Entrevista com Profa. Dra. Marilia Vieira Soares
Departamento de Artes Corporais, IA, Unicamp
Jorge Lúzio
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Embora já esteja, em vários países, como uma área de grande interesse
investigativo, as artes performáticas do Oriente, enquanto laboratório de práticas,
imersão e produção de conhecimento do vastíssimo espectro das culturas asiáticas,
constitui uma experiência relativamente recente no Brasil. Os estudos sobre as artes
cênicas asiáticas, que incluem inúmeras linguagens e técnicas, com ênfase na Dança, na
Dramaturgia e nas Artes Marciais, não se limitam às análises de formas e modelos. A
investigação histórica, os princípios filosóficos, as correlações multidisciplinares, as
perspectivas de conceitos não-ocidentais sobre corporeidades e corporalidades, o
caráter estético, a dimensão sociológica, as abordagens desenvolvidas na antropologia
do corpo, os signos e os gestos, enfim, estão entre os incontáveis diálogos que se
estabelecem entre as artes cênicas asiáticas e os pesquisadores e artistas brasileiros, em
seus vínculos com a história da imigração e com as comunidades asiáticas brasileiras, ou
através de contatos, formação ou vivência nos países, cujas culturas são estudadas a
partir das artes da cena.
Com uma longa experiência, como bailarina e dançarina de Dança Clássica
Indiana no estilo Odissi, e nos últimos 5 anos pesquisando a dança-drama balinesa, a
Profa. Dra. Marília Vieira Soares é uma das precursoras no Brasil, no trabalho com as
artes corporais asiáticas no âmbito acadêmico. Educadora com formação em Dança,
Marília Soares, atualmente professora emérita do DACO UNICAMP, acompanhou a
trajetória de alunos e alunas, artistas e pesquisadores brasileiros em seus estudos in loco
nas viagens à Ásia e trouxe professores e artistas orientais, em sua maioria artistas das
danças clássicas da Índia, aproximando culturas, promovendo o intercâmbio de um
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Doutor em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo / PUC-SP, mestrado em
História pela mesma instituição e estágio doutoral na Universidade de Évora - Portugal (Bolsista CAPES
Sanduíche). Desenvolve projeto de Pós-doc interdisciplinar em História da Ásia, com trabalho em
andamento na Universidade Federal de São Paulo, sobre estudos em cultura e representação nas relações
étnico-raciais. E-mail: jorgeluzio@hotmail.com
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aprendizado mútuo e estabelecendo um espaço para a interculturalidade Oriente
Brasil, entre redescobertas e desconstrução de estigmas e distâncias.
O testemunho e o legado profissional da Profa. Dra. Marília Soares é um registro
valioso de outras perspectivas e possibilidades, na superação dos orientalismos, em
novos vieses para os estudos asiáticos, em formas inovadoras de diálogos com o Oriente.
Dr. Jorge Lúzio: As temáticas das danças clássicas da Índia, em particular o estilo
Odissi, constituem uma das suas áreas de atuação nos estudos sobre o Oriente. Qual foi
a experiência que lhe despertou para estes estudos?
Dra. Marília Vieira Soares: Meu interesse pela Índia vem dos primórdios da minha
infância, não sei dizer de onde veio... Aos 15 anos entrei para uma escola de danças
folclóricas que tentava se estabelecer em São Paulo sob direção da Profa. Nilza Gomes
Vieira. Além de bailarina clássica de formação, ela dominava as danças folclóricas
mundiais e era praticante de Yoga, arte na qual fui introduzida naquele momento, e
também me deu uma introdução à dança indiana com o trabalho dos mudras e alguns
passos essenciais. Minha experiência com a dança indiana ficou por aí mas o Yoga
continuo praticando até hoje. Tive um vislumbre sobre o uso das mãos, da cabeça e dos
olhos. Na década de 70 aprendi a Meditação Transcendental de Maharishi Mahesh Yogi.
A escola não teve continuidade, e minha vida de profissional em dança continuou,
mas sem tocar no assunto do Yoga. Imagine na década de 60 uma jovem dizer que
praticava Yoga!!! Era blasfêmia para a Dona Halina Biernacka, minha mestra de balé, e
entre os amigos, imaginavam que eu iria me tornar um ser esquelético sentada numa
cama de pregos… e vinha muito deboche. Aprendi a me calar. Estudava balé. Aí tinha um
vazio. Os balés de repertório contavam estórias; isto exigia interpretação. Giselle
enlouqueceu. Como dançar uma louca? Não tinha instrumentos. Minha experiência com
o teatro girava em torno do mesmo problema: a expressividade vinha de ensaio, erro e
acerto, mas sem instrumentalização que desse a dose certa de energia a cada situação.
Tudo muito intuitivo. Quando se acertava, não sabia bem porq. Aí vinha na lembrança
a dança indiana, mas naquele tempo não havia professores desta dança no Brasil.
Dancei muito, dei muita aula antes de cursar Licenciatura em Dança na UFBA-
1985 (já tinha feito o curso de História na PUC-Campinas em 1973). Voltei a São Paulo,
ingressei no mestrado da ECA-USP sob orientação do Prof. Dr. Miroel Silveira, criador
do Método Energético de Direção Teatral que partia do princípio dos chakras como
fonte de movimento expressivo. Meu trabalho seria sistematizar uma técnica corporal
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que possibilitasse a aplicação mais efetiva do método de direção. Infelizmente a
passagem do Prof. Miroel impediu meu mestrado no tema que acabou por ser a tese de
doutorado defendida na FE-Unicamp em 2000 (Técnica Energética: Fundamentos
Corporais de Expressão e Movimento Criativo (TE) libdigi.unicamp.br
Em 1995, portanto com a pesquisa da TE já iniciada, tomei contato com a Profa.
Silvana Duarte que me introduziu na técnica do Odissi e no universo filosófico da dança
indiana. Desde então a prática diária e a pesquisa deslancharam juntas, e a TE tornou-se
um estudo da “tradução do sânscrito para o português” dos princípios de expressividade
corporal do Natyashastra o livro das artes cênicas indianas considerado o quinto
Veda, ou seja um tratado de sabedoria sobre as artes cênicas, cujas bases fundamentais
foram retiradas dos quatro livros que o precederam. Pretendo lançar uma nova edição
atualizada desta técnica depois de minha próxima viagem à Ásia.
Dr. Jorge Lúzio: O que se pode destacar, nas últimas décadas, sobre a história das artes
corporais orientais no Brasil? Qual a análise que pode ser feita sobre o surgimento
deste campo de investigação?
Dra. Marília Vieira Soares: Acredito que foi a globalização que aproximou
comercialmente e culturalmente o Brasil do Oriente no período mais recente. Mas
lembremo-nos que as imigrações japonesa e chinesa foram anteriores, e que deixaram
uma grande influência nos locais onde se acomodaram os imigrantes, e a divulgação das
artes marciais foram feitas pelo cinema, principalmente. As artes cênicas orientais não
entraram neste circuito. Yoga era coisa de loucos excêntricos. Dança oriental era restrita
às comunidades de imigrantes. E veja bem, durante muito tempo, nos setores médios da
sociedade onde houve uma grande aceitação dessas práticas, regia a lei: “meninos fazem
artes marciais e meninas fazem balé para ter postura e graciosidade...”, ser bailarina,
nem pensar! As pioneiras neste setor sofreram grandes ondas de preconceitos.
Acredito que a criação de cursos universitários de dança foi um ponto de partida
importante para o surgimento da pesquisa em dança e, consequentemente, da des-
hierarquização do balé como arte máxima da dança e técnica básica para todas as outras
como era até então. O curso da Bahia (década de 50) por exemplo, é todo consolidado
em base da dança moderna, sendo o balé um acesrio importante, mas não o principal.
Foi o primeiro no Brasil; o segundo criado na Unicamp deu impulso à pesquisa de danças
brasileiras e, portanto, à pesquisa em dança de forma que as técnicas corporais do
Oriente eram uma disciplina de formação do intérprete. Assim aconteceu uma abertura
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na concepção de dança que se espalhou pelo Brasil, em outros estados e universidades
que possuem uma abertura para aceitação de danças orientais. A conquista de
respeitabilidade acadêmica vai se construindo e isso reverbera na sociedade em geral.
Vemos isso claramente no panorama da dança em Campinas, por exemplo, depois da
abertura do curso na Unicamp, e é notória a disponibilidade corporal dos alunos que
saem do curso; nossos ‘netos’, que vêm fazer a faculdade!
Sabemos da importância das pesquisadoras e desbravadoras que atuam
independentemente no mercado, mas sublinhamos as restrições que este meio possui.
Na universidade, mesmo quem não se interessa pelo assunto, ouve falar dele, e é uma
clientela de 25 a 30 alunos que entram anualmente. Além disso, o acesso às instituições
de fomento são o que impulsiona as pesquisas e isso é restrito ao meio acadêmico. Os
Encontros Internacionais de Pesquisadores em Dança Indiana e Artes Corporais do
Oriente está em sua quinta edição e é financiado pela Capes, CNPq e Fapesp, além do
SESI e SESC. É um evento itinerante com objetivo de levar as técnicas orientais onde
ainda não se conhece muito sempre com a colaboração de pesquisadores independentes.
O último foi em Maceió, e o próximo será em Salvador. A pluralidade de danças e estilos,
assim como das artes marciais como o kallariyppayatu estão sendo divulgadas através
destes festivais. As danças-drama balinesas também fazem parte do Grupo Pallavi
CNPq do qual sou a dirigente. As informações que tínhamos sobre elas e sua importância
estavam nos textos de Antonin Artaud, mas não tínhamos a menor idéia do que era até
ter contato direto com as fontes. Além disso, como acadêmicos temos obrigação de
publicar artigos, livros, ensaios, dissertações e teses. Tudo isso é um meio de publicação
que valida muito a seriedade das pesquisas, divulgando-as.
Dr. Jorge Lúzio: De que modo as artes corporais do Oriente podem contribuir com a
formação de artistas brasileiros, especialmente da Dança, do Teatro e da Música,
considerando serem matrizes culturais tão distintas e paradoxalmente tão próximas...?
Dra. Marília Vieira Soares: Um ítem que me fascinava muito era a proximidade com o
sagrado. A presença do mito nas coreografias trazia alguma coisa de mágico, que levava
a um estado alterado de consciência. O Oriente não sofreu a ruptura que tivemos na
formação de nossas artes cênicas. No Natyashastra, natya tem o sentido de artes
cênicas, mas inclui a música e a poesia e foi uma obra doada pelo deus Brahma, na
função de acalmar os ânimos da humanidade descontrolada daquele momento. Este é o
primeiro capítulo da obra, que explica sua origem. Ela veio da mão do deus criador, assim
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como a dança grega foi ensinada por Gaia aos guerreiros para que com seu barulho de
bater os escudos, Cronos fosse impedido de ouvir o choro de Zeus, e assim o bebê foi
salvo da fúria do pai destruidor.
O teatro e a dança que temos foi criado dentro do âmbito profano das cortes
europeias desde a Renascença, modelo da disputa com o poder secular da Igreja, usando
a mitologia greco-romana distorcida pelo pensamento cristão, na qual os deuses e
figuras mitológicas eram simples alegorias para retratar a sociabilidade aristocrática em
seu caminho para o Absolutismo. O balé clássico é o símbolo do Estado Moderno, tendo
como grande modelo o Rei Luís XIV. E aí o teatro, a dança, a música e a poesia tomaram
seus rumos independentes.
Esta busca por algo que está faltando aparece principalmente no pós-romantismo,
quando as pesquisas acabaram por tornar a distância maior ainda entre as linguagens
artísticas. A literatura tornou-se Realista, a poesia Parnasiana, a música e a pintura
Impressionista, a ópera Verista… e depois vieram o Expressionismo, Futurismo, Cubismo,
etc. A dança quase desaparece no teatro da Ópera de Paris, submissa à ópera. A obra de
arte total: É o sonho de Richard Wagner. Está lá no Natyashsastra.
Este sagrado pode ser até um termo rejeitado, mas a busca por ‘tornar visível o
invisível’ de Artaud, as intensas pesquisas teatrais do século XX, decorrente do caminho
trilhado por François Delsarte, levaram os pesquisadores para o Oriente. Delsarte
exerceu uma grande influência na Europa da segunda metade do século XIX com seu
estudo da expressividade humana, que resultou na criação da dança moderna nos
Estados Unidos, via seu aluno Steele MacKaye. Sua teoria tem três princípios básicos:
corpo-alma-espírito, de onde nasciam os movimentos expressivos. Pelos desenhos
deixados em seus parcos escritos podemos ver que ele pertencia a Ordem Rosa Cruz.
O
estudo sobre Delsarte foi uma base teórica da construção da TE, e acredito que esta
busca pelo invisível possa estar nascnicas orientais. Concretamente falando, as
técnicas indianas e balinesas trabalham minuciosamente a cintura escapular, ombros,
braços, mãos, pescoço, cabeça e olhos que são as fontes da expressividade.
Dr. Jorge Lúzio: Como pensar os conceitos de Cultura e de Representação, para se
compreender e dialogar com as artes corporais do Oriente?
Dra. Marília Vieira Soares: Culturas têm muito em comum. A mitologia é um desses
pontos que aproximam as semelhanças e diferenças, por exemplo; o mito do dilúvio es
presente em 164 culturas bem distintas e afastadas umas das outras, inclusive nossos
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índios guaranis. E assim muitos outros exemplos, como a oitava encarnação de Vishnu
Balarama que une dois rios para salvar a humanidade, como teria sido um dos
trabalhos de Hércules; na primeira encarnação Vishnu ensina Manu a construir um barco
no qual deve colocar sementes de todos os vegetais, casais de todos os animais, inclusive
humanos para se salvar do grande dilúvio que viria. Aliás, as dez encarnações de Vishnu
despertam uma grande discussão por ser muito semelhante a teoria evolucionista de
Darwin: peixe, tartaruga, javali, meio-homem/meio-leão, anão, guerreiro, príncipe, herói
(Balarama), Buda (encarnação presente) e Kalki aquele está por vir... Messias?!
Quando
nos aproximamos de outras culturas de coração aberto encontramos muitas
semelhanças, e todas estas representações estão formatadas em gestos e símbolos em
coreografias e poesias, que cultivam a simpatia de quem pratica. A presença da mitologia
na prática da dança sempre desperta interesse e curiosidade através de uma
identificação dos pontos onde os mitos se tocam.
Dr. Jorge Lúzio: É possível dizer que as artes corporais do Oriente estão consolidadas
no Brasil?
Dra. Marília Vieira Soares: Artes corporais do Oriente é um universo muito grande. Não
sei se é possível enumerá-las, mas os contatos que estão se construindo levarão ainda
muito tempo para criarem raízes. As artes marciais tem mais tempo de implantação e não
implicam em relações com a religiosidade como as artes cênicas, o que torna o terreno
mais acessível. O que temos no momento são focos de estudos nas universidades, e
alguns pesquisadores independentes, mas tendo em vista que tudo isto ainda é muito
recente, temos que ter paciência para que as sementes brotem, se desenvolvam e gerem
frutos.
Em uma visita a nossa universidade nos anos 90, a Ph.D. Parwati Dutta da MGM
University Índia, declarou que as artes indianas estão sendo melhor preservadas fora
da Índia, referindo-se a ocidentalização que está ocorrendo desde os anos 70/80, numa
tentativa de elogiar os trabalhos feitos com as danças no Brasil e nos Estado Unidos, cuja
fidelidade ela achou incrível. Ou seja, no Oriente as coisas também estão se modificando,
e existe muita discussão sobre orientalismo, multiculturalismo, etc, que irão enriquecer
as reflexões e tornar o fazer artístico mais atualizado. Tudo está mudando.