LODOS, Claudinei
*
RESUMO: Promises e NEY são produções
cinematográficas que destacam a questão da
Palestina através do olhar de dois judeus. Em
Promises, documentário estadunidense, Goldberg
entrevista crianças árabes e judias e coloca em
pauta o problema do terrorismo. Em NEY,
documentário argentino, Avruj fala sobre o
sionismo a partir de tradições judaicas, mas não o
associa à política de expropriação de terras na
Palestina. Como judeus seculares, Avruj e
Goldberg debatem os problemas em torno do
conflito israelo-palestino e permitem que suas
identidades sejam colocadas à prova.
PALAVRAS-CHAVE: Palestina; documentário;
Israel; identidade.
ABSTRACT: Promises and NEY are film
productions that highlight the issue of Palestine
through the view of two Jewish persons. In
Promises, an American documentary, Goldberg
interviews Arabian and Jewish children, and
brings the problem of terrorism to debate. In
NEY, an Argentinian documentary, Avruj talks
about the Zionism based on its Jewish traditions,
but does not associate it with a policy of land
expropriation in Palestine. As secular Jews, Avruj
and Goldberg debate the problems surrounding
the Israeli-Palestinian conflict and allow their
identities to be put to the test.
KEYWORDS: Palestine; documentary; Israel;
identity.
Recebido em: 14/09/2019
Aprovado em: 07/02/2020
* Mestre em História pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Guarulhos-SP. Professor da Rede
Pública do Estado de São Paulo. E-mail: ney_lodos@hotmail.com
Introdução
Os documentários PROMISES (2001) e NEY: Nosotros, Ellos y Yo (2015)
contribuem com a discussão acerca do conflito israelo-palestino, especialmente no que
concerne às questões cujos desdobramentos aconteceram a partir da década de 1990. A
estreita relação entre ambas as produções e a questão da Palestina relaciona-se ao fato
de que os diretores são judeus e partilham de questões comuns no tocante à construção
de suas identidades. Nas duas produções cinematográficas o documentarista vai a
campo; modo de representação conhecido como participativo
1
. Em Promises, as imagens
captadas nas terras israelenses e palestinas são do período em que vigorou o processo
de paz iniciado com o acordo de Oslo
2
. em NEY, a maior parte das imagens refere-se
ao fim desse período, quando eclodiu a segunda Intifada
3
. Conforme os documentários,
Goldberg (judeu americano) e Avruj (judeu argentino) viveram fora da região do conflito,
mas o problema enfrentado por árabes e judeus naquela região tornou-se parte deles
também. É válido ressaltar que a produção de filmes documentários pode expressar os
“valores e crenças” de uma determinada comunidade através da construção ou
contestação das questões relacionadas ao pertencimento dessa comunidade no que se
refere ao tempo e ao espaço (NICHOLS, 2012, p.181-182).
O cinema se tornou, sem dúvida, um meio importante para o desenvolvimento de
estudos concernentes aos conflitos do Oriente Médio, especialmente para pesquisadores
que se encontram distantes geograficamente da região. O filme tem o potencial de
atravessar fronteiras, considerando sua difusão através dos festivais, além de agregar
diferentes significados por meio dos seus dispositivos referentes às imagens e sons. O
1
Segundo Nichols, nesse modo de representação os documentaristas “vivem entre os outros e falam de
sua experiência ou representam o que experimentaram”, além de reduzirem “a importância da persuasão,
para nos dar a sensação de como é estar em uma determinada situação, mas sem a noção do que é, para o
cineasta, estar lá também” (NICHOLS, 2012, p. 153).
2
O “acordo de Oslo” marcou o início do processo de paz e o fim da primeira Intifada (1987- 1993). No dia 11
de fevereiro de 1993, na cidade de Oslo, Noruega, a liderança árabe palestina aceitou a proposta inicial
para o estabelecimento de um acordo. O que ficou estabelecido para Israel foi a retirada das suas forças
militares deixando o controle dos territórios adquiridos em 1967 e que Israel acabasse com a expansão
dos assentamentos, além do reconhecimento da autoridade palestina. os palestinos deveriam renunciar
ao terrorismo praticado durante o período de guerra e reconhecer o direito à existência do Estado de
Israel (LODOS, 2019, p. 220).
3
A segunda Intifada teve início em setembro de 2000, após uma visita de Ariel Sharon à Esplanada das
Mesquitas. No ano 2000, devido às disputas políticas, o primeiro ministro de Israel, Ehud Barak, procurou
retomar o acordo que ficou paralisado após o assassinato de Isaac Rabin, primeiro ministro de Israel, em
1995. Arafat não assinou o acordo de Camp David e, segundo Pappé, por conta disso os Estados Unidos e
Israel “o castigaram de imediato, apressando em apresentá-lo como um belicista”. O autor afirma que isso
foi uma humilhação e que, somada à visita do líder israelense à Esplanada das Mesquitas, desencadeou a
segunda Intifada (PAPPÉ, 2016, p. 278).
filme, a partir da sua voz
4
, pode desvelar questões no tocante aos problemas sociais
debatidos nele, considerando a identificação das “ambiguidades, incertezas e tensões”,
além da perspectiva polissêmica da imagem, pois “um filme pode abrigar leituras opostas
acerca de um determinado fato, fazendo desta tensão um dado intrínseco à sua própria
estrutura interna” (MORETTIN, 2007, p. 42-64).
Neste texto procuramos considerar as aproximações das duas produções
cinematográficas a partir das especificidades do gênero documentário tendo em vista a
construção do discurso sobre o conflito israelo-palestino segundo os olhares dos dois
diretores. Logo, ressaltamos a representação da questão da Palestina sem deixar de lado
as tensões presentes numa sociedade segregada e com longo histórico de guerra. Nos
dois documentários, israelenses e palestinos estão representados pelos judeus de fora
(Goldberg e Avruj), mas que também se fazem de dentro quando atravessam as
fronteiras e entram em contado com eles.
Promises (2001): A questão do terrorismo no documentário estadunidense
Promises é um documentário que representa a questão da Palestina a partir dos
fatos históricos ocorridos na região desde 1948, com a criação do Estado de Israel. A
equipe de produção do documentário esteve nas terras israelenses e palestinas na
década de 1990 - período marcado pelo processo de paz - e captou imagens e
depoimentos tanto de crianças árabes quanto judias residentes em Jerusalém e nas
proximidades. Goldberg, um dos diretores do documentário, foi jornalista durante a
primeira Intifada, além de trabalhar em organizações engajando-se em propostas que
visavam a solução de conflitos.
Nos primeiros minutos, o documentário exibe imagens da paisagem da cidade de
Jerusalém e algumas crianças da localidade. Nos próximos planos explora um dos
assuntos mais espinhosos que envolvem os conflitos no Oriente Médio: o terrorismo. A
cena se passa em um ônibus, durante um depoimento de Yarko.
teve muitos ataques terroristas na linha 18. As pessoas evitam a linha 18. É
besteira! Posso pegar a 22, que devia ser mais segura e mesmo assim posso
explodir. Quando subo num ônibus tenho medo e olho se pessoas estranhas.
Se eu vejo um cara muito estranho eu fico de olho. Tento pular do ônibus antes
dele. Aí fico vendo se o ônibus explode. Yarko Solan (PROMISES, 2001).
4
Segundo Nichols, o documentário pode ser apropriado como uma representação do mundo, não uma
reprodução da realidade. É, portanto, uma “visão singular do mundo”. Nichols explicita isso quando se
refere à voz do documentário. Na perspectiva do autor, a voz do documentário - pela força do seu
argumento na defesa de uma causa -, é capaz de persuadir ou convencer (NICHOLS, 2005, p. 73-76).
A prática de ações terroristas pode ser compreendida como parte de um
movimento de resistência dos árabes palestinos frente à ocupação israelense
5
. Na
sequência de planos exibida durante o depoimento de Yarko, há uma montagem da cena
com tomadas diferenciadas. A sequência sugere que Yarko olha para um árabe, “suspeito
terrorista”, para corroborar a dramaticidade do seu discurso. É notório que esse árabe
está em outro ônibus; ou seja, nessa sequência há um lapso” na montagem, facilmente
visto pelo espectador ao se atentar para as pessoas que estão no ônibus e para a posição
da tomada da imagem.
A montagem, contudo, não deixa de revelar a fragilidade das pessoas que
transitam pela cidade de Jerusalém. O medo desses indivíduos é instrumentalizado para
legitimar o abuso das forças militares israelenses. Em uma sequência posterior - quando
as crianças visitam Deheishe, um campo de refugiados -, enquanto eles passam por um
posto de fiscalização, Yarko afirma: “Não é justo, aqui é terra deles. Por que eles têm que
ser revistados?” Na sequência, a mãe dele diz: “É a terra deles, mas não queremos que
joguem bombas na gente. É complicado” (PROMISSES, 2001).
O terrorismo faz parte do cotidiano dessa sociedade; seja no imaginário, nas
pichações dos muros ou mesmo na presença do exército israelense. Segundo Morris, a
Autoridade Palestina diminuiu os ataques nesse período porque a política de Netanyahu
paralisou o processo de paz (MORRIS, 2014, p. 167). Esse apontamento indica que as
diferentes disputas internas, de ambas as partes, impediam a solução do conflito.
Durante o processo de paz, na década de 1990, inúmeros esforços foram
realizados com o objetivo de arrefecer as práticas terroristas tanto no território
israelense quanto no palestino. No entanto, os grupos extremistas que adotaram
posicionamentos mais radicais, dos dois lados, se opuseram à solução que direcionava a
formação de dois Estados. Netanyahu havia condenado o processo de paz antes de
assumir o governo de Israel. Segundo Cohn-Shrebok, enquanto Rabin e Arafat
negociavam sobre os assuntos pertinentes ao acordo - tais como cooperação econômica,
compartilhamento de água e o problema dos refugiados -, violentos ataques foram
desferidos contra a população. O autor afirma que “os esforços para renovar o processo
de paz inflamaram os ânimos dos membros do Hamas e da Jihad Islâmica, os quais se
5
Após 1948, com o estabelecimento do Estado de Israel na Palestina, os sionistas ocuparam muitas terras
na região de forma que os árabes foram expropriados de suas casas. Em 1967, por consequência da guerra,
Israel ocupou a Cisjordânia, a Faixa de Gaza e Jerusalém Oriental. Segundo Said, depois desse fato, “o
sionismo israelense passou a difundir-se a partir da esotérica política de tratar os palestinos como se não
estivessem [...]. A busca de paz pelos palestinos adquiriu um significado concreto: acabar com a
ocupação israelense” (SAID, 2012, p.143).
opunham veementemente a firmar compromissos”. O Hamas teve o apoio do Ie, com
isso, para além dos ataques que visavam a condenação da ocupação israelense,
conseguiu efetuar melhorias para a população palestina no âmbito do bem-estar social
(COHN-SHERBOK; EL-ALAMI, 2005, p. 93). Em vista disso, tanto a população israelense
quanto a palestina deixou de apoiar o acordo de Oslo. A Autoridade Palestina
representada pela Organização para a Libertação da Palestina (OLP) - apesar do líder
Arafat prender extremistas do Hamas - e a insistência de Rabin no processo de paz,
mesmo sendo acusado de traidor do estado judaico, não conseguiram mobilizar a
sociedade israelo-palestina para que se engajassem nas diretrizes do acordo. Em
Promises, a manifestação no campo de refugiados Deheishe e o discurso de algumas
crianças corroboram a essa afirmativa.
Isso é provocação. Parece até que os judeus são os donos da terra. Como vo
se sentiria? Meu coração quer explodir. Eu apoio o Hamas e o Hezbollah. Eles
matam mulheres e crianças, mas fazem isso pelo seu país. Quanto mais judeus
eles matarem, menos judeus vai sobrar. Até que acabem quase sumindo.
Quando explodimos seus ônibus, eles ficam furiosos. Mahmoud Mazen
Mahmoud Izhman (PROMISES, 2001).
O espectador também observa a marcha de celebração da reunificação de
Jerusalém, que acontece anualmente e é organizada pelo movimento dos assentamentos
judaicos, conforme a narrativa de Goldberg no documentário. Nessa celebração, a
marcha passa pelo setor palestino a caminho do Muro das Lamentações. Promises
contrasta a alegria dos israelenses com o ódio dos palestinos levando Mahmoud para
contemplar a marcha comemorativa. No decorrer da sequência em que Mahmoud faz
esse contundente depoimento, o sujeito da câmera registra vários momentos da passeata
israelense ao som de uma música festiva. Provavelmente o ódio expressado por ele tenha
sido provocado pela constante presença dos israelenses, uma vez que ele reside em
Jerusalém e a cidade ficou sob o controle de Israel após a Guerra de 1967.
Esse confronto marcou consideravelmente a história do conflito e significou, para
os israelenses, a anexação da cidade de Jerusalém - além da Margem Ocidental - à sua
zona de controle, sendo que antes disso a cidade estava sob o domínio da Jordânia.
Desde então os israelenses comemoram a reunificação da cidade, ignorando o fato de
que um importante contingente árabe reside ali. A marcha israelense, portanto,
representa uma conquista para o Estado de Israel e uma afronta à comunidade árabe
palestina, sendo que, de um lado, a celebração aquece o patriotismo e, de outro, incita o
ódio.
A política de resistência adotada pelos árabes palestinos é esclarecida através
dessa pungente declaração de Mahmoud. É preciso considerar que as crianças, em seu
processo de formação, reproduzem ideias que não necessariamente dizem respeito a um
conhecimento elaborado por elas, mas sim retransmitido por mestres e responsáveis. Em
um plano de Promises em que Goldberg e Mahmoud dialogam, uma tensão quando o
segundo questiona o primeiro sobre sua identidade, pois Mahmoud o aceita como amigo,
mas não o reconhece como um judeu. Goldberg nasceu nos Estados Unidos e viveu parte
da sua infância em Israel. Ele se apresenta como judeu não praticante do judaísmo. No
documentário, Mahmoud, um tanto desconcertado, diz: Você é um menino judeu
americano”. Após o diálogo, o plano termina com os dois de mãos dadas. Destacamos
nessa montagem a tentativa de uma reconciliação como forma de prenúncio profético.
Essa sequência faz parte de um esforço da produção do filme para o encaminhamento e
a propagação do processo de paz.
Said, em análise sobre o livro The Revolt, de Menachem Begin - em A questão da
Palestina (1979) -, faz questionamentos sobre o terrorismo. Como foi representante da
causa palestina, é relevante observar em sua obra as considerações que ele faz a
respeito do termo. Said afirma que Israel praticou terrorismo durante a guerra de 1948 e
que inclusive Begin, primeiro ministro de Israel na época, se responsabilizou pelos atos
terroristas que culminaram no massacre da aldeia de Deir Yassin. Said ressalta que
apesar de Begin ser conhecido como um político que praticou terrorismo, “algumas
semanas depois de ser eleito, em maio de 1977, ele apareceu na imprensa como um
‘estadista’ [ou seja,] seu terrorismo tinha sido esquecido” (SAID, 2012, p. 51).
Em setembro de 1991, o acadêmico Edward Said participou de um seminário com
intelectuais e ativistas palestinos em Londres. O evento aconteceu pouco antes da
Conferência de Paz de Madri. Era um momento tenso, pois a liderança palestina se
posicionou ao lado de Saddam Hussein, logo após o término da Guerra do Golfo. Said
sustentou que a posição dos palestinos era desvantajosa para a negociação e que a
Conferência tinha o propósito de impulsionar, através das articulações, o progresso dos
palestinos a caminho da autodeterminação
6
. O autor salienta:
Vínhamos de todo o disperso mundo palestino da Margem Oeste e Gaza, da
diáspora palestina em vários países árabes, da Europa e da América do Norte. O
que transpirou no seminário foi uma terrível frustração: a interminável
repetição de argumentos mais que conhecidos, nossa inabilidade em nos
concentrar numa meta coletiva, o aparente desejo de ouvir apenas a s
6
Na década de 1980, segundo Said “[...] a Comunidade Econômica Europeia (CEE) declarou a
autodeterminação palestina como um dos principais pilares de sua política para o Oriente Médio. [...] a
Organização para a Unidade Africana (OUA), a Conferência Islâmica, a Internacional Socialista e a Unesco
além do Vaticano, de várias instituições eclesiásticas internacionais e inúmeras entidades não
governamentais davam à causa da autodeterminação palestina uma ênfase extraordinária, muitas de
maneira inédita.” (SAID, 2012, p. XXX).
mesmos. Em resumo, nada saiu dali exceto uma sinistra premonição do fracasso
palestino em Oslo (SAID, 2004, p. 429).
Em meio à turbulenta negociação e à primeira Intifada, que conquistou
notoriedade na mídia mundial, Said escreveu o prefácio da edição de 1992 do livro A
questão da Palestina. A relevância da sua análise para a compreensão da problemática
em que o documentário Promises se insere está relacionada aos desdobramentos
ocorridos na política sobre as negociações que visavam a paz desde Camp David (1978).
A principal abordagem que Said faz no prefácio é a respeito da relação dos Estados
Unidos com Israel e a consequência disso para a questão da Palestina.
Nos Estados Unidos havia uma posição cautelosa frente aos direitos palestinos,
diferentemente do apoio concedido pela comunidade europeia. Said afirmou existir um
lobby sionista em conformidade com os governos direitistas de Israel. Até 1992, por
exemplo, pró-palestinos somente podiam participar de programas de televisão se o
cônsul de Israel autorizasse, o que era imprevisível (SAID, 2012, p. XXX). É válido
reafirmar que a principal representante do povo palestino, a OLP, era conhecida como
uma “organização de terror”, e isso era um entrave para a sua aceitação nos Estados
Unidos. Por conseguinte, a política dos Estados Unidos foi apontada muitas vezes como
contraditória. Os presidentes do país, em discursos laudatórios, apoiavam os povos que
lutavam pela liberdade - como os chineses, russos, povos do Leste Europeu e afegãos -,
mas não reconheciam os direitos do povo palestino.
Os Estados Unidos representavam a principal força atuante no Oriente Médio,
além de ser aliado de Israel. O cenário internacional favoreceu Israel no pós-guerra
porque, no contexto da Guerra Fria, os sionistas contaram com o apoio dos Estados
Unidos, que se justificava porque os ideais sionistas se associavam ao liberalismo e ao
Iluminismo. Nesse viés, tudo o que se distanciava desse cenário político ocidental, como
o islamismo e o próprio comunismo da União Soviética, era considerado retrógrado e
deveria ser afastado (SAID, 2012, p. 33).
Nos Estados Unidos, a questão da Palestina era sempre secundária diante dos
maciços interesses norte-americanos nas nações árabes e, é evidente, em
Israel; na verdade, podemos afirmar que a Palestina era uma questão interna
dos Estados Unidos, dominado desde 1948 pelo lobby israelense, quase sem
objeções da parte de certas alas da sociedade. (SAID, 2012, p. XXXVI)
Apesar de apontar o lobby israelense como uma força que pressionava as
deliberações sobre o conflito, Said reconheceu também a existência de ações pró-
Palestina praticadas por organizações e indivíduos norte-americanos. Havia a opinião
pública alinhada ao discurso de esquerda e aqueles que se opunham tanto à política de
guerra quanto às ações imperialistas do governo norte-americano. Sendo assim, esses
grupos eram contrários à posição oficial das autoridades norte-americanas. A presença
de árabes na sociedade estadunidense, como o próprio intelectual Edward Said, é outro
fator digno de nota.
Em Promises, Mahamoud participa de uma aula em uma escola islâmica, na qual o
professor instrui os alunos nos preceitos da islâmica e sobre o direito à liberdade. A
condução da aula e as ênfases que ele dá, no entanto, incitam o ódio nas crianças.
Promises não traz nada além do que o mundo ocidental concebe como terrorismo, ou
seja, está muito mais dentro da lógica de reproduzir uma representação existente do
que de problematizar sobre a violência praticada nesse território. Na verdade, corrobora
a ideia de que a orientação islâmica promove o terror desde a mais tenra idade, uma vez
que concede a Mahmoud a voz sobre a questão.
NEY (2015): Sionismo no documentário argentino
Minha família chegou à Argentina escapando das perseguições que sofriam na
Europa. Desde pequeno me falavam sobre a importância de existir um Estado
onde pudéssemos viver seguros na antiga terra de Israel. Falavam ainda do
sionismo, um movimento que levou milhares de judeus de todo o mundo de
volta à terra prometida, e que deu origem ao kibutz, como base de uma
sociedade mais justa. Nicolás Avruj (NEY, 2015, tradução nossa)
7
.
O documentário argentino NEY, de Nicolás Avruj, coloca a questão do conflito
entre árabes e judeus em pauta. Nas entrevistas que Avruj realizou durante os três
meses da viagem que fez para Israel e Palestina no ano 2000, o diretor questionou os
árabes e os judeus acerca dos problemas que se passam na região. As imagens que o
documentário exibe quando introduz a questão do sionismo corroboram a narrativa do
diretor, em voz over
8
. A sequência explora imagens de arquivo que mostram pessoas em
sofrimento, num estado de guerra. Quando Avruj narra sobre o sionismo, o
documentário altera o modo como a história é contada, passando das imagens
melancólicas nas quais utiliza apenas o som diegético - para introduzir uma pulsante
música da cultura judaica e imagens de pessoas trabalhando com semblante alegre,
demonstrando contentamento. NEY apresenta, no início, uma trilha sonora
7
[No original] “Mi familia lle a Argentina escapándose de las persecuciones que sufrían en Europa.
Desde chiquito me transmitieron la importancia de tener un Estado en el que vivir seguros en la antigua
tierra de Israel. Me hablaron del sionismo, un movimiento que impulsó a miles de judíos de todo el mundo a
volver a tierra prometida y crear así los kibutz, como base para una sociedad más justa” (NEY, 2015).
8
Também conhecida como voz de Deus, a voz over é a locução fora de campo (RAMOS, 2008, p. 23).
simbolicamente judaica. Ao final da música, antes de exibir a comunidade de judeus na
rua em celebração e uma bandeira branca com a estrela de Davi hasteada, o espectador
pode observar com clareza a primeira página de um periódico com os dizeres: “Quem
entra na lama do antissionismo acaba inevitavelmente no lamaçal do antissemitismo”.
As imagens comumente utilizadas para tratar das perseguições aos judeus na
Europa são aquelas que remetem ao Holocausto. Em NEY, não evidência desse fato
histórico, mas o espectador é facilmente levado a crer que as perseguições mencionadas
nessa sequência dizem respeito àquele período. Através das imagens, som e narrativa, o
documentário apresenta o sionismo como uma solução para o problema. Além disso,
iguala antissionismo a antissemitismo quando exibe a capa do periódico.
Para compreender o processo histórico ao qual esses termos se referem, é válido
retomar o advento do sionismo a partir do seu contexto e espaço. A Palestina, no final do
século XIX, estava sob o domínio do Império Otomano e contava com uma população de
475 mil habitantes
9
. A primeira aliá, imigração judaica para Eretz Israel
10
, ocorreu entre
1882 e 1903. Até esse período não havia o projeto político de formação de um Estado
secular judeu na Palestina. Pappé (2016) afirma que o sionismo “secularizou e
nacionalizou o judaísmo” (p. 31). O sionismo surgiu na Europa no final do culo XIX,
após uma onda de perseguições aos judeus. Tanto o caso Dreyfus
11
quanto os pogrom
12
na Rússia servem de exemplo para esclarecer o antissemitismo vigente naquele período.
O judeu austríaco que estabeleceu as bases do sionismo na Europa foi Theodor
Herzl. Nascido em 1860, Herzl foi um articulador importante entre os círculos
diplomáticos e políticos e presidiu o I Congresso Sionista (1897), considerado um marco
para o início do movimento na Europa. Herzl afirmou que o fato de a comunidade judaica
ter se unido em torno de um projeto para a formação de uma nação para os judeus
representava uma conquista sionista. No discurso, diz ainda que o sionismo é o retorno
9
Segundo Morris, “em 1881 havia cerca de 25 mil judeus e 450 mil árabes” na Palestina (MORRIS, 2014, p.
49).
10
Eretz Israel é uma região da Palestina e representa um lugar de peregrinação religiosa. O retorno para a
“terra prometida”, segundo os preceitos religiosos, se daria com o cumprimento da promessa da vinda do
Messias (PAPPÉ, 2016, p. 30).
11
“O caso Dreyfus foi um equívoco do judiciário francês culminando em um escândalo político, ocorrido na
última década do culo XIX. O oficial de artilharia do exército francês, de origem judaica, Alfred Dreyfus,
foi acusado de vender segredos militares a um adido alemão [...]” (SILVA, 2013, p. 1). Disponível em:
http://www.revistacontemporaneos.com.br/n11/dossie/Dossie4-dreifus.pdf. Acesso em: 18 jan. 2020.
12
Pogrom é uma palavra russa que significa "causar estragos, destruir violentamente". Historicamente o
termo refere-se aos violentos ataques sicos da população em geral contra os judeus, tanto no império
russo como em outros países”. Enciclopédia do Holocausto. Disponível em:
http://www.ushmm.org/ptbr/holocaust-encyclopedia. Acesso em: 18 jan. 2020.
ao judaísmo e precede o regresso ao país dos judeus” (HERZL, 1897)
13
. Conforme Said
(2012), na década de 1890, na ocasião em que Herzl concebeu o sionismo, “tratava-se de
um movimento para libertar os judeus e resolver o problema do antissemitismo no
Ocidente” (p. 27). O autor afirma ainda que o sionismo se tornou, para os palestinos, o
agente de “uma cultura essencialmente forte e discriminatória” e os seus efeitos na
Palestina devem ser estudados no contexto do imperialismo europeu, “quando o
sionismo ainda era uma ideia e não um Estado chamado Israel” (p. 81-82).
Para descrever o sionismo, Gherman propõe uma divisão em dois períodos: o
primeiro (de 1880 até 1940) é marcado pela construção do Estado através de ações da
Organização Sionista, que administrava as instituições do Ishuv
14
e visava promover a
imigração dos judeus para a Palestina, além de angariar apoio tanto político quanto
financeiro da comunidade judaica da diáspora. O autor diz que esse período é
caracterizado pelo “Sionismo Clássico” e que, por razões ideológicas, “era hegemonizado
por correntes da Esquerda sionista, com fortes componentes seculares e uma
perspectiva profundamente anti-diaspórica [...]” (GHERMAN, 2012, p. 4).
O segundo período (de 1948 até 1967) diz respeito à criação do Estado de Israel,
nomeado como “Sionismo Estatal”. Gherman compreende que o uso político da memória
do Holocausto pelas instituições de ensino sionistas marca essas duas décadas e se
consolida como a prova da inviabilidade da vida Judaica fora de Israel, apontando para a
legitimação da existência do Estado judeu e ainda para a justificativa de práticas e
atitudes cotidianas”. A história judaica, dessa forma, foi apropriada pelos sionistas
transformando o Estado de Israel no centro do judaísmo, pondo “fim” ao judaísmo
europeu. Esse processo, entendido pelo autor como “sionistificação” do judaísmo,
permeou “as comunidades judaicas no mundo inteiro, consolidando a imagem sionista
como imagem do futuro, hegemônica e salvacionista” (GHERMAN, 2012, p. 6-7).
Avineri, numa outra perspectiva, defende que sempre houve uma ligação entre o
povo judeu da diáspora com a região compreendida atualmente como Estado de Israel e
que os judeus sempre mantiveram a crença de que retornariam a Sião. Segundo o autor,
“sempre existiu uma comunidade judia, ainda que pequena, vivendo na Palestina; e
sempre teve um punhado de judeus que chegaram à Terra Santa para viver e morrer
13
Discurso de Abertura do Primeiro Congresso Sionista realizado em 29 de agosto de 1897, na Basiléia
Suíça (HERZL, 1897). Disponível em: http://www.chazit.com/cybersio/israel/congresso.html. Acesso em:
19 jan. 2020.
14
Eisenstadt (1977) desenvolve uma análise dos estágios do Ischuv e explica o termo da seguinte forma:
“Velho Ischuv é o termo usado para a sociedade judaica tradicional da Palestina, ao passo que Novo Ischuv
é o termo para a sociedade que se desenvolveu ao longo das linhas nacionalistas que começam com a
primeira aliá de 1880” (p. 37).
nela” (AVINERE, 1983, p. 13, tradução nossa)
15
. No entanto, Avineri também defende que
os ideais herdados da Revolução Francesa secularismo, liberalismo e especialmente o
nacionalismo influenciaram os judeus da Europa no século XIX e que o sionismo
político do final do século XIX, fundado por Leon Pinsker, Theodor Herzl e Max Nordau,
é mais uma resposta a esses ideais do que ao antissemitismo que vigorou na Europa no
mesmo período.
Para esta análise, podemos encontrar consonância entre proposições de Gherman
e o documentário NEY no tocante ao tratamento do sionismo, entendendo-o como um
movimento salvacionista. A comunidade judaica da qual Avruj participou durante a sua
infância e que influenciou sua formação é imbuída pela “sionistificação” do judaísmo.
Além disso, o documentário faz uso de imagens, som e uma narrativa que remetem à
memória do Holocausto. Em concordância com Avineri acerca da localidade, NEY trata a
Palestina como “antiga terra de Israel”. As crenças sionistas transmitidas pela família e
pelo meio em que Avruj viveu modelaram o seu pensamento e implicaram no modo como
ele olhou o conflito ao cruzar as fronteiras construídas em Israel por um sionismo que
ele ainda não conhecia; ou seja, havia muito mais para Avruj conhecer durante a viagem
sobre o sionismo “salvacionista” que promoveu a imigração dos judeus para a Palestina.
No documentário NEY, ao atravessar a fronteira de Erez para Gaza, Avruj diz: “De
um lado estavam os assentamentos israelenses e do outro a passagem para Gaza. Decidi
seguir esse caminho”. Ele conseguiu uma carona que o levou para a aldeia de Beit
Hanoun, em Gaza. Foi naquele dia que Avruj conheceu Hamed, que o convidou para se
hospedar em sua casa. A partir de então Avruj conheceu de perto os costumes e os
problemas dos palestinos de Gaza.
A fronteira era uma coisa concreta, visível e próxima. Como não havia
turistas, tinha medo que achassem que eu fosse do serviço secreto israelense.
Eu queria apagar qualquer suspeita. (Na sequência, ele aponta para uma direção
e diz para os palestinos) Argentina é lá, mas muito, muito longe Nicolás Avruj
(NEY, 2015).
Avruj não revelou a sua identidade judaica para os palestinos de Gaza; ao
contrário, reforçou sua identidade argentina. Em NEY, o diretor afirma: “Secretamente,
mantinha a ilusão de que Hamed não guardava rancor contra os israelenses. Não sei se
ele me notava, mas por segurança não me senti capaz de dizer”. Nesse momento, a
15
[No original] “[...] siempre existió una comunidad judía, aunque pequeña, viviendo en Palestina; y
siempre hubo un puñado de judíos que llegaron a Tierra Santa para vivir y morir en ella.” (AVINERI, 1983,
p. 13).
identificação com a Argentina como lugar de pertencimento nos revela também uma
escolha de distanciamento da cultura judaica enquanto ele estava em meio aos árabes de
Gaza.
um discurso da política israelense alegando que conceder o direito de retorno
aos exilados palestinos seria como cometer um suicídio político. Além do mais, “Israel é
um Estado para os judeus, e sempre deve ser dada a eles a opção infinitamente aberta de
um possível ‘retorno’ a Sião” (SAID, 2012, p. 56). A justificativa para privar os palestinos
dos direitos assegurados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) se
baseia na possível insurreição dos palestinos diante do poder do Estado de Israel caso
eles se tornem a maioria no território. Sendo assim, Israel continuou com a política de
ocupação, estabelecendo novos assentamentos em terras palestinas, como foi o caso da
Cisjordânia, após 1967.
As imagens filmadas nas proximidades de Hebron, em NEY - após uma entrevista
com um morador do assentamento Alei Sinai -, destacam que ainda vigora a política de
apropriação das terras palestinas pelos israelenses, incluindo cortes de árvores e
destruição de casas. Na sequência de planos, o documentário mostra outro
assentamento, localizado acima de uma casa palestina. Avruj decide ir até a casa e
conversar com os palestinos que ali moravam. Na casa ele entrevistou o palestino Jaudi
Jabr e conheceu de perto a problemática da ocupação. É em tom de denúncia que Jaudi
faz a seguinte declaração no documentário:
Eu plantei umas duzentas árvores na montanha. Um dia meu irmão veio contar
que tinha cem soldados na montanha. Cada árvore tem doze anos. Acabaram
com tudo em três horas. [...] Sabe que quando tiraram minhas árvores senti
como se matassem meus filhos. Mesmo agora quando me lembro [...] às vezes
enlouqueço Jaudi Jabr (NEY, 2015).
Nesse lugar Avruj também conheceu Neta, uma israelense que fazia visitas
periódicas à família Jabr. Em NEY, Neta diz que muitos colonos “ingênuos” por não
terem consciência de que por conta deles estarem lá, muitos palestinos perderam tudo.
O plano mostra a casa da família e acima dela um assentamento judaico. Os muros que
cercam o assentamento revelam a força do Estado que protege os judeus, enquanto que,
abaixo dele, a pequena casa palestina desvela a fragilidade dos palestinos diante da
fortaleza que representa a estrutura sica e política desse assentamento. A denúncia
também ocorre através das palavras de Avruj, que diz em voz over:
Eu não havia me proposto a fazer uma investigação jornalística ou histórica
para o documentário. queria viajar um pouco e conhecer o outro lado. Mas,
assim que comecei a tirar um pouco do verniz encontrei uma tragédia após a
outra. Por trás dos colonos extremistas que quebravam os vidros da casa de
Jaudi havia uma ação maior do governo de Israel para tomar posse do território
palestino. Construíam assentamentos na Cisjordânia com casas baratas apenas
para os israelenses. Abriam estradas que ligavam esses assentamentos a Israel,
dividindo o território palestino. Cortavam as árvores nas laterais das estradas.
Demoliam as casas das famílias palestinas e expropriavam as terras cultivadas
que ficavam então sob domínio israelense Nicolás Avruj (NEY, 2015).
O documentário responsabiliza o governo israelense pela política de ocupação das
terras palestinas e pela construção dos assentamentos judaicos na Cisjordânia. É fato
que a ação política israelense representa a força do Estado de Israel, no entanto, não se
deve apagar a história que remete à origem desse governo. Para os palestinos, os
israelenses são sinônimos de ocupadores, colonizadores e sionistas. O sionismo do qual
o documentário trata, conforme mencionado, não é semelhante ao sionismo da
perspectiva palestina. Avruj não encontrou justeza entre as ideias que a sua família lhe
transmitiu e aquilo que ele de observar nas fronteiras, mas também não associou a
política israelense ao sionismo. Em vista disso, podemos considerar que a narrativa
fílmica está na contramão da ideia de que a política israelense de ocupação representa a
prevalência da ação sionista que estabeleceu as bases do Estado judeu em 1948.
No campo de refugiados Jabalaia, em Gaza, Avruj entrevistou o palestino Kayed.
No documentário, o espectador observa um lugar que tem aspecto de uma oficina de
consertos de eletrodomésticos, com muitos aparelhos dispostos nas prateleiras e num
balcão. A sequência segue com Kayed sentado em meio aos diversos aparelhos que ali
são vistos. Em primeiro plano, o entrevistado não olha para a câmera, mas para o lado
direito do enquadramento, dando ao espectador a sensação de que participa do diálogo.
De acordo com Nichols, nos filmes nos quais o documentarista participa, a persuasão
pode ser reduzida para que haja a sensação de como é estar naquela situação (NICHOLS,
2005, p. 153). Kayed afirma que a culpa de tudo é da ocupação israelense e que não há
condições de viver bem ali. Diz ainda que se envolver na política não é uma escolha dos
palestinos; a maioria se envolve em alguma organização para poder lutar contra a
ocupação israelense. Ele conta para Avruj que pessoas morreram na luta e que outras
foram presas, e revela ainda que ele próprio havia sido preso. Avruj pergunta a ele como
foi e Kayed explica que o chamaram para uma investigação, mas que, na verdade, ele foi
torturado. Enfatiza ainda: “Há momentos em que você deseja a morte, porque não
aguenta mais”.
A negação dos direitos palestinos, tanto de usufruir da terra quanto de se
locomover com liberdade, evidencia que apenas o israelense pode gozar dos direitos
concedidos pelo Estado. Tendo como premissa o testemunho de Kayed, concluímos que
os palestinos que resistiam politicamente à ação do Estado eram alvos de perseguição e
expostos a uma situação de difícil sobrevivência. Infelizmente, nem todas as vozes
ressonaram no cinema como foi o caso de Kayed no documentário NEY.
Em outro momento da viagem pelas terras de Israel e Palestina, o diretor filmou
uma transmissão preparada pelos israelenses para o público que passava nas ruas de
Jerusalém, à noite. Na transmissão, o comentarista, um judeu com um microfone na mão
e usando sobre a cabeça uma kipá, informa que o público assistiria o que a televisão
palestina exibia 24 horas por dia. O espectador observa, pelas lentes da câmera de Avruj,
homens e mulheres assistindo ao que era transmitido, além de observar a tela, que exibe
imagens de crianças entoando algumas canções cujo conteúdo revela enfrentamento
político. O comentarista que apresenta a programação diz:
Chamam de clube das crianças, um programa na TV Central, transmitido pela
Autoridade Nacional Palestina. As imagens parecem familiares, mas as
mensagens não são. O que esta garota espera ser quando crescer? (A menina
que aparece na tela canta) Oh, minha irmã, cante o tempo todo. Cada pedaço do
nosso solo foi afogado no meu sangue. E nós marcharemos como guerreiros da
Jihad. (O comentarista retoma a fala) Cinco anos após a Palestina se
comprometer com a paz em Israel isso é transmitido na TV. (Outra menina
declara) Pegarei o chão com minhas mãos e vou transformá-lo em abismos
mortais. (Em seguida, é a vez de um menino cantar) Vim dizer que vamos lançá-
los ao mar. Ocupadores! A cada dia chegam mais perto. Vamos acertar as
contas. Resolveremos nossas questões com balas e com pedras. (Para finalizar,
apenas uma voz feminina entoa) A Palestina é o meu país, não é para os
sionistas (NEY, 2015).
O que a referida cena pode representar para o público que assistiu a essa
programação em Israel e para o espectador de NEY? É válido destacar que a
representação do conflito israelo-palestino consiste em ao menos duas narrativas, uma
palestina e outra israelense. Essa cena, para o espectador, diz respeito à disputa entre
essas duas narrativas; a israelense questiona o fato dos palestinos incitarem as crianças
ao ódio e à vingança fazendo promessas de guerra, enquanto que a narrativa palestina
afirma ter havido uma apropriação indevida da terra - uma vez que considera os
israelenses como ocupadores e sionistas -, além do forte apelo ao sentimento
nacionalista ao considerar a Palestina um país para os palestinos. Nota-se que a
representação dos lados aqui é dicotômica e que há ódio instaurado no processo,
tornando a imagem do outro distante e depreciativa.
A questão das identidades nos documentários
A segunda Intifada marcou o fim do período de produção de Promises e o começo
da viagem de Avruj para Israel, cujo desdobramento resultou no documentário NEY. Se a
ação das crianças no conflito desde a primeira Intifada, em 1987, chamou a atenção de
Goldberg e o levou a produzir um documentário, a segunda Intifada, ocorrida em 2000,
conduziu Avruj a uma experiência com os palestinos de Gaza que permitiu que os seus
olhos se abrissem para uma nova perspectiva do conflito entre árabes e judeus. Goldberg
precisou afirmar a sua origem judaica, destacando no documentário que uma
possibilidade de conciliação entre árabes e judeus. Para Mahmoud, Goldberg era apenas
um americano e não um judeu. Provavelmente nos Estados Unidos o fato de Goldberg
ser judeu possibilitou tanto o seu trabalho como jornalista na primeira Intifada quanto a
produção de Promises. Quando se tratam de questões relacionadas à identidade e ao
pertencimento não rigidez, pois são situações “negociáveis e revogáveis”, cuja
dependência está na escolha do indivíduo e em como ele prefere agir (BAUMAN, 2005, p.
17).
O diretor de NEY, nos territórios palestinos, afasta a sua judaicidade para ser
aceito por eles; no entanto, como o documentário revela, não há dúvidas quanto à
judaicidade de Avruj. NEY mostra para o público que o espaço no qual Avruj viveu
durante a sua vida é marcado pela cultura judaica; todavia, faz questão de alinhar os
ideais sionistas da sua família à política progressista, cujo histórico remete ao sionismo
de viés socialista argentino.
Quando retornou da viagem para a Argentina, o diretor de NEY, a partir dos
acontecimentos da viagem e tendo como objetivo a produção do documentário,
provavelmente se deparou com uma questão que Nichols (2005) havia levantado:
quem nós somos e para quem falamos? A produção de NEY contempla duas respostas:
nós falamos de nós para nós e nós falamos deles para nós. No caso de Promises, uma vez
que a equipe de produção continuou dialogando com os personagens que participaram
no documentário mesmo após o seu lançamento, existe ainda uma terceira proposta: nós
falamos deles para eles. Ressaltamos que, no documentário NEY, o lugar de onde se fala
é construído para mostrar a importância não apenas de uma origem judaica, mas também
de um modo de “ser judeu” que está conectado aos projetos sionistas; que não lutava
contra o antissemitismo, como também apoiava a criação do Estado de Israel. Na
representação conferida em NEY, nota-se que, para os árabes, era mais conveniente que
a identidade judaica de Avruj ficasse velada em virtude de salientar as críticas à
ocupação israelense. Em Promises, as identidades de Goldberg aparecem para promover
o diálogo entre árabes e judeus.
Considerações finais
Os dois documentários revelam, tendo em vista as atitudes dos árabes diante de
Avruj e Goldberg, que a voz da comunidade palestina está sendo oprimida, mas que
deseja ecoar pelo mundo. Presumivelmente, os palestinos enxergam potencial no cinema
para difundir os meandros e abusos cometidos pela ocupação israelense. Apesar de
judeus, ambos os diretores mostram a situação na qual a Palestina se encontra. Ser judeu
também é lidar com uma cultura compartilhada pelos israelenses. Em determinados
momentos, Avruj e Goldberg cruzaram fronteiras em que precisaram relativizar as suas
identidades.
Se por um lado o terrorismo é assunto debatido em Promises e o filme difunde
uma representação depreciativa dos árabes enquanto NEY discute o conflito pelo viés
das tradições judaicas enfatizando o sionismo, apesar de iluminar apenas um de seus
aspectos, por outro lado, ambos os documentários colaboram com o debate sobre os
problemas em torno do conflito quando expõem as falas de árabes e judeus em suas
diferentes nuances.
Promises e NEY representam a conflituosa relação entre israelenses e palestinos
e continuam reafirmando a importância dessa discussão nos lugares onde os
documentários são exibidos. Sendo assim, o cinema documentário contribui para que a
questão da Palestina seja evidenciada para além de suas fronteiras, permitindo também
que a voz fílmica seja mais uma voz que clama por justiça para os palestinos, um povo
com longo histórico de sucessivas perdas.
Referências
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