mudança, porque tinha receio que as reuniões
perdessem o seu interesse e poder; porém o povo tornou-se tão insistente que
concordei me mudar si o Prefeito permittisse. Pedi a sua opinião. Disse-me:
‘Acho que o senhor deve fazer o que o povo deseja. Querem ouvir o Evangelho e
têm direito de ir á praça’. (BRATCHER, 1932, ed. 16, p. 7).
A partir dessas ações, emergiria o aspecto civilizador das práticas missionárias
realizadas pelos dois religiosos. De agora em diante, foram recorrentes os sermões
abordando questões culturais presentes nas populações do vale do rio Tocantins, como
por exemplo, a exortação acerca dos “Effeitos do Alcool”, realizada pelo médico Jayme
de Andrade em todas as paradas às margens do rio: “[...] o Dr. Jayme teve boa
opportunidade de falar contra o álcool, [...] uma advertência muito opportuna, porque a
cachaça é um dos maiores inimigos do povo sertanejo” (BRATCHER, 1933, ed. 11, p. 11). Os
missionários tencionavam, através de suas práticas de evangelização, incutir nas
populações tradicionais um modo de vida cristão e protestante, como também
carregavam uma noção ocidental de “civilização” presente na ordem positivista da época.
Essa necessidade de espraiar um comportamento cristão e protestante, a partir
de ajustes à realidade assumida ocorre pelo choque entre as diferentes visões de mundo
e os diferentes ethos encontrados pelos missionários ao se relacionarem com as
populações do vale do rio Tocantins. O que remete à dicotomia entre o “marasmo” do
interior e a “vida vertiginosa” das cidades do litoral, com a qual podemos compreender,
em alguma medida, o confronto entre o ethos dos missionários batistas e o das
populações locais, bem como a necessidade que estes tinham em intervir nessa realidade
a partir de seu “tom”, “caráter”, “estilo moral e estético” e, por conseguinte, deixar claras
as diferenças entre as visões de mundo protestante, católica, indígenas e sertanejas
(GEERTZ, 1989, p. 143-144).
Após alguns dias em Natividade, seguiram em direção a Porto Nacional, ponto
estratégico na consolidação das missões batistas no Vale do Rio Tocantins e que seria a
grande dificuldade da JMN durante as próximas décadas. De lá, a recepção também
demonstra a relação dos missionários com os líderes políticos locais: “[...] de facto
chegamos a Porto Nacional depois de quatro dias de saida de Natividade; e, como
esperava, fomos bem recebidos pelo chefe político, Coronel Frederico Lemos [...]”
(BRATCHER, 1932, ed. 25, p. 6). Segundo o missionário, “[...] além de ser um logar muito
retirado Porto Nacional é o centro do trabalho da Igreja Catholica no Sertão. Os padres e
irmãs de caridade tem dominado, em grande parte, o logar, outra causa que impediu o
seu progresso”. (BRATCHER, 1932, ed. 25, p. 6). A presença dos clérigos católicos, em
sua grande parte frades e irmãs dominicanas, seria, para os protestantes, a “causa que
impediu o seu progresso”.
No entanto, Maria de Fátima Oliveira (2010), em trabalho sobre a cultura e o
cotidiano de Porto Nacional nas primeiras décadas do século XX, nos aponta que a
chegada dos clérigos dominicanos, aliada ao “animado comércio pela navegação fluvial,
através do Tocantins com o Belém do Pará”, a “presença de um médico na cidade” e
ainda, “o surgimento da imprensa local”, fizeram com que Porto Nacional tivesse “papel
fundamental para o desenvolvimento da região norte do Estado de Goyaz” (OLIVEIRA,
2010, p. 15-19). No entanto, estes são sinais do progresso da cidade que, na análise dos
missionários batistas, não eram suficientes frente ao domínio católico estabelecido no
local. Compreendemos que essas críticas são próprias das disputas no campo religioso.
Temos que lembrar que Porto Nacional, desde 1915, abrigaria a sede do bispado do norte
de Goyaz, de onde a Igreja Católica organizava toda a sua atuação na região.
Assim como em Natividade, as práticas dos missionários se entrelaçavam aos
poderes políticos locais. Nas palavras dos missionários, “por causa do augmento do
auditório o Prefeito offereceu-nos a sala da Camara, para a reunião de domingo á noite
(sic)” (BRATCHER, 1932, ed. 25, p. 7). Ao relatar o apoio dos líderes locais às suas
atividades missionárias, procuravam demonstrar aos fiéis da denominação o anseio das
populações locais por receberem trabalhos batistas, legitimando as ações pensadas para
a região, segundo eles: “Tivemos um verdadeiro avivamento naquella cidade catholica,
que acordou o povo da sua indifferença e morte espirituais. Onde a igreja catholica
exerce dominio incontrastavel, o resultado é sempre morte espiritual [...]” (BRATCHER,
1932, ed. 25, p. 7).
Pela salvação do indio brasileiro”: práticas de descaracterização cultural e
missionarismo batista entre os povos Xerente e Krahô no vale do rio Tocantins
Durante sua primeira viagem à região em 1925, o missionário Lewis Mallen
Bratcher teve um breve encontro com os indígenas da etnia Xerente, visitando uma
aldeia próxima à cidade de Piabanha (situada a poucas léguas de Porto Nacional). Nesse
primeiro contato, estabelecido em 1925, o missionário já havia evidenciado em seus
textos no OJB, publicados entre o final de 1925 e 1926, as possibilidades para a
evangelização dos indígenas Xerente, segundo ele:
Perguntei ao chefe quantos eram e elle me respondeu com um signal rapido da
mão e me indicou: norte, sul, éste e oeste. Era bastante diffcil calcular o
numero, pois ninguem tem ainda visitado todos os índios e nenhuma estatistica
existe. Elles não são sanguinarios e póde viajar-se pelos seus dominios sem
perigo de vida. (BRATCHER, 1926, ed. 20, p. 12).
Observa-se no discurso do missionário a ênfase dada ao isolamento ou, melhor
dizendo, a “ausência” de trabalhos junto a esta população indígena. No entanto, segundo
autores como Manuela Carneiro da Cunha (1992b), missionários jesuítas, capuchinhos,
dominicanos e também agentes civis desenvolveram ações de catequese e civilização
entre as diversas etnias indígenas situadas nos vales dos rios Araguaia e Tocantins desde
o início do século XVIII. Percebemos também, no trabalho de Mary Karasch, que existiam
aldeamentos missionários católicos entre os Xerente, em Piabanha, e entre os Krahô,
próximos à cidade de Pedro Afonso, pelo menos, desde meados do século XIX, segundo a
autora:
Piabanhas (ou Teresa Cristina), fundada para 3800 Xerente e Xavante em 1851,
no município de Porto Imperial, ainda era uma aldeia relativamente bem-
sucedida em 1880. Em 1852, Frei Rafael de Taggia registrou 2139 Xavante e
Xerente na aldeia, que em 1874 abrigava 3 mil Xerente e Krahô. [...] A aldeia
tinha uma escola primária com 31 crianças, uma capela e um missionário
residente, frei Antonio de Gange. [...] Outra aldeia nova era Pedro Afonso,
fundada em 1849 por frei Rafael de Taggia na freguesia de Porto Imperial para
abrigar trezentos Krahô das margens do rio Farinha, de modo a tirá-los das
fazendas de gado das proximidades de Carolina, de onde os fazendeiros os
acusavam de roubar gado. A remoção também pretendia facilitar a comunicação
e o comércio ao longo do Tocantins, com Porto Imperial. (KARASCH, 1992, p.
408).
Através das ações da JMN, pensadas para a evangelização das populações do
interior a partir de 1925, seriam estabelecidos campos missionários, igrejas, escolas,
sociedades de crianças e mulheres e todo o aparato de evangelização batista, no intuito
de espraiar, além da religiosidade batista, uma cultura e as práticas religiosas
protestantes em detrimento das culturas e práticas indígenas, sertanejas e católicas
presentes na região. Para isso, as missões batistas necessitariam silenciar as influências,
ou os vestígios, de missões anteriores. Daí o fato da narrativa de Lewis Mallen Bratcher
desconsiderar as missões capuchinhas citadas por Mary Karasch (1992). Para os fiéis da
denominação que acompanhavam os esforços de evangelização através dos artigos
publicados no OJB, os campos missionários seriam ilustrados como postos avançados do
liberalismo, patriotismo e verdadeiros “[...] pharoes que estão projectando os seus
esforços para o coração do Brasil, ou digamos, para o Brasil do futuro.” (BRATCHER,
1936, ed. 40, p. 12). As missões batistas encontravam-se num contexto de
descaracterização e desconstrução dos códigos culturais e religiosos referentes às
crenças e práticas católicas, das populações sertanejas e das populações indígenas sob
os quais eles iriam reconstruir os seus. Nesse sentido, uma desconstrução do ethos
próprio das populações tradicionais situadas na região (GEERTZ, 1989).
Em 1931, o encontro dos viajantes com as populações das duas etnias se efetivaria
através de Zacharias Campello e Francisco Collares, os missionários responsáveis pelos
trabalhos entre as etnias Krahô e Xerente, respectivamente. Zacharias Campello, natural
de Barra do Corda, cidade localizada ao sul do Maranhão, seria descrito por Lewis
Mallen Bratcher como filho de um casal de “indios civilizados” e, segundo ele, “voltava
para o seu povo” (BRATCHER, 1932, ed. 35, p. 6).
Nos relatos percorridos durante a pesquisa, podemos encontrar uma relação
entre os projetos de evangelização da JMN com os projetos de integração das populações
indígenas presentes na política nacional durante as primeiras décadas da república. Para
Bratcher:
Um dos menos conhecidos e compreendidos de todos os povos do globo é o
indio brasileiro. Bem pouco se tem feito para o seu desenvolvimento, tanto
material como espiritual. Com excepção de grandes homens como os generaes
Couto Magalhães e Candido Rondon, poucos têm estudado e escripto sobre este
povo e, nem as actividades desses poucos, tem attrahido a attenção que
merecem. É verdade que a igreja catholica faz grandes reclamos de seus
esforços pela civilização e catechisação dos indios, porém o estudante desses
reclamos, descobrirá que pouca ou nenhuma base. A maior prova disso é a
condição do indio hoje, depois de quatrocentos annos de taes esforços
dependidos. (BRATCHER, 1932, ed. 35, p. 6).
O missionário, novamente, cita em seus relatos a falta de interesse pela
“civilização” e “catechisação” das populações indígenas naquele contexto. Para ele,
“pouco se tem feito para o seu desenvolvimento, tanto material como espiritual”. Além
disso, refere-se aos trabalhos missionários realizados pela Igreja Católica, representada
na região naquele contexto pela presença dos frades e irmãs dominicanas localizados no
bispado de Porto Nacional, como um trabalho ineficaz, dizendo que tais esforços teriam
“pouca ou nenhuma base”.
É importante lembrar que durante as primeiras décadas do século XX serão
realizados grandes esforços de comunicação com as populações indígenas,
impulsionados pela atuação de Cândido Rondon durante a construção das linhas de
telégrafo e, posteriormente, com a criação do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), em
1910. Segundo Lilia Schwarcz e Heloisa Starling (2015, p. 346), “[...] o governo republicano
andava preocupado com o isolamento da região e com a fragilidade das áreas de
fronteira.”. Desta feita e, em certa medida, Cândido Rondon e o SPI teriam grande
importância no “[...] papel de incorporar a Amazônia efetivamente à nação, não por
meio do telégrafo (neste caso, o Centro-Oeste ao Sul do país) como mapeando o local,
desbravando terras e estabelecendo um primeiro contato com os indígenas.”
(SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 346).
Assim como as missões batistas que se adentravam ao vale do rio Tocantins, o SPI
não agia isolado no contexto político, social e cultural de sua época. Do mesmo modo
como os protestantes pensariam sua expansão influenciada, nas primeiras décadas do
século XX, pelo advento da República e, nesse caso, por um liberalismo norte-americano,
a criação do SPI seria influenciada por ideais positivistas, muito presentes na gênese da
república e na política brasileira do período. De acordo com Antônio Carlos de Souza
Lima (1992, p. 159), “[...] Cândido Mariano da Silva Rondon organizaria o aparelho que
fora convidado a criar a partir de uma rede de colaboradores extraída dos membros do
Apostolado Positivista do Brasil, parcialmente identificada aos integrantes da comissão
telegráfica que então dirigia [...]”. Essas duas matrizes de pensamento, positivismo e
liberalismo - corporificadas neste contexto por aqueles à frente do SPI e pelos
missionários protestantes - influenciariam grande parte do pensamento político da
Primeira República.
Como demonstrado acima, Lewis Mallen Bratcher considerava as missões
batistas como “faróis que estão projetando os seus esforços para o Brasil do futuro”. Os
protestantes “[...] acreditavam que a implantação do sistema republicano poderia se
converter no alicerce da nova sociedade, e esperavam interferir nela tanto no campo
econômico e político quanto no cultural.” (ALMEIDA, 2017, p. 139). Em consonância, para
os integrantes do SPI, o trabalho “[...] se representava nos termos da ideologia positivista
da época, como missão [...]”, como uma “[...] missão civilizadora que consistia em
descobrir e demarcar o território geográfico, submeter e ‘civilizar’ os que estivessem à
margem da Nação.” (LIMA, 1992, p. 163).
Ao adentrar os domínios pertencentes aos indígenas, Lewis Mallen Bratcher inicia
uma descrição detalhada de sua estadia entre as duas etnias e do trabalho desenvolvido
por Zacharias Campello e Francisco e Beatriz Collares. Podemos identificar, através
dessa narrativa, que algumas estratégias utilizadas pelos missionários batistas para
descaracterizar a cultura e os costumes indígenas, e para o estabelecimento de seus
trabalhos junto às etnias, eram semelhantes às práticas utilizadas pelas missões de
Jesuítas, Capuchinhos e Dominicanos (CARNEIRO DA CUNHA, 1992a; KARASCH, 1992;
LIMA, 1992). Entre essas ações, por exemplo, podemos destacar a mudança do local das
aldeias indígenas para locais considerados pelos missionários mais propícios ao
desenvolvimento e à comunicação e ao ensino da língua portuguesa para a
evangelização.
A posição da aldeia não permitia o desenvolvimento dos indios, porque era num
valle quasi inaccessivel, onde não havia logar para as roças que teriam de ser
feitas para manter o povo. O missionario procurava um logar proprio para esse
fim e achou-o, distante umas tres leguas. Mas como conseguir a remoção dos
indios? Si a tivesse sugerido immediatamente, elles não a acceitariam. Deu o
exemplo. Começou a derrubar o matto e fazer roça. [...]. Francisco e Beatriz
Collares, eram os novos missionarios. Depois de um anno de preparo, chegaram
ás aldeias. Foram mandados a uma aldeia distante algumas leguas, daquella onde
trabalhava Zacharias. Era tambem um logar quasi inacessível, porque os indios
sentiam necessidade de se defender dos brancos. O irmão Collares, com muita
táctica, conseguiu a transferência dessa aldeia, construindo a sua casa perto da
nova, e abrindo um collegio para os indios. (BRATCHER, 1932, ed. 35, p. 6-7).
Os missionários batistas estabeleciam, assim, seus trabalhadores junto às
populações indígenas no intuito de acompanharem de perto a vida e cultura destes,
segundo eles “[...] a experiencia nos tem ensinado que as principaes instrucções
indispensaveis á vida organica, moral e espiritual, são mais aproveitadas quando
administradas nas vizinhanças das tabas [...]” (BRATCHER, 1933, ed. 10, p. 12). Mary
Karasch nos aponta que a prática de manejar as aldeias indígenas era recorrente desde a
chegada dos Capuchinhos à região norte da Província de Goiás. De acordo com ela, o
deslocamento dos indígenas serviria a diferentes propósitos, conforme os interesses da
época. “Trabalhariam no transporte fluvial ou forneceriam madeira para os novos navios
a vapor” ou, em outro momento, “trabalhariam na derrubada de florestas e no cultivo de
gêneros como café e o açúcar” (KARASCH, 1992, p. 404). Outro exemplo nos aponta
Manuela Carneiro da Cunha:
O aldeamento dos índios obedecia, com efeito, a conveniências várias: não só se
os tirava ou confinava em parcelas de regiões disputadas por frentes pastoris
ou agrícolas, mas se os levava também para onde se achava que seriam úteis.
Podia se assentá-los em rotas fluviais, [...] como as do Tocantins e do Araguaia
ligando o Centro-Oeste ao Pará e ao Maranhão. A aldeia de Pedro Affonso, em
Goiás, para onde foram levados os Krahô servia, por exemplo, a rota do
Tocantins entre Porto Imperial e Carolina. (CARNEIRO DA CUNHA, 1992a, p.
144).
A partir do deslocamento dos indígenas, o trabalho batista seria realizado de
forma intensiva, procurando atingir os três aspectos essenciais das missões segundo a
visão dos missionários protestantes. De acordo com o missionário Jayme de Andrade,
“[...] o nosso trabalho é de natureza triplice: 1) Instrucção agricola; 2) Cultura primaria, e
3) Prégação do Evangelho. Este trabalho está sendo feito com methodo e regularidade. O
indio no campo, na escola e no Reino é a finalidade dos nossos esforços.” (ANDRADE,
1933, ed. 10, p. 12). Nesse aspecto, entendemos que as missões batistas, uma vez mais,
encontravam-se alinhadas com as políticas indigenistas do período. Segundo Lima (1992,
p. 159, 161), as políticas do Serviço de Proteção ao Indio teriam, entre outras, “a intenção
de transformar os índios em pequenos produtores rurais capazes de se auto-
sustentarem”, amiúde, “a transformação do índio em trabalhador nacional”.
Nas publicações do OJB, os missionários procuravam demonstrar aos batistas
brasileiros o andamento das ações que até então haviam sido executadas e as
possibilidades para o trabalho entre os indígenas. Segundo Lewis Mallen Bratcher, as
ações educacionais conduzidas pelos casais Campello e Collares “[...] são os únicos que
existem naquella grande zona, quer para indios, quer para civilizados. [...] A primeira
aula, de manhã, é almoço. Os meninos vêm com fome, e não poderiam estudar nessas
condições. São os únicos meninos nas duas aldeias que recebem nutricção sufficiente.”
(BRATCHER, 1932, ed. 35, p. 7).
Destaca-se ainda a desconfiança encontrada para implantar os trabalhos junto às
aldeias. Segundo a narrativa protestante, essa desconfiança seria oriunda dos maus
tratos sofridos pelos indígenas por parte dos padres católicos. Segundo os dois
missionários, “[...] no passado foram tão maltratados pelos padres, que é muito difficil
para elles compreenderem que os nossos missionarios não farão o mesmo.” (BRATCHER,
1932, ed. 35, p. 6). É importante mencionar que os atos de violência praticados em
aldeamentos tanto civis como religiosos já foram objeto de numerosos estudos históricos
e antropológicos. Como por exemplo, a prática da escravidão temporária: “[...] prevista
por tempo determinado, a ser computado a partir do dia de seu batismo [...] dobrando-os
à agricultura e aos ofícios mecânicos, deveria fazer-lhes perder sua ‘atrocidade’.”
(CARNEIRO DA CUNHA, 1992a, p. 146).
Como citado anteriormente, desde meados do século XIX, capuchinhos e,
posteriormente, dominicanos desenvolviam trabalhos entre populações indígenas na
região. De nosso lado, entendemos a narrativa dos batistas também como parte daquela
disputa entre protestantes e católicos pelo “monopólio da gestão dos bens de salvação”
(BOURDIEU, 2007, p. 39), ou melhor, das disputas pelo campo religioso, como
destacamos em seção anterior. Estas disputas, presentes nas primeiras décadas do
culo XX, eram acirradas pela proibição dos protestantes de desenvolverem ações
missionárias institucionais até o advento da República. No entanto, apenas a liberdade
religiosa não era suficiente para o sucesso dos campos missionários, era necessário
deslegitimar as crenças populares e as práticas de sua grande concorrente pela
hegemonia dos bens de salvação: a Igreja Católica.
Durante a sua estadia entre os indígenas, Lewis Mallen Bratcher presenciou junto
aos missionários Zacharias Campello e Francisco Collares alguns episódios que o
impressionaram. Essas impressões, resultaram em relatos simbolicamente orientados
pela visão de mundo ocidental e cristã do missionário. O encontro entre os missionários
batistas e as populações indígenas do vale do rio Tocantins gerou narrativas
caracterizadas pela tentativa de desconstruir e erradicar um sistema simbólico das
culturas e práticas indígenas encontradas pelos religiosos - em busca de substituí-lo por
outro cristão e protestante, a partir do qual os agentes religiosos condenariam em seus
relatos as crenças e práticas daquelas populações tradicionais. Ao registrar um ritual
realizado pelos indígenas da etnia Krahô, Lewis Mallen Bratcher descreve que os
participantes pareciam um “espirito do outro mundo”:
A dansa começou logo. Um indio a dirigiu cantando em voz monótona e marcou
o passo sacudindo uma cabaça em que havia pequenas pedras. Havia um certo
rithmo na dansa, que era bem interessante. Emquanto olhava estes indios, vi
alguma coisa correndo para mim, saindo do escuro, que parecia um espirito do
outro mundo. Fiquei um tanto espantado porque corria directamente para mim.
Quando chegou, verifiquei que era um indio com vestimenta propria para a
dansa, feita das fibras de folha de palmeiras. Logo vieram mais outros, vestidos
do mesmo modo para entrarem na dansa, acompanhando o ‘leader’.
(BRATCHER, 1932, ed. 38, p. 8).
O missionário descreveria um dos rituais dos indígenas da etnia Krahô como
apenas uma “dansa”. Isso nos remete à metáfora utilizada por Clifford Geertz sobre a
interpretação das culturas, ao diferenciar o movimento de “interpretar” piscadelas
(tiques nervosos), de piscadelas (propositais) e piscadelas (zombarias). Na trilha de
Geertz (1989, p. 34), a falta de compreensão do missionário decorre da tentativa de ver
o que ela é em termos diferentes do seu próprio” incorrendo, assim, em etnocentrismo
“o termo mais severo do antropólogo para o abuso moral”.
Todavia, não podemos afirmar que essa “falta de compreensão” do missionário
fosse apenas ausência de conhecimento sobre a visão de mundo e cultura dos Krahô.
Mais adiante, Lewis Mallen Bratcher registraria que “[...] poucos vieram aquella noite,
porque estavam cansados e não queriam dansar. Esperavamos que os nossos cultos
tivessem alguma coisa tambem com esta falta de vontade” (BRATCHER, 1932, ed. 38, p.
8). Emerge, outra vez, o choque entre as visões de mundo, entre os ethos protestantes e
os das populações nativas da região, evidencia-se a tentativa dos missionários em
esvaziar e erradicar as práticas e crenças pertencentes ao sistema simbólico indígena, a
partir do ethos e da evangelização protestante.
Antes do findar de sua estadia entre as populações Xerente e Krahô no Vale do
Rio Tocantins, os missionários teriam a oportunidade de protagonizar junto aos
indígenas, novamente, um destes choques entre as diferentes visões de mundo. Desta
vez, um ritual fúnebre, ocorrido pela morte de um membro de uma das aldeias Krahô.
Mais uma vez tomando o canto e o choro como referência, o relato do missionário seria
pautado pela sua própria visão de mundo, pelos seus referenciais culturais, através de
um ethos cristão e, por isso, faz com que as palavras do missionário tenham novamente
um caráter estranho, de condenação, à prática presenciada. Segundo Lewis Mallen
Bratcher, “[...] o povo ainda jazia na escravidão de seus costumes e crenças antigos.
Haviamos de comprehender que sómente um pequeno raio de luz havia brilhado nas
trevas dessa escravidão porque no Vento da Noite’ viria a nossos ouvidos a espantosa
prova daquele captiveiro.” (BRATCHER, 1932, ed. 48, p. 7).
Descreve, com alguns detalhes, o ritual fúnebre que seria realizado naquela noite
pelos indígenas Krahô em homenagem ao companheiro citado como “Moreira”,
É costume dos indios Kraós, quando um membro da sua tribu fallece, chamar
todos os indios para participarem do choro que começa logo que o sol
desapparece, e continua por toda a noite. O cadáver é levado com todo o
cuidado e pintado com urucú. Depois de anoitecer elles se acercam delle para
dizer-lhe adeus. Sob a direcção de um experimentado, começam um cantico
comprido, contando as bellas qualidades e os grandes feitos do morto. Naquella
hora esquecem-se das suas más qualidades e lembram-se só das boas. Todos os
presentes se unem no cantico que, pouco a pouco, cresce em volume até que o
povo canta em gritaria medonha. Um a um, os amigos se despedem do morto
que havia saído para as trévas do outro mundo, do qual elles têm pouco
conhecimento ou comprehensão. Elles têm uma palavra para a ‘alma’, porém é a
mesma para retrato, por isso, tem significação muito vaga. A pessoa que está
dizendo adeus, toma o cadáver nos braços, balança-o cuidadosamente,
beijando-o nos lábios. Dizem que choram porque nunca mais o encontrarão,
nem neste mundo nem no mundo para o qual elle ha partido. Elles amam como
todos os demais seres humanos, e toda a agonia de uma separação eterna, e
tristeza de um coração descrente, entram no seu adeus. Para elles é realmente
para sempre. Nunca mais o verão outra vez e, por isso, toda a agonia de um
coração quebrantado entra no seu grito de desespero. É o som mais triste que já
ouviram os meus ouvidos. (BRATCHER, 1932, ed. 48, p. 8).
Mais à frente, dá-se ênfase aos motivos que o teriam levado à morte, num ato de
condenação, novamente, da cultura indígena, através da crítica velada aos
conhecimentos da floresta:
Eu conheci Moreira, e sabia que elle estava muito doente, por isso não fiquei
muito surprehendido com a noticia da sua morte. Algum tempo antes elle havia
fumado a semente de uma planta que tem as mesmas propriedades do ópio mas,
ao mesmo tempo, traz uma loucura que faz o indio fugir dos seus semelhantes e
andar sozinho nos mattos. O nosso missionario havia trabalhado muito para
banir este costume, e estava quasi abandonado. Moreira desobedecera á lei da
aldeia e agora pagava com a sua propria vida, porque nunca se restabeleceu dos
efeitos da planta, e tornou-se uma presa facil da febre. (BRATCHER, 1932, ed.
48, p. 7).
A interpretação dos missionários sobre as expressões rituais próprias das
culturas das populações indígenas se observa na condenação destas práticas, de acordo
com a visão de mundo cristã ocidental incrustada em seus olhares. A descrição
apresentada por eles segue perspectivas restritamente teológicas sem se atentar para o
caráter culturalmente diverso dos eventos que presenciavam.
Nestes trechos, podemos encontrar também alguns elementos que demonstram
os resultados do trabalho de descaracterização dos missionários batistas situados ali
desde 1925. Como citado acima, o missionário encarregado dos trabalhos junto aos
Krahô, Zacharias Campello, “[...] havia trabalhado muito para banir este costume, e
estava quasi abandonado. Moreira desobedecera á lei da aldeia e agora pagava com a sua
propria vida, porque nunca se restabeleceu dos efeitos da planta, e tornou-se uma presa
facil da febre”. (BRATCHER, 1932, ed. 48, p. 7). Por esta ocasião, os missionários
manifestariam, também, sua preocupação acerca do retorno dos indígenas aos seus
costumes tradicionais de sepultamento. Segundo Lewis Mallen Bratcher:
Zacharias esperava ansioso a sua volta, porque receiava que o indio fosse
enterrado na sua propria casa conforme o costume da aldeia, antes da sua
vinda. Depois de grandes esforços conseguira convencê-los de que deviam
abandonar esse costume, mas receava que recahissem na reprovavel pratica,
uma vez que estava doente e não poderia ir pessoalmente á aldeia (BRATCHER,
1932, ed. 48, p. 8).
Todavia, os indígenas não se encontravam passivos diante das investidas
protestantes. Neste sentido, é interessante o relato de uma reunião onde os chefes das
aldeias Krahô reivindicavam junto ao Secretário da JMN a responsabilidade pelos campos
missionários entre o seu povo, demonstrando o desejo dos indígenas de que as relações
deveriam ser horizontalizadas:
Chiquinho respondeu que agora era crente e, por isso, devia ter consideração
especial; que elle devia ser missionario ao seu povo e sustentado por nós.
Estava certo de que elle poderia fazer o trabalho melhor que os nossos
missionarios. Expliquei com toda a paciencia, mas elle tornou-se cada vez mais
exaltado. Os indios, todos armados, enchiam e cercavam a casa para ouvir a
discussão. Estava orando porque comprehendí que o resultado daquella
conferencia seria da maior importancia para os nossos missionarios e o nosso
trabalho. Um passo em falso traria os maiores prejuisos. (BRATCHER, 1932, ed.
38, p. 9).
Neste sentido, Lewis Mallen Bratcher encontrou uma situação inesperada. Como
pudemos verificar ao longo de todo o texto os missionários interpretariam os sistemas
simbólicos, as práticas e as expressões culturais das populações indígenas, a partir de
sua própria visão de mundo, buscando sempre agir no sentido de descaracterizá-las e
substituí-las através do ethos e da evangelização protestante. A partir desta estratégia o
missionário não pode encontrar um desfecho favorável. Este, por sua vez, só seria
possível a partir dos próprios indígenas, ou seja, a partir daquelas práticas e culturas que
os missionários buscavam descaracterizar:
Emquanto orava, a minha mente voltou-se para o velho chefe, que ouvia em
silencio todo dia. Assim, foi com a maior alegria que ouví a sua voz pedindo a
palavra. O sub-chefe respondeu com desdem, dizendo que elle era muito velho,
e que o que elle dissesse seria de mui pouca importancia. Elle respondeu-lhe
com toda a dignidade: ‘Deixa o velho falar. Elle tem palavras de sabedoria’. ‘Sim’,
respondi: ‘deixa o velho falar. Elle é muito sábio e nos trará palavras de
sabedoria. Nós, moços, muitas vezes falamos tolices. Deixa o velho falar.
Ouviremos as suas palavras’. Com grande dignidade e com palavras escolhidas
com cuidado, elle começou a fazer um resumo da situação. Ao ouvir a sua
sugestão, uma nova esperança nasceu em meu coração. A solução que eu não
podia achar mais que o velho chefe trouxe, era tão simples que fiquei admirado
da minha falta de comprehensão. Emquanto elle falava, o tom cadente acalmou
os indios, e quando terminou, sabia que a victoria estava alcançada e que o
perigo para o nosso trabalho passára. (BRATCHER, 1932, ed. 38, p. 9).
Este relato corrobora, pois, a assertiva à qual nos chama atenção Manuela
Carneiro da Cunha (1992b, p. 18-19), de que as populações indígenas não são apenas
“vítimas de uma fatalidade, mas agentes de seu destino”, demonstra “a percepção de uma
política e de uma consciência histórica em que os índios são sujeitos e o apenas
vítimas”, em suma, são agentes de sua própria história.
Considerações Finais
No decorrer deste artigo procuramos oferecer descrições e reflexões acerca da
evangelização e das práticas de descaracterização, realmente efetuadas, junto às
populações tradicionais do vale do rio Tocantins, especialmente entre as etnias indígenas
Xerente e Krahô, através dos relatos publicados em O Jornal Batista entre o final da
década de 1920 e o início da década de 1930 pelo missionário norte americano Lewis
Mallen Bratcher. Tais reflexões, partiram da problematização das noções de “religião” e
“civilização” como um produto cultural característico de um sistema de valores
ocidental, presente na formação da visão de mundo dos missionários protestantes, mas,
como nos apontam as perspectivas teóricas e metodológicas da escola italiana de
história das religiões, alheias e, impróprias, para investigar e compreender horizontes
culturais outros, que não aqueles pensados no interior do percurso cristão ocidental
(AGNOLIN, 2013; BELLOTTI, 2011; MASSENZIO, 2005).
Ao abordar as fontes, evidenciamos que os protestantes, a partir do contexto
histórico da Primeira República, atuavam no interior num estreito combate com os
agentes religiosos católicos, disputando maiores espaços no interior do campo religioso
brasileiro. Para o sociológo Pierre Bourdieu (2007, p. 58-59), o campo religioso funciona
como um “mercado de bens de salvação”, onde “as diversas instâncias em competição
pela legitimidade religiosa” disputam “o monopólio dos instrumentos de salvação”. Neste
sentido, demonstramos como o contexto histórico de mudanças políticas institucionais
acirrou estas disputas, como a separação entre Igreja e Estado ocorrida com o advento
da ordem republicana que proporcionou aos protestantes a liberdade religiosa e de culto
(dentre eles a denominação batista), e a reorganização do aparato institucional católico
com a expansão da presença de arquidioceses, dioceses e prelazias pelo interior. Assim,
a noção de campo religioso nos auxiliou na compreensão das intenções dos protestantes
em silenciar, condenar e deslegitimar as crenças e práticas católicas enraizadas nas
populações tradicionais do vale do rio Tocantins, sempre incorporando em suas
narrativas o aspecto “negativo” destas, através de termos como “ignorância”,
“superstição” “atraso” e “corrupção” frente às suas próprias práticas, descritas como
“pharoes [...] projectando os seus esforços para o coração do Brasil, ou digamos, para o
Brasil do futuro” (BRATCHER, 1936, ed. 40, p. 12).
A partir deste percurso, procurou-se então compreender a evangelização e as
práticas de descaracterização dos missionários batistas junto as etnias indígenas
Xerente e Krasituadas no vale do rio Tocantins. Como descrito no artigo, a partir da
primeira viagem de Lewis Mallen Bratcher em 1925, a Junta de Missões Nacionais havia
estabelecido trabalhos nesta região e mantinha os missionários Zacharias Campello e
Francisco e Beatriz Collares entre estas populações indígenas. Assim, através dos artigos
publicados no OJB pudemos reconstituir a dinâmica pela qual se deu a evangelização
batista e perceber, através da ótica dos próprios religiosos, algumas das estratégias
utilizadas e como os missionários trabalhariam para descaracterizar as práticas e os
costumes das populações indígenas.
Esta atitude de descaracterização, como procuramos demonstrar, esteve alinhada
às concepções “civilizatórias” do Estado brasileiro naquele período, como abordado por
Antônio Carlos de Souza Lima (1992). Segundo o autor, as políticas do Serviço de
Proteção ao Indio teriam, entre outras coisas, “a intenção de transformar os índios em
pequenos produtores rurais capazes de se auto-sustentarem”, amiúde, “a transformação
do índio em trabalhador nacional” (LIMA, 1992, p. 159-161). Por sua vez, os missionários
batistas orientavam seus trabalhos a partir de três pilares: “[...] o nosso trabalho é de
natureza triplice: 1) Instrucção agricola; 2) Cultura primaria, e 3) Prégação do Evangelho.
Este trabalho está sendo feito com methodo e regularidade. O indio no campo, na escola
e no Reino é a finalidade dos nossos esforços.” (ANDRADE, 1933, ed. 10, p. 12).
Desta forma, o trabalho procurou apontar que os batistas, dentro do contexto
histórico da Primeira República, foram agentes integrantes de um processo que procurou
incorporar as sociedades indígenas à “civilização” através da evangelização, utilizando-
se da estratégia de descaracterizar suas práticas e expressões culturais, procurando “a
transformação do indio em trabalhador nacional” ou, nas palavras dos próprios
missionários, “o indio no campo, na escola e no Reino [...]” (ANDRADE, 1933, ed. 10, p.
12). Assim, conforme indicado pelo trabalho de Lília Schwarcz no início deste artigo,
historicamente “[...] o estado tem se preocupado em trazer as sociedades indígenas para
a civilização, mas buscando descaracterizá-las” (SCHWARCZ, 2019, p. 171). Naquele
contexto, como apontamos, houve um alinhamento entre as práticas de evangelização e
descaracterização dos missionários protestantes à ideia de “civilização” do estado
brasileiro.
Atualmente, retomando as reflexões de Elizete da Silva (2015, p. 15), “[...] os
fundamentalismos, com visões intolerantes frente às diferentes concepções religiosas e
alimentados por projetos políticos hegemônicos [...]” tem acirrado as disputas pelo
campo religioso brasileiro e determinado o avanço de grupos evangélicos na busca de
efetivar estas práticas de descaracterização em áreas habitadas por populações
tradicionais.
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