A representação do negro
nos materiais didáticos
The black representation
in didactic materials
GARRIDO, Mírian C. M. Escravo, africano, negro e afrodescendente: a
representação do negro no contexto pós-abolição e o mercado de materiais
didáticos (1997-2012). São Paulo: Alameda, 2017. 203p.
SILVA, Jonatan Gomes dos Santos
*
O Brasil possui o maior programa de distribuição de livros didáticos do mundo.
em 2017 foram gastos 1.295.910.769,73 de reais em 125.570.649 livros. Tais cifras ajudam
a entender a importância dos livros didáticos no ensino do país, sendo uma das bases
para a configuração dos currículos escolares e do planejamento de aulas. O processo de
avaliação e distribuição desses livros é complexo, devendo ser feito com diálogo entre o
Estado, as editoras, a academia e as demandas sociais.
O livro Escravo, africano, negro e afrodescendente, de Mírian Cristina de Moura
Garrido, analisa essa relação na produção dos livros didáticos cujo conteúdo tem grande
impacto na formação da identidade dos alunos. Para isso, propõe em seus três capítulos
a análise das representações dos negros nos principais livros didáticos de história
distribuídos nas escolas brasileiras entre os anos de 1997 a 2012, tendo como foco o tema
pós-abolição. A autora não analisa apenas o seu conteúdo, mas também as etapas a
serem cumpridas até a sua distribuição nas escolas, colocando em pauta a indústria de
materiais didáticos e sua relação com o Estado, seu principal cliente. O livro foi
publicado em 2017 pela editora Alameda, sendo fruto da dissertação de mestrado em
História da autora, realizado na UNESP (campus de Assis) entre os anos de 2008 e 2011.
Doutorou-se pela mesma instituição em 2017, também realizou estágio de pesquisa na
University of Pittsburgh (Estados Unidos) e pesquisa de campo em Maputo
(Moçambique). Atualmente, Garrido é pós-doutoranda em História pela Universidade
*
Graduado em História pela Universidade Estadual Paulista UNESP, Assis, estado de São Paulo (SP),
mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História da UNESP, Assis (SP), Brasil. Bolsista CAPES. E-
mail: jonatangs@live.com.
Recebido em: 22/07/2019
Aprovado em: 22/08/2019
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Federal de São Paulo, desenvolvendo pesquisa sobre as memórias da independência
moçambicana.
No primeiro capítulo “O livro didático: contexto”, Garrido contextualiza os livros
didáticos brasileiros a partir dos aspectos econômicos, editoriais e historiográficos,
traçando um panorama do que sua obra discute. Para analisar essa relação entre
representação e o complexo processo de criação do livro didático, a autora utiliza o
PNLD (Programa Nacional do Livro Didático). Este é o responsável por avaliar e
disponibilizar os livros didáticos das escolas brasileiras. A partir de seus editais de
convocação, em geral lançados dois anos antes da circulação do livro na escola, é
possível estabelecer todas as exigências a serem cumpridas pelas editoras e obras
didáticas que desejam negociar com o Estado, as condutas dos livros didáticos e suas
editoras, bem como os critérios de análise estabelecidos. Na última etapa do edital PNLD
aparece o Guia de Livros, Garrido também o usa como fonte, pois ele fornece auxílio ao
professor na escolha do livro didático, expondo os princípios e critérios de avaliação das
obras didáticas e as resenhas dos livros aprovados.
O PNLD na obra de Garrido também é fundamental para seleção dos livros
utilizados como fonte, uma vez que formula seus critérios:
a aprovação dos autores na versão 2008 do Programa Nacional do Livro
Didático destinado ao Ensino Médio; a presença deles no mercado de didáticos
antes do início das avaliações governamentais para o segundo ciclo do ensino
fundamental, portanto, 1997 (PNLD 1999); e a representatividade desses autores
entre docentes. Traçado esse perfil, três nomes emergiram: Gilberto Cotrim,
Antonio Pedro e Mario Schmidt. (2017, p. 12)
A formação profissional desses autores diverge. Cotrim tem uma ampla e
diversificada formação: graduação em História, Direito, Filosofia, e mestrado em
Educação, Arte e História da Cultura. Também foi presidente da Associação Brasileira de
Autores de Livro Educativo (ABRALE). Antonio Pedro tem uma carreira mais ligada à
universidade, possui graduação em História pela Universidade de São Paulo (USP) e
doutorado em História Social pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) em conjunto
com a Columbia University. Schmidt, estranhamente, não tem formação comprovada,
mas alega ter graduação em História na Alemanha Oriental, bem como ter iniciado os
cursos de Engenharia e Filosofia sem completá-los, e ainda assim é uma grande
referência no mercado de didáticos.
A autora articula o PNLD com a lei 10.639/03. Esta é fundamental para a
representação do negro nos livros didáticos enquanto sujeito histórico, porque expõe a
conquista de uma das mais antigas demandas do movimento negro contemporâneo: a
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incorporação de conteúdos sobre História da África e dos africanos, a luta dos negros no
Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional nos
currículos escolares. Não é uma simples incorporação de conteúdo, o que “está em pauta
é o repensar de atitudes e valores, de ressignificação do ensino enquanto instrumento de
valorização da identidade.” (GARRIDO, 2017, p. 175)
No segundo capítulo, “Livros do Ensino dio aprovados no PNLEM: Cotrim;
Schmidt; Pedro”, Garrido analisa os livros das duas gerações (1997 e 2008) dos autores
selecionados. O método utilizado é a análise do conteúdo, portanto, a autora primeiro
realiza a “desmontagem dos textos, fragmentando o corpo do texto para obter unidades
lógicas; em seguida, essas unidades serão confrontadas com outros referenciais
bibliográficos” (GARRIDO, 2017, p. 79), objetivando a emergência de novos significados.
A desmontagem do texto inicial resulta em um segundo texto, um metatexto capaz de
pluralizar a captação de significados do texto original. Assim, é possível ampliar as
interpretações de leituras possíveis e evitar uma leitura superficial.
Os referenciais bibliográficos que Garrido utiliza para confrontar as fontes
dialogam com uma revisão historiográfica que ocorre a partir da década de 1980, e que
ainda perdura, propondo uma nova interpretação sobre o sujeito histórico. De forma
geral, pensando na questão da representação do negro, pode-se dizer que essa
historiografia emergente recusava “a predominância de um enfoque socioeconômico e
estrutural passando a privilegiar abordagens que ressaltavam variáveis políticas e
culturais, para um melhor entendimento das relações sociais construídas entre
dominantes e dominados.” (GOMES, 2004, p. 159).
Portanto, as reflexões de Sidney Chalhuob (1990) e Walter Fraga Filho (2004) se
destacam na obra de Garrido. Eles sustentam que o negro, escravizado ou livre, como
agente ativo socialmente, é partícipe das transformações sociais mesmo com as
limitações que lhe são impostas. Ocorre, pois, a sua valorização enquanto sujeito
histórico, diferente da ideia de passividade e anulação pelo dominador que era propagada
por modelos, marxistas ou não, que privilegiam os aspectos estruturais, resultando na
coisificação do negro. Para isso, são empregados métodos e fontes que aproximam o
historiador ao cotidiano da população negra como as memórias, os processos
criminais, testamentos , documentos que de alguma forma dão voz à ela ou nos relatam
sua participação na sociedade. Dessa forma, apesar das limitações sociais, é possível
apreender as redes familiares e de solidariedade construídas por esse segmento social,
os meios criados para a sua participação no mercado de trabalho, as negociações entre
negros e ex-senhores. Além disso, como os autores trabalham com regiões diferentes,
Rio de Janeiro e Bahia respectivamente, o diálogo entre eles possibilita contestar
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generalizações. Essa mudança teórico-metodológica, portanto, nos permite apreender o
afro-brasileiro de forma dinâmica, participando ativamente da sociedade através de
diversas formas de resistência.
A partir da análise do discurso focando na representação dos negros no pós-
abolição, a autora se debruça sobre os livros didáticos de 1997 e de 2008 dos autores
escolhidos, constatando que nas poucas páginas dedicadas, os conteúdos sobre o tema
não estavam de acordo com a produção historiográfica em voga, isto é, não valorizavam
o negro como sujeito histórico, tornando invisível sua participação na sociedade.
Nos livros didáticos da segunda geração (2008), Garrido considera que ocorreram
melhorias, contudo foram poucas. Schmidt e Cotrim, no que tange à seção dedicada ao
pós-abolição, fizeram mudanças pontuais nos textos da década de 1990, tentando se
adequar aos requisitos do edital do PNLD 2008. Mas toda a argumentação da primeira
geração continua intacta. O texto de Antônio Pedro é ainda mais preocupante, pois a
única alteração no texto de 2008 é o acréscimo de uma palavra.
A parte reservada às imagens e às atividades foi aprimorada, com destaque para
Cotrim, que elaborou atividades para resgatar o conhecimento prévio dos alunos, não se
limitando aos exercícios de memorização. Apesar das diferenças entre os conteúdos dos
livros serem sutis, a autora destaca que Cotrim põe em xeque a liberdade dos negros,
mas sem levar em conta, entre ex-escravizados, a plural significação desse conceito.
Para entender essa condição para os egressos da escravidão, Garrido entra em
concordância com Chaulhoub (1990) que defende que ser livre poderia significar
autonomia de movimento e a constituição de relações afetivas. Com o texto de Walter
Filho (2004) é possível sair do Sudeste e pensar essa relação na Bahia, onde a liberdade
pode ser analisada pela forma como a interferência senhorial não foi tolerada, ela
também aparece nas intensas negociações para manter e ampliar direitos que foram
conquistados no período da escravidão.
Em seus livros, Schmidt, conhecido por sua posição marxista ortodoxa, busca
evidenciar conflito entre os grupos sociais, porém trabalha com uma leitura que
privilegia aspectos estruturais, não conseguindo “expressar percepções que singularizem
o processo como estratégias e táticas de sobrevivência além da morte, do suicídio ou
fuga, nem admitir outras formas de resistências que ocorram no cotidiano.” (GARRIDO,
2017, p. 103).
Sem dúvidas, Antonio Pedro foi o autor que mais recebeu críticas, pois
praticamente não ocorreram mudanças em suas obras. Assim, além de conter
generalizações, reedita a tese da anomia de Florestan Fernandes ao não considerar o
negro como sujeito histórico quando argumenta sobre a marginalização, reforçando o
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mito do negro “indisciplinado e ocioso”, o que é totalmente nocivo à representação do
afro-brasileiro.
Garrido dedica o terceiro capítulo, “História, Educação e Identidade: por um
ensino aprendizagem possível”, à reflexão sobre as perspectivas e possibilidades para
uma educação que não negligencie o debate sobre o racismo e a discriminação. A autora
constata que a questão da valorização do afro-brasileiro está presente tanto na
historiografia atual, quanto na base da Lei da 10.639/03 e nos editais de convocação do
PLND, contudo os livros didáticos ainda não se atualizaram. Para compreender essa
nociva permanência, Garrido primeiro problematiza as lacunas do PNLD e conclui que,
por mais que os seus editais tenham se aprimorado com o passar dos anos, a falta de um
critério de desqualificação referente a não incorporação de conteúdos atualizados gera
uma brecha, permitindo a aprovação de livros desatualizados.
Em seguida, a autora reflete sobre o uso e a produção dos livros paradidáticos.
Este gênero emerge entre as décadas de 1970 e 1980, quando ocorre uma expansão do
saber acadêmico acompanhada de uma renovação do livro didático devido às novas
propostas curriculares.
Num primeiro momento, o paradidático tinha como principal consumidor alunos
da rede privada de ensino e alunos de graduação, mas com a criação do Programa
Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) em 1997, a clientela tem se reconfigurado, pois
livros de diversos gêneros literários, entre eles o paradidático, passam a ser comprados e
distribuídos nas bibliotecas de escolas públicas. Através dessa ação, o programa tem
como principal objetivo incentivar a formação do hábito de leitura nos alunos da rede
pública, modificando a histórica restrição à cultura letrada, propiciando “melhores
possibilidades de acesso a essa cultura aos estudantes de escolas públicas do país”
(GARRIDO, 2017, p. 161). O PNBE tem uma estrutura de funcionamento similar ao PNLD,
inicialmente são lançados os editais de convocação, em seguida os livros são avaliados e
selecionados por professores universitários, professores do ensino básico e
profissionais de múltiplas experiências.
A obra de Garrido constata que os livros paradidáticos após 2003, se ocupam em
explicar a África e suas relações com o Brasil e a herança dos afro-brasileiros,
contemplando as exigências da lei 10.639/03. Vale ressaltar que os livros paradidáticos
envoltos na temática “história e cultura africana e afro-brasileira” foram vencedores do
Prêmio Jabuti na categoria didáticos e paradidáticos nos anos de 2007, 2009 e 2010, o
que torna explícita a qualidade do conteúdo do segmento paradidático.
O que chama a atenção de Garrido é o fato de as editoras produzirem livros
didáticos carentes de incorporação de conteúdos sobre o tema “África e
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afrodescendentes”, ao mesmo tempo em que têm em seus catálogos livros paradidáticos
suprindo essas carências. Isso pode ser explicado como uma estratégia “na qual as
editoras lucram com as compras governamentais duas vezes, no PNLD e no PNBE”
(GARRIDO, 2017, p. 165). Para a autora, essa estratégia escancara a lógica da relação
entre editoras e Estado, ou seja, enquanto estas buscam deliberadamente o lucro, as
políticas públicas devem fundamentar a educação que pretendem efetivar através dos
recursos disponíveis. Outro obstáculo, pois, para a valorização da população negra.
Portanto, a obra de Mírian Garrido traz importantes contribuições para a reflexão
da representação do negro nos principais livros didáticos do país. Ao questionar o que
vem sendo ensinado nas instituições de ensino sobre o pós-abolição, a autora aponta que
a incorporação de conteúdos que valorizem o negro enquanto sujeito histórico reflete na
construção da identidade negra. Também é importante que as políticas públicas se
atentem à necessidade de promover dentro das escolas uma constante discussão da
relevância e legitimidade de uma educação que não negligencie nenhuma das identidades.
Nenhum dos livros didáticos analisados pela autora renovou os conteúdos já
consagrados, não se atendo a atual historiografia sobre o pós-abolição, tampouco sobre
a demanda social da Lei 10.639/03. O ex-escravo continuou fadado à marginalização por
sua passividade ou submissão. Essa postura conservadora pode ser entendida como uma
opção dos autores e editoras. Apesar disso, ainda ocorreram melhoras significativas no
material do produto didático e em certos “setores” dos livros: exercícios, textos
complementares e no tratamento com imagens.
Pouco pode ser considerado de negativo na obra de Garrido. O conceito de
memória, que é importante na discussão da autora, poderia ser mais desenvolvido, mas
sabendo que o livro é fruto de sua dissertação de mestrado, espaço limitado e de prazo
curto que tende a priorizar certos aspectos, essa carência torna-se compreensível. Além
disso, não compromete a reflexão sobre a importância da representação valorativa do
afrodescendente nos livros didáticos.
Referências
CHALHOUB, Sidiney. Visões de Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhada da liberdade: Histórias e trajetórias de escravos e
libertos na Bahia, 1870-1910. 2004. 363 f. Tese (Doutorado em História) Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004.
GARRIDO, Mírian C. M. Escravo, africano, negro e afrodescendente: a representação do
negro no contexto pós-abolição e o mercado de materiais didáticos (1997-2012). São
Paulo: Alameda, 2017. 203p.
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GOMES, Ângela de Castro. Questão social e historiografia no Brasil do pós-1980: notas
para um debate. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 34, p. 157-186, jul./dez. 2004.