Conexões Rio de Janeiro Cairo
:
possibilidades
analíticas acerca das relações Brasil e Egito
a partir da imprensa escrita (1950 1954)
1
Rio de Janeiro Cairo connections
:
analytics
possibilities concerning Brazil and Egypt relations
since written press (1950-1954)
SANTOS, Mateus José da Silva
*
RESUMO: No presente artigo, buscaremos
analisar um conjunto de textos noticiosos,
encontrados no Jornal A Tarde, que abordam
questões diplomáticas envolvendo Brasil e
Egito durante parte da primeira metade dos
anos 1950. Partindo da premissa de que
jornalismo, política e história estão
intimamente relacionados, elencaremos aqui
algumas possibilidades de investigação acerca
das relações entre os dois países naquele
período, tendo em mente as importantes
lacunas existentes na historiografia sobre o
assunto. Desde acordos envolvendo as
ocupações dos assentos temporários no
Conselho de Segurança, passando pela troca de
Honrarias entre seus chefes de Estado (Rei
Farouk I e Getúlio Vargas) e chegando à viagem
de Jânio Quadros ao país africano, o noticiário
internacional do periódico baiano oferece
algumas possibilidades de estudo sobre o
período, demonstrando que, mesmo não
havendo ainda uma Política Externa orientada
para o mundo afro-asiático, algumas questões
do relacionamento com o Egito ajudam a
compreender as ambiguidades, limitações e
possíveis extensões das relações do Brasil fora
do eixo América Europa Ocidental.
PALAVRAS-CHAVE: Relões Brasil-Egito;
Imprensa; A Tarde.
ABSTRACT: In this article we look forward to
analyze sets of news found in A Tarde
newspaper which contains information about
diplomatic issues involving Brazil and Egypt
during the first half of the 1950s. Considering
that journalism, politics and history are
intimately connected we will put a few
investigative possibilities concerning the
relation between the two countries at that
time, keeping in mind the important blanks in
historiography
about this subject. From
negotiations involving the temporary seats of
the United Nations Security Council, going
through the exchange of honorific gestures
between chiefs of State (King Farouk I and
Getúlio Vargas) and reaching Jânio Quadros'
trip to the
African country, the international
section of the Bahian newspaper provides
potential for studies about the period, showing
that, even though there was no foreign policy
oriented towards the Afro-
Asian world, some
issues regarding the relationship with Egypt
help to understand the ambiguities, limitations
and possible extensions of Brazil's relations
outside the America - Western Europe axis.
KEYWORDS: Brazil-
Egypt relations; Press; A
Tarde Newspaper.
Recebido em: 22/07/2019
Aprovado em: 09/10/2019
1
Este trabalho é fruto da intersecção de duas pesquisas na área de História da África e História das
Relações Internacionais. Por um lado, resultado das investigações realizadas sob o âmbito do projeto
África e Cooperação Brasil-África na Imprensa Bahiana (c.1950-2009), de autoria do Prof. Dr. Claudio
Furtado e com participação de Ramon Oliveira. Por outro lado, tal texto faz parte das considerações
iniciais da pesquisa acerca das relações Brasil-Egito durante o ano de 1956, objeto de análise do Trabalho
de Conclusão de Curso (TCC) deste autor.
*
Graduando em História pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, estado da Bahia, Brasil. E-
mail: mateus_santos29@hotmail.com.
Faces da História
, Assis/SP, v.6, nº2, p.117-138, jul./dez., 2019
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Introdução
Enquanto um importante ator regional,
2
o Estado egípcio esteve presente
ativamente em muitas das questões políticas que permearam o Mundo Árabe, o norte da
África e demais regiões em seu entorno. Descolonização, não alinhamento, propostas de
integração dos árabes e dos africanos, luta pelo desenvolvimento e o dramático conflito
entre palestinos e israelenses fizeram parte das páginas da história daquele país na
segunda metade do século XX. Assim, torna-se difícil contar a trajetória política e
econômica do planeta em uma “era acontecimental” (HOBSBAWM, 2017) sem ao menos
citar uma dessas questões que envolviam direta ou indiretamente os egípcios.
Não estando atrás na história, o Brasil também se colocou enquanto um dos
protagonistas não somente em seu entorno, a América do Sul, mas também como um dos
principais expoentes do mundo em desenvolvimento. Como o Egito, nosso país esteve
envolvido em discussões com relação à ordem econômica e política do globo, reflexo dos
diferentes projetos de inserção do país no sistema decisório, tendo como horizonte
principal a constituição do “Brasil potência”. Nesse sentido, as trajetórias dos dois países
em questão foram marcadas por alguns encontros, fruto da existência de relações
diplomáticas formais, mas também pelo fato de possuirmos temáticas de interesse
comum ou um dos lados estarem envolvidos em questões que ultrapassavam suas
fronteiras nacionais.
Diante de tal reconhecimento, nosso objetivo neste presente artigo é levantar
algumas questões e possibilidades analíticas acerca das relações entre os dois países
durante o início dos anos 50, importante baliza temporal para o entendimento de
mudanças significativas nos dois lados, seja em nível interno, seja em nível externo.
Partiremos da constatação de que há ainda muitas lacunas acerca das relações entre o
governo brasileiro e o Cairo, em especial, nos períodos que antecedem o envio de
soldados brasileiros para a missão de observação da ONU em Suez (1957-1967). A maioria
da literatura acessada versa de forma mais abrangente acerca das relações entre nosso
país e o mundo árabe, especialmente em relação ao posicionamento frente à questão
israelo-palestina, mas não sobre o Egito em particular.
Teremos como fonte histórica as edições do periódico baiano A Tarde nesse
período, no entendimento de que os jornais constituem-se em excelentes ferramentas
para a produção da história política (PEIXOTO JÚNIOR, 2003, p. 17).
3
Por meio dos textos
2
Essa relevância, ainda sob o governo Mubarak, pode ser evidenciada, usando as palavras de Paulo
Vizentini (2010), pelo fato de o país “[...] ser um representante natural dos países árabes pela capacidade
de mediar muitas divergências entre os ocidentais e os árabes”, além de importante participação na ONU.
3
É perceptível, como aponta este autor, o fato de que História e Imprensa estarem “imbricadas” ou mesmo
até se confundirem, ainda mais no exercício do jornalismo político.
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noticiosos, quase todos fornecidos pelas grandes agências internacionais e reproduzidos
na imprensa local, podemos ver uma série de fatos que nos permitem questionar e
historicizar melhor as relações entre dois países de grande relevância como estes em
questão.
Relações Brasil-Egito: estado da Arte
As ligações entre Egito e Brasil não se constituíram em objeto de análise
privilegiada por parte das pesquisas em história das relações internacionais. A revisão
bibliográfica realizada sugere a existência de poucos trabalhos versando especificamente
sobre o tema, abordando periodizações distintas. Durante essa primeira fase da
pesquisa, foi posvel encontrar questões referentes às relações durante o governo Lula,
o governo Costa e Silva, a decisão do envio de tropas brasileiras para a Zona do Canal de
Suez, a migração de judeus egípcios para o país e algumas questões extremamente
interessantes para o final do século XIX e primeira metade do XX.
O Oriente Médio, segundo boa parte da literatura acessada, não se constituiu em
espaço de interesses específicos de nosso país até a primeira crise petrolífera (1973)
(ALEXANDER et. al., 2016, p. 41). Ainda no século XIX, em pleno Brasil Imperial, alguns
gestos e ações começaram a desenhar essa história de relações entre brasileiros e
árabes. Em 1858, o governo do Rio de Janeiro assinou o primeiro tratado com o Império
Otomano, um acordo de Amizade, Comércio e Navegação. Quase 30 anos depois, os
turcos instalaram uma legação diplomática na capital do Brasil.
Ainda naquele mesmo século, as primeiras incursões mais organizadas e
significativas de árabes em direção ao Brasil começaram a acontecer. Sendo um dos
principais destinos desses imigrantes no continente, juntamente com Argentina e
Estados Unidos, os primeiros agrupamentos chegaram ao nosso país em meados dos
anos 1880. Dados imigratórios citados por Silva Preiss (2013, p. 33), correspondentes ao
período entre 1884 e 1943, indicam que dos mais de 70 mil árabes que vieram para o
Brasil, cerca de 643 se declararam egípcios.
Especificamente sobre as relações entre brasileiros e egípcios antes da
proclamação da República, verifica-se alguns fatos que chamam bastante atenção. Dom
Pedro II era um admirador da cultura e da história egípcia, tendo viajado àquele país em
1871 e 1876, além de ter planejado uma terceira viagem posteriormente, mas que não
acabou por se realizar. O monarca de Bragança, alguns anos após, foi homenageado com
a construção de uma igreja, edificada em Alexandria. Sob responsabilidade da família
Debanné e como parte das estruturas do Consulado Geral do Império do Brasil em
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Alexandria, o templo foi construído entre 1868 e 1870, com sua inauguração acontecendo
no aniversário de Pedro II, tendo honrarias dignas de um evento diplomático.
Apesar de ter sido um brasileiro a presidir a Assembleia Geral da ONU
responsável por deliberar a divisão da Palestina, nosso posicionamento com relação à
crise árabe-israelense foi marcado por uma “equidistância” (CASARÕES; VIGEVANI,
2014). Fazendo uso da definição proposta por Gerson Moura (1980, p. 63), em seu estudo
sobre a Política Externa Brasileira (PEB) durante a segunda metade dos anos 30 e o
início dos anos 40, especialmente em relação aos EUA e a Alemanha Nazista,
compreende-se como equidistância uma política de “aproximações alternadas e
simultâneas em relação a um e outro centro”, não sendo, portanto, visualizada a partir de
uma trajetória retilínea
. Dito isso, a existência de colônias sírio-libanesas e judaicas em
nosso país (BREDA DOS SANTOS, 2002, p. 268), o cenário de Guerra Fria e as
aproximações do país com um Terceiro Mundo em formação foram fundamentais para a
adoção de uma postura cautelosa com relação a tal temática.
Um dos inúmeros exemplos da natureza desse posicionamento reside na
declaração do embaixador Cyro de Freitas Valle, na abertura da Assembleia Geral da
ONU em 1956, ao abordar a crise de Suez. Para aquele, o direito à livre navegação pelo
canal, alvo de disputas entre Egito e Inglaterra, não deveria ser argumento para violação
da soberania egípcia (CORREA, 2012). Deste modo, prezava-se pela defesa do diálogo
para a resolução da contenda, em nome da retórica de segurança mundial.
Para I. Majzoub (2000, p. 61), apesar de as relações entre os dois países terem
sido formalizadas a partir do ano de 1924, os acordos mais significativos teriam sido
firmados a partir da década de 60. Por essa perspectiva, haveria um limbo de mais de 36
anos entre os dois países. O que ocasionou tal distanciamento? Quais os fatores que
levaram a tal aproximação? Como um Estado via o outro durante esse tempo? Essas e
outras questões podem permear novas investigações acerca desse período ainda
desconhecido por parte da historiografia, além, é claro, das outras lacunas temporais
existentes a posteriori.
Carla Albala Habif (2015), ao estudar a vida dos judeus no Egito após 1948,
demonstra as dificuldades desse grupo social em se manter naquele país, após a
contenda árabe-israelense. O processo de desenvolvimento de uma identidade egípcia
atrelada fundamentalmente à religião muçulmana, capaz de ultrapassar suas fronteiras
nacionais, por meio do pan-arabismo, marginalizou estes indivíduos, retirando-lhes o
direito de pertencerem àquela terra. Uma diáspora judaica, envolvendo números
superiores a 30 mil pessoas (ROUCHOU, 2001, p. 9), marcou a história egípcia naquele
período.
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Uma parte destes migrantes encontrou no Brasil um novo lar. Por meio da
facilitação de vistos de entrada, centenas de judeus apátridas recomeçaram suas
trajetórias, constituindo uma imigração muito singular e pouco estudada em nossa
história. Investigando alguns censos do IBGE a partir dos anos 40, René Daniel Decol
(2001) proporciona importantes dados acerca da imigração judaica para o país. Com
bases nos dados fornecidos por este autor, calcula-se uma variação entre 55 mil e 56 mil
judeus no Brasil no ano de 1940, enquanto que, para o ano de 1950, esse número cresceu,
variando quase 70 mil, continuando seu crescimento na mesma década (DECOL, 2001, p.
153). Suas origens foram diversas, desde o caso egípcio, até grupos provenientes do
Leste Europeu.
Do ponto de vista espacial, estes imigrantes ocuparam especialmente as cidades
de São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre. Com relação à primeira, somente atrás do
Rio de Janeiro nos números, bairros como o Higienópolis foram um dos principais
centros de concentração dos judeus (CHERMONT, 2013), espaço de construção de uma
sociabilidade bastante particular.
Em Egito, um mirante para o Brasil no Oriente Médio: relações bilaterais Brasil-
Egito (1967-1969), Bruno Amaral (2008) discute os limites e as principais bases no
relacionamento entre estes dois países. Em meio ao governo Costa e Silva, mudanças na
orientação da política externa brasileira já começavam a ser vistas, processo que iria
culminar com a formação do Pragmatismo Responsável e a priorização das relações com
o Sul conceitual.
4
Na busca pela diversificação de seus parceiros econômicos, a
documentação diplomática daquele período sugere um olhar que contemplava a
relevância do Egito para o cenário internacional, considerado enquanto um país-chave
para o estabelecimento de relações mais concretas com o Oriente Médio, tanto em
termos de obtenção de matérias-primas, como também com relação a novos mercados
consumidores.
Como parte de um movimento de inserção internacional do Brasil, nosso país
contribuiu para o fornecimento de soldados na formação da Missão de Observação na
Zona do Canal de Suez após o conflito de 1956. Durante 10 anos, soldados brasileiros
participaram de uma das primeiras experiências de atuação da Organização das Nações
Unidas na tentativa de contenção de conflitos. Suellen Lannes (2009) analisa as possíveis
4
Tendo em vista a diversificação dos recursos para o desenvolvimento interno, a reação à crise do
petróleo de 1973 e a expansão do comércio exterior brasileiro (SARAIVA; VIGEVANI, 2014, p. 223), o
chamado Pragmatismo Responsável foi um conjunto de transformações na Política Externa Brasileira
durante o período Geisel. Segundo Dávila (2011, p. 207), as principais mudanças identificadas durante este
período foram, dentre outras coisas, o reestabelecimento de relações com a China comunista, uma
aproximação maior com os países árabes e apoio ao fim do colonialismo português. Esse novo
direcionamento, apesar de ser continuidade de algumas políticas de governos anteriores, culminou com
maiores divergências com Washington e o fortalecimento de relações com os Estados africanos.
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motivações acerca da decisão brasileira. Interesses econômicos na região, alinhamento
com os interesses estadunidenses e maior possibilidade de atuação no cenário mundial
foram três hipóteses levantadas pela autora para compreender a posição do Rio de
Janeiro. Em sua visão, o engajamento brasileiro pode ser mais bem explicado pelas
próprias condições colocadas para a existência da Missão. Sendo uma exigência os
militares pertencerem a países neutros, Estados como o Brasil que, apesar de
historicamente votarem próximos às potências ocidentais, não estavam envolvidos de
forma direta no confronto árabe-israelense, podendo, portanto, exercer um papel
significativo nesse arranjo proposto pela ONU.
Tratando das relações Brasil e Egito durante os governos Lula e Dilma como um
dos estudos de caso para a constatação de uma maior inserção brasileira no Oriente
Médio, Isadora Loreto da Silveira (2015) demonstra como tal movimento fez parte de um
tipo de diplomacia designada como “autonomia pela diversificação”.
5
Por meio de uma
tendência reformista ou revisionista da ordem internacional, buscou Brasília neste
período aprofundar a tendência universalista em nossa política externa, parte de nossa
tradição diplomática. No caso específico do Egito, nosso volume comercial quase que
quadruplicou durante os oito anos do governo Lula, o que evidencia nosso maior
interesse nessas relações. Uma evidência dessa aproximação pode ser vista na
quantidade de viagens que Celso Amorim, chanceler à época do presidente petista,
realizou ao Egito: um total de sete incursões (LORETO DA SILVEIRA, 2015, p. 36).
Apesar de limitada, a literatura sobre as relações Brasil Egito nos permite
compreender como os dois países mantiveram los em diferentes momentos da
história, ainda que possuíssem interesses distintos e prioridades em outros espaços do
globo. Os anos 50, período do qual enfatizamos nossa problematização, ainda são cheios
de incógnitas, o que nos leva ainda mais a buscar compreender a intensidade e a forma
como se reconheciam no sistema internacional.
Foi notícia: as relações Brasil e Egito em A Tarde
Atrelado a uma lógica industrial de produção, o periódico baiano A Tarde veiculou
alguns textos em suas edições que possibilitam levantarmos algumas questões e
hipóteses sobre as relações Brasil Egito. Fundado em 1912 por Ernesto Simões Filho,
aquele que era considerado um dos jornais mais modernos no início de sua trajetória
5
Partindo da perspectiva de Tullo Vigevani e Mirian Gomes Saraiva (2014), a autonomia pela diversificação
pode ser compreendida pelo esforço do Brasil, sob uma perspectiva ainda mais universalista que os demais
governos, em diversificar suas relações, por meio da Cooperação Sul-Sul, pela defesa de reformas na
ordem internacional, maior liberdade de ação com relação aos Estados Unidos e apoio ao multilateralismo.
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(SPANNENBERG, 2006, p. 06-07), ficou conhecido também por ser um espaço de
difusão de ideias liberais, de uma tendência americanista, mas também de valores de
natureza aristocrática (MOREIRA, 2010, p. 17). Enquanto um dos representantes da
chamada “grande imprensa baiana”,
6
o setor internacional do periódico era abastecido
por meio de um conjunto de textos fornecidos pelas agências internacionais de notícias,
neste caso, sobretudo, pela Associated Press, uma das quatro maiores neste ramo
(AGUIAR, 2009, p. 12).
Foi por meio desta agência estadunidense que, do ponto de vista da informação, o
Egito esteve mais próximo dos leitores baianos. Uma consulta às edições da primeira
metade de 1952, por exemplo, permite-nos ter acesso a mais de 200 textos sobre aquele
país, seja acerca de questões da potica e da economia local, seja também das contendas
envolvendo Egito, Inglaterra e Israel. Neste e em outros anos do início da década de 50, é
possível encontrar outros textos que indicam alguns dos movimentos existentes nas
relações entre Rio de Janeiro e Cairo, assim como nos permitem apelar para a realização
de novas investigações acerca do passado diplomático desses dois países. Antes, porém,
é preciso tentar compreender brevemente as questões que permeavam estes países
naquele período, assim como as características gerais de suas diplomacias.
Brasil: polarização e busca pelo desenvolvimento
Uma das questões mais caras que permearam a política brasileira nos anos 50 foi,
sem dúvida alguma, a discussão acerca do desenvolvimento nacional. Comumente
conhecido como o embate entre “nacionalistas” e “entreguistas”, as elites de nosso país
divergiam acerca do caminho a seguir para a conquista de tal objetivo. O primeiro grupo,
possuidor de nomes como o de Celso Furtado, defendia maior autonomia na agenda
diplomática brasileira, especialmente em relação aos Estados Unidos, para a execução do
projeto de industrialização e ainda “alguma perspectiva de reforma social”. Seus
opositores, o segundo grupo, tendo como um dos principais nomes o economista
Eugênio Godin optavam por um alinhamento ainda mais forte com os Estados Unidos e
por uma parceria cada vez maior com o capital privado e as multinacionais (VIZENTINI,
2003, p. 13).
Eleito presidente em 1950, Getúlio Vargas buscou dar segmento ao projeto de
industrialização do país impulsionado durante sua primeira administração. Para tal, seu
foco foi buscar articular acordos com os Estados Unidos, de maneira semelhante ao que
6
Compreende-se “grande imprensa” a partir da proposição de Aragão dos Santos (1985, p. 05) como “[...]
empresa jornalística, indústria que mercantiliza a informação, vende a notícia, tem como base de
sustentação a publicidade e veicula a ideologia da classe dominante”.
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acontecia em relão à Europa e ao Japão. O contexto de Guerra Fria, em especial ao
movimento de reconstrução do mundo capitalista e a extensão do conflito para além das
fronteiras europeias, orientou certo desinteresse dos EUA em intensificarem auxílios
com a América Latina, e consequentemente com o Brasil (RICUPERO, 2017). Apesar do
Acordo Militar (1952)
7
e da atuação da Comissão Mista Brasil EUA,
8
os objetivos
governamentais não foram atingidos, o que fez o país buscar alternativas para a
continuidade de seu projeto. Medidas de proteção aos recursos nacionais, como a
campanha do Petróleo e a criação do BNDE geraram ainda mais atritos com os EUA e as
elites que divergiam de tal caminho.
O suicídio de Getúlio Vargas intensificou uma crise política no país, acentuando
ainda mais o debate acerca de sua política interna e a natureza de seu desenvolvimento.
Durante ainda os governos que antecederam Juscelino Kubitschek, a instrução número
113 da SUMOC foi uma medida essencial para a postura do país frente ao capital
estrangeiro (RICUPERO, 2017, p. 393-394).
9
Do ponto de vista da história da Política Externa Brasileira, autores como Tullo
Vigevani e Miriam Gomes Saraiva enxergam uma construção processual do movimento
de construção de uma perspectiva universal e mais autônoma em relação aos EUA. Desta
maneira, as bases da chamada Política Externa Independente estariam lançadas durante
o período dos governos Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek,
10
ainda que, em
determinados assuntos como o colonialismo, a postura predominante ainda fosse
ambígua (PINHEIRO, 1989).
11
O reconhecimento dessa continuidade ao longo dos anos 50
7
O chamado Acordo Militar, assinado em março de 1952, estabelecia uma cooperação entre Brasil e
Estados Unidos nessa área, por meio da disponibilidade de armas para fornecimento e venda, “intercâmbio
de oficiais, cursos e treinamento” (RICUPERO, 2017, p. 383). Essa medida foi criticada pelos setores mais
nacionalistas das forças armadas, por interpretarem que seria uma expressão de dependência do Brasil em
relação a Washington, tendo em vista que, uma das condições colocadas era de que, em caso de agressão
externa, caberiam aos estadunidenses uma posição mais proeminente na organização do efetivo militar
brasileiro, além de ter acesso facilitado às matérias primas estratégicas (SALOMÃO, 2010, p. 45)
8
Uma das principais marcas da relação Brasil-EUA neste período, a Comissão Mista foi criada ainda no
final do governo Dutra, tendo como alguns de seus objetivos a formulação de projetos em áreas como
“transporte, energia e distribuição”, questões caras ao projeto de industrialização brasileiro, assim como
captar recursos estadunidenses e do Banco Mundial (MONIZ BANDEIRA, 2011, p. 46).
9
Elaborada durante a gestão do Ministro Eugênio Godin, a Instrução de nº113 autorizava a Carteira de
Comércio Exterior do Banco do Brasil a disponibilizar meios para a importação de máquinas e
equipamentos, num movimento que instituía certo privilégio para o capital estrangeiro (SILVA, 2005, p.
275), com possibilidades de sua penetração a partir de parcerias com a produção nacional. Para Moniz
Bandeira (1978), a manutenção dessa medida contribuiu para a desnacionalização, além de prejudicar o
crescimento da indústria nacional de bens de produção.
10
o é objetivo desse artigo se dedicar a analisar o que foi a Política Externa Independente e suas
implicações para as relações Brasil Egito. Contudo, a partir do que foi colocado, cumpre destacar que os
seus princípios básicos foram “[...] ampliação do mercado interno, formulação autônoma dos planos de
desenvolvimento, manutenção da paz com coexistência pacífica, desarmamento geral e progressivo, não
intervenção em assuntos internos de outros países, autodeterminação dos povos, respeito ao direito
internacional e apoio à emancipação dos terririos não autônomos” (SARAIVA; VIGEVANI, 2014, p. 221).
11
A relação do Brasil com a questão colonial exige cautela. Apesar de, do ponto de vista do discurso,
defender a soberania dos povos e a mediação pacífica dos conflitos, o país manteve apoio ao colonialismo
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e primeira metade dos anos 60 é bastante significativo, pois denota a relevância de
estudarmos a maneira como o Brasil se relacionava com países do eixo Ásio-Africano,
como o caso do Egito, não somente nos anos 60, mas ainda quando este movimento de
expansão dos parceiros políticos e econômicos se iniciou.
Egito: um conjunto de contendas
Se os anos 50 foram de fundamental importância na trajetória do Brasil, no caso
egípcio tal baliza também possui um peso significativo. Em 23 de julho de 1952, uma
revolução de natureza antiliberal,
12
antimonárquica e antibritânica (DEMANT, 2004)
colocaram os militares no poder daquele país, derrubando a dinastia Ali.
13
Independente
juridicamente em relação à Inglaterra em 1922, a soberania egípcia foi muito limitada
(CASTRO, 2014). A formação de uma monarquia constitucional autoritária se deu a partir
de negociação com Londres,
14
salvaguardando os interesses dos britânicos naquele país,
manifesto especialmente no controle do Canal de Suez, mas também em relão ao
Sudão e aos interesses privados.
Um nacionalismo egípcio em finais da década de 40 e início dos anos 50 marcou a
história política deste país. Para além da reivindicação da saída das tropas inglesas do
canal, a questão árabe-israelense movimentou a sociedade egípcia. O processo de
formação do Estado de Israel e a guerra de 1948 abalaram as estruturas do país africano,
tanto por conta da dualidade política dos ingleses nessa questão,
15
mas também com
português pelo menos até os anos 70. No tocante aos processos de independência do final da década de
50, Amado Cervo e Clodoaldo Bueno (2002, p. 300-301) pontuam que não houve uma grande atenção por
parte do governo Kubitschek. Assim, discordamos de Celso Lafer, ao afirmar que o Brasil iniciou, perante a
ONU, uma posição contrária ao colonialismo a partir de 1953, tendo “maior precisão” em 1960 (LAFER,
2014, p. 40). As contradições entre um discurso em favor da autodeterminação dos povos e a preocupação
com a segurança mundial, assim como a aliança com os portugueses eram alguns dos pontos que podem
ser encarados como barreiras ao posicionamento brasileiro frente aos movimentos de emancipação. José
Sombra Saraiva, ao evidenciar as ambiguidades da posição brasileira, afirma que uma observação em
relação ao voto brasileiro nas Nações Unidas sobre essa questão nos leva a concluir que o país votou em
muito menor medida em favor da descolonização e de questões que poderiam trazer atritos nas relações
com as potências coloniais (SOMBRA SARAIVA, 1993, p. 27).
12
Ivan Hrbek (2010) também é partidário do conceito de revolução para designar a ação do Movimento dos
Oficiais Livres em 1952. Diz o mesmo autor que este processo histórico foi incompreendido em diferentes
partes do mundo, inclusive no próprio Egito. A reforma agrária ainda de 1952 foi um ato importante para
que se percebesse, por exemplo, a natureza “antifeudal” do grupo dirigente, assim como se concebesse
como um movimento revolucionário (HRBEK, 2010, p. 172-173).
13
Chama-se de dinastia Ali o período de quase 150 anos em que o Egito foi governado por Muhammad Ali e
seus descendentes. Este primeiro, apesar de oficialmente ocupar o cargo de Vice-Rei, submisso à Porta,
organizou um processo de construção de outra força política no Mundo Árabe (ABDEL MALEK, 2010),
além de ter iniciado importantes reformas no sentido da modernização do país (WALLERSTEIN, 2010, p.
34).
14
A natureza autoritária da monarquia egípcia pode ser evidenciada a partir do dispositivo constitucional
que atribuía ao rei a possibilidade de dissolução do gabinete, escolher e nomear o primeiro-ministro
(IBRAHIM, 2010, p. 683).
15
A posição dos ingleses com relação à questão árabe-israelense, se olhada a partir do pós I Guerra
Mundial, apresenta algumas controvérsias. A chamada Declaração de Balfour (1917) foi interpretada como
Faces da História
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126
relação ao próprio governo do Cairo, alvo de acusações acerca da sua postura em
relação ao conflito, especialmente pela chamada Crise dos Armamentos.
16
Inicialmente sob o comando de Naguib no Conselho Nacional da Revolução,
promoveu o Egito a instauração da República, o início da reforma agrária e novas
questões no tocante ao desenvolvimento do país. Seu envolvimento com a Irmandade
Muçulmana, somado às demais divergências com Abdel Nasser (HRBEK, 2010, p. 172-
173), levaram à deposição daquele e à subida do Coronel ao poder, primeiramente como
Primeiro-Ministro e depois enquanto Presidente. Sob o comando de Nasser, a noção de
dupla revolução buscou ser concretizada, no entendimento de que havia uma revolução
social ainda por se realizar (ZANATTA, 2012, p. 29).
Em nível interno, houve a busca de melhorias na infraestrutura do país,
evidenciada pelo grandioso projeto da Barragem de Assuã, tendo como principal
objetivo, “[...] aumentar as superfícies cultivadas e garantir o fornecimento da energia
necessária à industrialização, na esperança de resolver os problemas impostos pelo
crescimento populacional do país” (HRBEK, 2010, p. 174). Este empreendimento, em
princípio, seria financiado pelo capital internacional, especialmente britânico,
estadunidense e também do Banco Mundial. Contudo, a aproximação do Cairo aos
regimes socialistas, tendo como caso paradigmático a compra de armamento junto à
Tchecoslováquia, levou o ocidente a reconsiderar a ajuda financeira.
Externamente, o Egito Nasserista esteve à frente dos esforços pela remodelação
da ordem mundial, sendo protagonista nas discussões que levariam à formação do
Terceiro Mundo. Descolonização, luta contra o imperialismo, não alinhamento e o pan-
arabismo foram algumas das principais características estruturais da política externa sob
o comando do coronel.
17
Entre a luta anticolonial, a definição de sua própria identidade e na condição de
protagonista regional, o Egito de Nasser continuou a possuir uma dinâmica política muito
significativa, capaz de chamar atenção dos olhos do mundo para o Cairo, tanto da
um apoio inglês à migração de judeus para a região da Palestina e um aceno para a construção de um
Estado (GRINBERG, 2005, p. 104). Contudo, por outro lado, Londres possuía forte interesse na região,
tendo articulado sua divisão por áreas de influência com os franceses, além de, no contexto da Segunda
Guerra Mundial, solicitar apoio dos Estados independentes e das elites locais em prol da causa dos Aliados.
16
Escândalo envolvendo o fornecimento de armamento danificado para os soldados egípcios durante a
guerra de 1948 (SALGADO NETO, 2012, p. 89).
17
O Não-Alinhamento foi uma postura político-diplomática de Estados recém-independentes, pertencentes
ao grupo afro-asiático ou divergentes da linha de Moscou e Washington quanto às possibilidades de
atuação no sistema internacional. Discurso fortalecido por líderes como Al-Nasser, Nehru, Sukarno e Tito,
tais governos defendiam uma autonomia com relação à ordem bipolar, recusando-se a aderir
sistematicamente aos polos em disputa sob o âmbito da Guerra-Fria.
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imprensa, como também de muitos governos.
18
Tais questões não deixavam de estar
presentes em jornais como o periódico baiano A Tarde, caracterizado por destinar
grande espaço para às questões internacionais.
O noticiário de A Tarde e novas possibilidades analíticas
Dentre o conjunto de textos veiculados pelo jornal A Tarde sobre o Egito, alguns
chamam atenção por trazerem determinados elementos para a inquietação sobre as
relações de nosso país com o Estado africano. Longe de querer aqui chegar a conclusões
sobre o tema, tais notícias sugerem algumas possibilidades de investigação sobre as
relações, partindo do entendimento de que, ao estarem num dos jornais mais
importantes em circulação no Brasil naquele período, constituem-se em questões com
algum grau de relevância. Não se trata de atribuir um grau extremamente elevado às
relações entre os dois países, a ponto de comparar-se, por exemplo, com Portugal ou
com os Estados Unidos, mas de se questionar qual era efetivamente o grau de
aproximação entre Cairo e Rio de Janeiro, num contexto de relacionamento gradual do
Brasil com a África (SARAIVA, 1996), sem necessariamente esta ter se tornado uma
prioridade em sua agenda.
Conselho de Segurança
Enquanto importantes atores políticos em suas regiões, Brasil e Egito já figuraram
algumas vezes como membros não permanentes do Conselho de Seguraa da ONU.
Esta importante estrutura no interior das Nações Unidas, parte dos esforços de
edificação de novos mecanismos de segurança coletiva nos desdobramentos finais da
Segunda Guerra Mundial, foi e ainda é alvo de muitas controvérsias. As assimetrias
presentes em sua disposição foram contestadas ao longo da história por diferentes
países, no entendimento de que a composição não atende às mudanças no sistema
internacional, ocorridas ao longo do século XX e início do XXI.
Renovado bienalmente, as cadeiras temporárias do Conselho de Segurança são
alvo de disputas por parte dos Estados-membros, num processo que deve atender a uma
divisão de natureza regional (HERTZ; HOFFMAN, 2004, p. 91). Diante disso, articulações
entre suas áreas de atuação são fundamentais para os Estados, mas também há uma
18
O exercício desse protagonismo pode ser evidenciado pelas relações políticas no interior do mundo
árabe e sua postura com relação ao resto do mundo. Para Silvia Ferabolli (2007, p. 76), o período entre
parte das décadas de 50 e 60 pode ser caracterizado como momento de uma hegemonia egípcia com
relação aos países de seu entorno, apesar dissoo ter confluído para uma união política do mundo árabe
e nem tampouco para a superação de sua dependência ecomica.
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necessidade de ultrapassar fronteiras mais próximas, dialogando com países das mais
diferentes regiões do globo em busca de apoio político para a consecução dos objetivos.
É diante disso que, em 1950, segundo A Tarde, Egito e Brasil estiveram em
negociação por conta da nova composição do Conselho de Segurança. De acordo com
um conjunto de textos, era de interesse do governo do Cairo que o Brasil apoiasse a
candidatura libanesa, em contrapartida do apoio daquele ao novo pleito de nosso país
(OS ESTADOS, 1950, p. 1). De forma muito pragmática, os acordos envolviam a votação
referente à cadeira do Oriente Médio e a uma das vagas destinadas à América Latina.
Como grande adversário do Líbano, a Turquia despontou como outra
possibilidade para ocupação da vaga que antes pertencia ao Egito no Conselho de
Segurança. Um apoio importante para as aspirações de Ankara foi noticiado pelo jornal:
“Segundo declaração feita pelo embaixador Jefferson Caffery, os Estados Unidos
apoiarão a candidatura da Turquia ao Conselho de Segurança, na vaga deixada pelo Egito
[...] São candidatos também, obano e a Turquia.” (UMA VAGA, 1950, p. 8).
Liderança no mundo capitalista, membro permanente do Conselho de Segurança,
o apoio estadunidense aos turcos, sem dúvida nenhuma, consistia num peso muito
importante para sua candidatura. Tal movimentoo traz nenhuma surpresa, tendo em
vista que Turquia e Estados Unidos possuíam importantes ligações, sendo aquele Estado
um dos mais próximos de Washington na região, o que pode ser evidenciado nos
esforços pela construção de uma Aliança Militar envolvendo alguns Estados do
Mediterrâneo.
19
Apesar de todo o processo de negociação com o Egito, preferiu o Brasil aderir à
candidatura turca. Assim, o novo mandato temporário no Conselho de Segurança teria,
dentre outros membros, Brasil e Turquia. Tal posicionamento teve repercuses nas
imediatas relações com aquele país africano, evidenciadas pelo recuo egípcio em assinar
um tratado com o governo do Rio de Janeiro:
Anuncia-se que o Egito resolveu não mais assinar o acordo cultural com o Brasil
[...] Segundo se acredita, essa decisão foi motivada pelo fato de ter o Brasil
votado em favor da Turquia para o Conselho de Segurança da ONU. Esse lugar
era disputado pelo Líbano [...] Revela-se que o acordo cultural entre o Egito e o
Brasil já se achava com a redação pronta, faltando apenas, a assinatura dos
representantes dos 2 países. (O EGITO, 1950, p. 1).
19
Era de interesse dos Estados Unidos formar uma espécie de Aliança Militar de defesa do Mediterrâneo,
contando com o apoio de Estados como Turquia, Grécia e o próprio Egito. Porém, como pontua Rodriguez
Mellado e Montero Martín (1950, p. 139), houve resistência do governo egípcio ainda no período
monárquico.
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Divergências no interior de um espaço multilateral trouxeram importantes
consequências para as relações entre os dois países em questão naquele momento
histórico. A adoção da candidatura turca, apoiada pelos EUA, é muito significativa, na
medida em que pode ser vista como mais uma evidência da tendência da diplomacia
brasileira em seguir as grandes potências nas votações da ONU, ou ainda, possuir uma
leitura pautada num americanismo.
20
Essa característica, ainda que muito complexa no
interior das mudanças políticas de nosso país e mesmo do cenário mundial, vigoraria
ainda durante pelo menos até o final dos anos 1950, também fruto de um intenso debate
sobre o lugar ocupado pelo Brasil no sistema internacional e suas possibilidades de se
tornar um ator de grande relevância.
Troca de Honrarias
Entre os anos de 1951 e 1952, um processo de troca de honrarias entre os chefes
de Estado brasileiro e egípcio foi uma das grandes marcas do noticiário relativo às
relações entre esses dois países. De um lado, Farouk foi homenageado com a ordem do
Cruzeiro do Sul. Por outro, Getúlio Vargas recebeu a ordem Mohammed Ali
(CONFERIDO, 1952, p. 1). Especialmente no segundo caso, mais do que o recebimento,
chamou-nos atenção o segmento do processo.
Egito e Sudão possuíam uma ligação histórica. Como não se lembrar, por exemplo,
da íntima e, por vezes, conflituosa relação entre a civilização faraônica e a Núbia?
21
Tais
relações ultrapassaram milênios. No processo de conformação do nacionalismo egípcio,
baseado nesse passado, mas também pelo reconhecimento de uma proximidade
identitária, processos de integração do Sudão ao Egito surgiram na pauta política dos
intelectuais egípcios, muitas vezes com uma perspectiva civilizadora (PAIVA, 2019). Este
processo foi incorporado por parte das elites poticas, inclusive pelo governo do Cairo,
desejoso, desde a sua independência, de negociar a concessão do vizinho por parte de
Londres.
A questão sudanesa era um dos elementos constituidores da chamada crise anglo-
egípcia. Apesar da centralidade da discussão residir na questão do Canal de Suez, a
20
De acordo com Vigevani e Saraiva (2014), o americanismo enxerga na relação íntima com os EUA a
maneira como melhor se inserir no interior do sistema internacional, assim como de dotar recursos para o
país. Alguns autores, como o caso de Moniz Bandeira (2011, p. 42), afirmam que, também conhecido como o
paradigma Rio-Branco, esta linha de pensamento, em suas origens, não deixava de pontuar a manutenção
da autonomia do país em relação à sua política externa, ainda que o alinhamento com Washington fosse
prioridade.
21
As relações entre Egito e Núbia durante a época faraônica é bastante notável. Durante as diversas fases
da história, a civilização egípcia e os núbios tiveram uma relação marcada pelas trocas culturais, por uma
dinâmica comercial e por muitos conflitos, a exemplo das chamadas expedições punitivas. Ver: (ZAYED;
DEVISSE, 2011; LECLANT, 2011).
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expansão do Egito ao sul era também parte das reivindicações do governo do Cairo e dos
nacionalistas.
22
Do lado sudanês, especialmente parte das elites arabizadas eram
simpáticas ao projeto de associação ao Egito, sendo essa questão motivo de clivagem
entre os partidos políticos.
23
Noticiou-se, em A Tarde, o desejo do governo egípcio em ter o apoio do Brasil
nessa questão (REI, 1952, p. 1). Para Farouk, era de fundamental importância ser
reconhecido enquanto rei “do Egito e do Sudão”, num esforço de legitimar sua causa
diante da comunidade internacional e, deste modo, pressionar ainda mais o governo
inglês. Recorrendo ao governo do Rio de Janeiro, o mesmo que havia recentemente
recebido homenagens, o monarca egípcio demonstrou a dimensão da defesa de seu
interesse, levando a questão sudanesa como parte de sua agenda diplomática com nosso
país.
Qual o posicionamento do Brasil frente à questão? Uma investigação nesse
sentido poderia instigar-nos a pensar qual o nível de relacionamento entre os dois países
naquele momento. Atrelando os fatos apresentados, uma narrativa possível, que pode ser
transformada em hipótese, consiste em compreender a visita do Ministro do Interior e a
entrega de honrarias ao presidente Getúlio Vargas serviu como preparação do caminho
para a solicitação de apoio brasileiro numa questão cara para a monarquia egípcia.
Diante da resistência histórica dos ingleses em cederem a administração do Sudão
à coroa egípcia, a conquista do reconhecimento internacional desta causa pode ser
encarada como uma alternativa para uma negociação sob melhores condições com
Londres. O apoio brasileiro, um país então membro temporário do Conselho de
Segurança da ONU e detentor de relações formais com o Cairo,
24
era assim uma etapa
importante neste processo.
22
Em A Revolução no Mundo Árabe, Luiz Toledo Machado introduz um conjunto de textos de Gamal Abdel
Nasser, versão em português, tratando, em sua visão, as extensões do mundo árabe e trata o Sudão de
forma bastante particular: “[...] O mundo árabe compreende, hoje, na extensão dos fatores que configuram
a nação, o Egito, a Síria, o Líbano, o Iraque, a Arábia, a Jordânia, o Yemen, a Argélia, o Marrocos, o Kuwait,
a Palestina Árabe, a Líbia, a Tunísia e o Sudão, este último cuja região norte é predominantemente
muçulmana e que integra o quadro de interesses econômicos e de segurança do Vale do Nilo.
(MACHADO, 1963, p. 44).
23
Dos partidos sudaneses, o Ashikka levantava a bandeira por uma “estreita união” com os egípcios. Até o
governo de Naguib, a possibilidade de unificação era real, tendo em vista a derrubada de um impopular
Farouk, as estreitas ligações entre Naguib e o Sudão e a vitória do Partido Nacional Unionista (HRBEK,
2010, p. 173).
24
Ao longo da história, o Brasil participou cerca de dez vezes do Conselho de Segurança da ONU,
enquanto membro não-permanente. Foram nos biênios de 1946-1947, 1951-1952, 1954-1955, 1963-1964,
1967-1968, 1988-1989, 1993-1994, 1998-1999, 2004-2005 e 2010-2011 (ZIEMATH, 2016).
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Possibilidade de exílio do Rei Farouk
Como parte das agitações que caracterizaram o mundo árabe após o conflito de
1948, a Revolução Egípcia de 1952 efetivamente representou um evento de grande
impacto regional, tendo grande abordagem no jornal A Tarde. A derrubada de Farouk I
não representou somente um abalo ao regime monárquico, mas uma nova fase na luta
nacionalista egípcia, tendo em vista que também ruiu um regime liberal frágil, submisso
ao interesse inglês e com grandes dificuldades de corresponder às aspirações dos novos
agentes poticos do país.
Boletins sobre o caso tomaram conta do periódico baiano. O acompanhamento do
processo, as repercussões no Egito, no Oriente Médio, na Inglaterra e nos Estados
Unidos, assim como o futuro do monarca egípcio foram temas da cobertura realizada
pelo jornal, baseada fundamentalmente a partir da reprodução dos textos da Associated
Press. O destino de Farouk foi um aspecto extremamente curioso. Obrigado a sair do
país, o rei teria de deixar seu filho Fuad II, sucessor da monarquia egípcia, tendo em vista
que o movimento empreendido pelos militares não extinguiu o regime de imediato, mas
somente em 1953.
Sob o título “No Brasil, o exílio de Farouk?”, um boletim de 29 de julho de 1952
afirmou que existiam rumores acerca da possível vinda do penúltimo monarca da
dinastia Ali para o Brasil, na condição de exilado (NO BRASIL, 1952, p. 1). Logo após sua
abdicação forçada, Farouk se dirigiu para a ilha de Capri, território italiano, porém ainda
sem uma garantia política de sua permanência no país europeu. Seguem-se, a partir daí,
um conjunto de rumores sobre seu futuro,
25
discussões que acabam também por
envolver o Brasil.
Nesse mesmo dia, outro texto curioso destaca aquilo que pode ser entendido
como um aspecto motivador para a vinda do rei egípcio para o Brasil. Tratava-se de uma
ligação familiar:
A reportagem esteve na legação do Egito, para saber da noticia transmitida do
Cairo, de que o rei Farouk vem morar no Brasil. Conforme é do conhecimento
público, o rei Farouk abdicou, sábado, em favor do príncipe herdeiro e deixou
avante o país no mesmo dia [...] Na legação, o ministro Hussein Bey mostrou-se
surpreso, adiantando que nada sabia a respeito da transferência [...] A irmã do
25
Além do interesse político no assunto, a vida pessoal de Farouk sempre foi alvo de muita polêmica e de
repercussão nos jornais. Apesar do teor sensacionalista, Martin Meredith (2017, p. 545) tem razão ao
afirmar que o monarca egípcio era uma espécie de “playboy”, sempre envolvido em rumores sobre seus
casamentos, amantes e questões pessoais. Não custa lembrar que o mesmo subiu ao poder em 1936, com
apenas 16 anos.
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rei, princesa Fátima é casada com o príncipe D. João de Orleans e Bragança e
reside em nosso país. (RESIDE, 1952, p. 1)
26
.
Casados desde 1949, Fátima e João de Orleans representavam um elo entre a
família real egípcia e a antiga família real brasileira. A presença da princesa no país
poderia ser um fator atrativo para a mudança do monarca deposto em direção ao Brasil.
Além do Brasil, o veículo baiano trouxe textos que também indicaram a possibilidade de
exílio na Espanha e nos Estados Unidos. Contudo, Farouk acabaria por ficar mesmo na
Itália durante um tempo.
Visita de Jânio Quadros ao Egito
Ex-presidente do Brasil, governador de São Paulo e prefeito da maior cidade do
país, Jânio Quadros foi uma das figuras mais controvérsias da política brasileira. Como se
esquecer de seus objetivos de “varrer” a corrupção do país, de promover uma espécie de
política de novo tipo com relação ao diálogo com o parlamento ou mesmo suas
intervenções em questões da vida comum dos cidadãos, tais como a proibição do uso de
biquínis? Polêmicas à parte, foi durante o governo do paulista que se verificou um maior
esforço de universalização da política externa brasileira. Por meio da chamada Política
Externa Independente (PEI), caraterística também de seu sucessor João Goulart, o Brasil
diversificou sua agenda diplomática pelo mundo, aproximando-se dos Estados recém-
independentes asiáticos e africanos, de alguns países socialistas e tomando posições até
então inéditas com relação a temáticas senveis do ponto de vista geopolítico.
Antes de chegar ao cargo mais alto de nossas estruturas políticas, Jânio Quadros
realizou um conjunto de viagens pelo mundo. Em 1954, após ser recebido pelo Papa, o
então governador paulista se preparava para uma viagem ao Egito:
Jânio Quadros, governador eleito do Estado de S. Paulo, partiu hoje de Roma, a
fim de visitar Nápoles e Capri, antes de embarcar para o Egito [...] Acompanha-o
nesta viagem o sr. Olavo Fontoura, industrial de S. Paulo. As duas
personalidades que partiram de automóvel para Nápoles retornarão a Roma na
manhã de sábado. (O SR. JÂNIO, 1954, p. 1).
O que levou o político brasileiro a visitar o Egito? Como se sabe, o Terceiro-
Mundismo foi objeto de muita admiração daquele presidente. Além de ter condecorado
Che Guevara com a ordem mais importante de nosso Estado, Quadros era admirador de
muitas das principais lideranças do chamado “Não Alinhamento”, inclusive do próprio
26
Há algumas controvérsias acerca da ligação de Fátima com Farouk. Algumas fontes sugerem que eles
não seriam irmãos, mas antigos amantes. Fátima Scherriffa Chirine é relacionada como esposa de Hassan
Omar Tousson, príncipe de Alexandria e primo do monarca egípcio.
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Nasser. É perceptível que o espírito de Bandung e Belgrado influenciaram a concepção
do presidente acerca das estruturas políticas mundiais (MENDES, 2017),
27
o que reforça
a necessidade de investigarmos mais de perto o conteúdo e os efeitos dessa viagem.
Considerações finais
Enquanto dois Estados relevantes para as suas respectivas regiões, Brasil e Egito
possuíram histórias entrelaçadas em alguns momentos. Seja na convergência em torno
do desenvolvimento, na luta pela descolonização em determinados momentos e nos
discursos em prol das mudanças no âmbito do sistema internacional, estes países
estiveram presentes em importantes páginas da trajetória mundial da segunda metade do
século XX. A partir desse reconhecimento, nada mais justo do que nos questionarmos
sobre o nível de relações entre o governo do Cairo e o Rio de Janeiro.
Uma revisão bibliográfica apontou a existência de muitas lacunas acerca dessa
temática. Além de abordagens acerca do posicionamento brasileiro com relação ao
conflito árabe-israelense, em linhas gerais, encontramos pesquisas que versavam
especificamente sobre as relões durante os governos Lula e Costa e Silva. Ainda como
parte desse relacionamento, encontramos pesquisas sobre o Batalo Suez, a migração
de judeus egípcios para o Brasil e uma breve consideração mais geral sobre este laço
bilateral. A primeira metade dos anos cinquenta ainda é um silêncio na historiografia.
Tendo como uma das principais tarefas a construção de um mundo recortado
naquilo que se considera relevante para um público alvo ou consumidor, os jornais são
excelentes fontes para o estudo da política internacional, seja no âmbito das
representações, seja a partir da contextualização de determinados processos históricos.
Ao escolhermos esta fonte história para refletir e analisar as possibilidades de trabalho
das relações Brasil Egito na primeira metade dos anos 50, sem desconsiderar seu grau
de ligão com a formação de uma Política Externa além do eixo ocidental, estamos nos
debruçando sobre a segunda função.
Ao dar ênfase ao jornalismo internacional, o periódico baiano, atrelado às mais
importantes agências de notícias transnacionais, fornecem-nos um conjunto de textos e
informações gerais que podem servir de base para a realização de pesquisas em relações
internacionais, como essa que estamos a sugerir.
27
A Conferência de Bandung reuniu cerca de 28 representantes afro-asiáticos (22 asiáticos e 6 africanos),
entre movimentos de libertação e países independentes. Dentre suas principais deliberações, destacam-se
o interesse em torno da cooperação entre as nações dos dois continentes, a crítica ao racismo e ao
colonialismo (EDMONDSON, 2010, p. 1015).
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Negociações para a eleição dos mandatos no Conselho de Segurança, troca de
honrarias entre os chefes de Estado e interesses no posicionamento do Brasil favorável
ao Egito na questão sudanesa denotam um reconhecimento mútuo sobre a importância
de cada país. Tais episódios, em maior ou menor medida, são evidências de que havia um
mínimo de relações entre as duas partes, ainda que não comparáveis com as dinâmicas
existentes em relação a outros países.
Pensando especificamente na diplomacia brasileira, a natureza processual da
formação daquilo que compreendemos como Política Externa Independente passa
também pelo entendimento da posição deste país com relão aos países-chave do
futuro Terceiro Mundo. Compreender as relações Brasil Egito
o período aqui
destacado, antes de tudo, permite entender qual a dimensão do relacionamento de nosso
país fora do eixo Europa, Estados Unidos e América Latina. O “porta voz do mundo
árabe” (BEZERRA MENEZES, 2012, p. 218) é uma passagem necessária para os estudos
da nossa inserção no sistema internacional a partir dos anos 50.
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