Faces da História
, Assis/SP, v.6, nº2, p.139-156, jul./dez., 2019
A nova civilização resultante destas conquistas alinhar-se-ia entre as mais
brilhantes e seria, de vários pontos de vista, a preceptora do Ocidente, depois
de ter por sua vez recolhido, vivificando-a, grande parte do legado antigo. Por
todos estes motivos, é indispensável que a História do mundo muçulmano
ocupe na cultura do homem moderno um lugar considerável: é indispensável,
também, que este homem supere uma concepção de civilização estritamente
associada a povos e a espaços privilegiados: que ele saiba que, antes de São
Tomé, nascido na Itália, houve um Avicena, nascido no Turquestão, e que as
mesquitas de Damasco e Córdoba são anteriores a Notre-Dame de Paris; que
esqueça o seu descaso pelos povos muçulmanos modernos, provocado por um
esmaecimento, talvez transitório; que não encare também esta História através
de uma miragem das Mil e Uma Noites, como episódio exótico, já passado,
objeto de uma vaga nostalgia, e sim como pedaço da História humana, diversa
segundo os locais e as épocas, mas no seu total amplamente una e solidária. [...]
Precisamos lembrar, inicialmente, que logo após a sua conquista verificou-se a
respectiva organização, dentro de um quadro unitário muito frouxo, mediante
uma série de acordos particulares respeitando os usos locais, e cujo exemplo foi
importante fator de submissão para as populações. Resta ainda que, enquanto
as conquistas germânicas esfacelaram a Europa, a conquista árabe unificou o
Oriente Próximo. [...] A bem dizer, poucas conquistas, talvez, apresentaram, de
maneira imediata, menos efeitos perturbadores sobre as populações
conquistadas. Para os não árabes, não havia o problema de perseguição
religiosa: judeus e cristãos, tendo recebido de Deus um livro, Antigo e Novo
Testamento, apresentavam um irrefutável título à tolerância. Praticamente,
impôs-se procedimento semelhante frente aos Zoroastrianos, aos Maniqueus,
aos Budistas, aos “Sabianos” de Harrã (entre Mesopotâmia e Síria), seita
adoradora dos astros, e muitas outras de que voltaremos a falar. Era necessário
apenas que todos esses não-muçulmanos admitissem a supremacia política do
Islã, materializada, sobretudo no pagamento de impostos especiais, na
interdição de qualquer proselitismo junto a muçulmanos e no caráter puramente
árabe do exército. Sob estas reservas, que pouco afetavam a vida corrente,
eram eles “protegidos” por uma espécie de contrato tácito (dimmis). De mais a
mais, seria difícil para os árabes muçulmanos, tão minoritários, a práticas da
intolerância; esta poderia mesmo anular suas conquistas (CROUZET, 1958, p.
93-99).
Como podemos observar nos trechos acima, a coleção História Geral das
Civilizações dirigida por Maurice Crouzet (1958) e o volume ao qual nos referimos, Idade
Média, por Edouard Perroy em colaboração com Jeannine Auboyer, Claude Cahen,
Georges Duby e Michel Molat, apresenta muitos avanços com relação à interpretação
que fazem do Islã e suas relações com a Europa. Isto fica evidente nos índices dos dois
volumes sobre Idade Média em que podemos encontrar o Islã nos seguintes capítulos:
“IV Os inícios do Islã” e “VI Surto e Crises no Oriente Próximo” no primeiro volume; e “II
Recuos e lutas do Islã e de Bizâncio (séculos XI-XIII)” no segundo volume.
Henri Pirenne, historiador belga ligado aos Annales, escreveu, antes da década de
1930, um livro que só seria publicado postumamente. Maomé e Carlos Magno: O
Impacto do Islã sobre a civilização europeia
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tornou-se um clássico – como já dissemos
– muito citado pelos autores de livros didáticos. A tese fundamental deste trabalho de
Pirenne é que as migrações bárbaras para o Império Romano não puseram fim à unidade
mediterrânica estabelecida por Roma. Esta unidade só teria sido rompida com o
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Utilizamos aqui a edição de 2010 das editoras Contraponto e PUC-Rio.