“Para favorecer a cristandade”
:
as
iniciativas de coerção à conversão
dos órfãos em Goa (1540-1606)
“To favor Christianity”
:
the initiatives
of coercion to the conversion
of orphans in Goa (1540-1606)
ANJOS, Camila Domingos dos
*
RESUMO: Conquistada em 1510 por Afonso
de Albuquerque, Goa se tornou
gradativamente a capital do Estado da Índia e
um polo de difusão do catolicismo no Império
português ao leste. O projeto de
evange
lização das populações locais
constituía mais do que uma obrigação moral
e visava garantir a conservação do poder
imperial português por meio da
homogeneização dos súditos pela religião. A
partir dessas considerações, objetivamos
neste artigo analisar as iniciativas
promovidas por parte da Igreja Católica e da
administração colonial portuguesa para
converter uma categoria específica entre os
nativos: os menores órfãos de até quatorze
anos de idade.
PALAVRAS-CHAVE: Órfãos; conversão; Goa;
menores.
ABSTRACT: Conquered in 1510 by Afonso de
Albuquerque, Goa gradually became the
capital of the State of India and a center of
diffusion of the Catholicism in the
Portuguese Empire to the east. The project
of evangelization of the local populations
constitut
ed more than a moral obligation
and aimed at guaranteeing the conservation
of the Portuguese imperial power through
the homogenization of subjects by religion.
Based on these considerations, we seek to
analyze the initiatives promoted by the
Catholic Church and the Portuguese colonial
administration in converting a specific
category among the natives: the orphans
"minors" of up to fourteen years of age.
KEYWORDS:
Orphans; conversion; Goa;
minors.
Recebido em: 22/07/2019
Aprovado em: 15/10/2019
*
Mestre em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Seropédica, estado do Rio
de Janeiro (RJ), Brasil. Doutoranda pelo do Programa de Pós-Graduação em História da UFRRJ, Seropédica
(RJ) e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). E-mail:
camila.hstr@hotmail.com. Ressalta-se que as conclusões apresentadas neste artigo são oriundas da
dissertação A Cruz e o Império: a expano portuguesa e a cristianização das bailadeiras e viúvas em
Goa (1567-1606).
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Introdução
Situada na costa ocidental da Índia, Goa tornou-se uma conquista militar
portuguesa em 1510. Os portugueses adotaram medidas político-administrativas a fim de
garantir a manutenção dessa conquista, o Estado da Índia, que se tornou estratégica para
sustentar a ampla rede de feitorias e fortalezas que os lusitanos estabeleceram no
Oriente (THOMAZ, 1994). Além do aparato militar e administrativo, a historiografia tem
demonstrado o papel da expansão da fé católica como uma das bases de sustentação do
poder português em Goa. Graças ao proselitismo católico, viabilizado pela ação das
ordens religiosas e da construção de ampla rede paroquial, os portugueses tentaram
instituir uma hegemonia cristã em Goa, região em que outrora predominava a presença
de populações muçulmanas e hindus.
A historiografia referente ao Oriente português tem abordado
predominantemente os agentes da conversão, isto é, o papel dos missiorios,
especialmente os jesuítas (TAVARES, 2004), os franciscanos (FARIA, 2013a) e os
agostinhos (GONÇALVES, 2014), além dos clérigos seculares naturais de Goa estes
chegaram a ser caracterizados como colonizadores internos (XAVIER, 2005) e dos
arcebispos locais de mais destaque. O nosso objetivo consiste em analisar as estratégias
adotadas pelos agentes coloniais para que as populações nativas menores
1
interiorizassem as normas e as crenças cristãs em Goa, entre 1540-1606. É preciso
ressaltar que, ainda que nosso enfoque seja os nativos que foram alvos deste processo,
nosso estudo se baseia predominantemente em fontes históricas, especificadamente
legislações portuguesas, redigidas por agentes coloniais, que posteriormente foram
reunidas e organizadas no Arquivo Português Oriental.
No que tange a esta documentação, trata-se de uma coletânea que reúne cartas e
alvarás de reis de Portugal e de vice-reis do Estado da Índia. Ademais, o Arquivo
Português Oriental conta também com a organização das decisões tomadas nos Cinco
Concílios Provinciais que ocorreram em Goa e reuniram o arcebispo de Goa, bispos,
superiores de ordens religiosas e teólogos para promover a discussão de assuntos
relacionados ao sacramento, às responsabilidades do clero, aos pecados e aos
desvios. Uma das pautas dos decretos visava definir novas regras para a tutela de
1 A palavra "minors" é utilizada em tradução livre da palavra "menores". Segundo o Dicionário Oxford,
minor” significa "uma pessoa abaixo da idade de responsabilidade legal" ou conforme o Dicionário
Cambridge: "alguém que é jovem demais para ter as responsabilidades legais de um adulto". Nesse sentido,
ressaltamos que a tradução em inglês se aproxima do conceito de menor abordado por Antônio Manuel
Hespanha, autor ao qual nos embasamos. Na língua portuguesa, desde que o Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA) entrou em vigor no Brasil, o termo é considerado inapropriado para designar crianças e
adolescentes, pois tem sentido pejorativo por reproduzir e endossar de forma subjetiva discriminações
arraigadas e uma postura de exclusão social que remete ao extinto Código de Menores (MINOR, 2019).
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óros menores de 12 (meninas) e 14 anos (meninos), o que investigaremos.
Os documentos supracitados foram organizados em ordem cronológica por
Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara, entre 1857 a 1876, e publicados em seis fascículos
com o total de seis volumes (ARCHIVO PORTUGUEZ-ORIENTAL, 1992). Para a nossa
pesquisa, a coletânea organizada por Rivara tornou o acesso à documentação
pragmático. De um modo geral, a documentação demonstra as expectativas portuguesas
de cristianizar sistematicamente a população local e regular sua vida cotidiana. Nesse
sentido, podemos constatar que o Arquivo Português Oriental agrupa as principais
pressões exercidas pelos agentes régios e eclesiásticos, que buscaram organizar e
evangelizar a população nativa do Estado da Índia.
Objetivamos, assim, analisar as iniciativas de coerção para a conversão das
populações nativas órfãs que tinham até 14 anos, a partir dos decretos estabelecidos nos
Concílios Provinciais de Goa entre 1567 e 1606 e dos alvarás de reis de Portugal e de
vice-reis do Estado da Índia reunidos no Arquivo Português Oriental (APO) entre 1540-
1606. Por meio do cruzamento dessas fontes, perceberemos as pressões de diferentes
agentes que instigaram a conversão dos menores em Goa. Uma vez que a nossa
documentação se restringe a tentativas e pressões exercidas pelos agentes régios e
eclesiásticos, não podemos afirmar que as leis redigidas alcançaram na prática a eficácia
almejada. Contudo, a partir da documentação supracitada, podemos evidenciar os
desafios encontrados nas iniciativas que buscaram converter menores nativos.
A princípio, abordaremos o surto de evangelização que ocorreu na segunda
metade do século XVI em Goa. Em um segundo momento, elucidaremos, a partir das
legislações régias e dos decretos dos Concílios Provinciais de Goa, como o proselitismo
religioso desempenhado em Goa pode ter atingido as populações menores órfãs não
convertidas nascidas no Estado da Índia.
No contexto do Antigo Regime Português, Hespanha pontuou que os menores
constituíam um padrão para avaliar outras situações de humanidade diminuída. O que se
dizia sobre eles dizia-se também sobre rústicos, dementes ou velhos. A menoridade
geralmente estava associada à carência do ato de perceber o equilíbrio das coisas, de ter
prudência. Enquanto os menores de sete anos careciam completamente da razão e não
poderiam responder por nenhum de seus atos, os menores correspondentes à fase da
puerícia, isto é, até quatorze anos de idade, tinham alguma inteligência e capacidade de
dolo, portanto gozavam de um juízo semipleno.
Os menores eram concebidos como seres imperfeitos, mas “perfeccionáveis
quando submetidos à disciplina. Desse modo, se por um lado eram considerados
carentes de razão e juízo pleno, por outro se acreditava que poderiam ser moldados e
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educados. Todo esse regime se prolongava até os 25 anos conforme o Código Philippino.
Nesta idade, o indivíduo deixa de ser considerado incapaz e passa a ser concebido como
apto para exercer os atos da vida civil, como zelar pelos seus bens (REINO DE
PORTUGAL, 1870)
2
. Isso significa que, em uma época de vidas curtas, pelo menos em
metade do tempo de vida, o indivíduo não tinha discernimento para zelar por si, pelo
menos no ponto de vista jurídico e, em certo nível, eclesiástico (HESPANHA, 2010).
Até os 14 anos, o Código Philippino resguardava o menor dos autos processuais,
uma vez que não precisavam comparecer em juízo ou ser citado, ao contrário do menor
que já havia atingido os 14 anos, ainda que este possuísse um tutor responsável pelos
seus bens. Nesse sentido, conforme as legislações portuguesas, o marco de aceitação da
racionalidade e uso da razão por parte do menor sucedia na puberdade, quando o
indivíduo era considerado capaz de responder por seus atos.
Assim como as Ordenações do Reino, as leis eclesiásticas também distinguiam
diretrizes próprias para lidar com os menores. Monteiro destacou que, conforme o
Código de Direito Canônico, a Igreja Católica determinava que dos sete anos em diante o
menor já poderia ser penitenciado por ser detentor de algum uso da razão e, por isso, a
criança deveria ser preparada para garantir a sua salvação a partir do sacramento da
Confirmação. Ao atingir o sétimo ano, idade canônica da razão, o sacramento da
Confissão era ministrado por considerar que a criança desenvolveu alguma
racionalidade, portanto era capaz de cometer um pecado mortal. Os Sacramentos da
Eucaristia e do Matrimônio deveriam ser ministrados quando o menor atingisse a idade
da discrição, isto é, a partir dos 14 anos para os varões e a partir dos doze anos para as
meninas. Ser discreto no século XVI implicava capacidade lógica, discernimento,
consciência das escolhas e conhecimento sobre o que importava para a salvação da alma
(MONTEIRO, 2005).
Ressalta-se que a igreja não deixou de distinguir os ciclos etários. Ao estabelecer
os sete anos como idade teológica da razão, reconheceu em algum nível a possibilidade
de racionalidade por parte do menor, bem como a passagem de ciclo: o da primeira
infância para a puerícia. Preocupada com o desenvolvimento das capacidades mentais e
físicas do homem, bem como o despertar da sexualidade, a Igreja estabeleceu a
puberdade como idade mínima para contrair o Sacramento do Matrimônio.
A menoridade, portanto, abrangia uma faixa etária extensa e compreendia
diferentes fases da vida. Nosso trabalho se incide sobre a idade da puerícia, aquela que
compreende o indivíduo como capaz de cometer dolo, mas também de ser aperfeiçoado
2
Código Philippino, Livro I, Título LXXXVIII, § 27 e 28.
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ou moldado quando submetido à disciplina.
A Cruz e a Coroa: o catolicismo como pilar do Império Português no Oriente
Em Goa, a conversão da população de menores órfãos ocorreu no bojo de um
processo mais amplo de cristianização da sociedade. Conquistada em 1510, Goa
consolidou-se como capital do Estado da Índia durante a primeira metade do século XVI
e tornou-se o centro de onde emanavam as decisões políticas, econômicas e religiosas
adotadas pelos portugueses no Oriente. A capitalidade da cidade constituiu-se por meio
da transladação das principais instituições político-administrativas existentes em Lisboa
para Goa (Tribunal da Relação, Casa da Pólvora, Casa dos Contos, Conselho do Estado,
Desembargo do Paço e a Mesa da Consciência). Em 1532, por exemplo, a centralidade de
Goa foi duplicada com a instalação do bispado, elevado a arcebispado em 1557. Segundo
Madeira, este momento marcou a segunda capitalização de Goa, uma vez que a região
passou a ser sede não apenas do poder civil (do vice-reinado), mas também do
eclesiástico (SANTOS, 1999).
Xavier pontuou que podemos compreender o processo da capitalização de Goa no
bojo de uma refundação imperial inspirada no modelo imperial romano que sucedia em
Portugal a partir do reinado de D. João III. As iniciativas engendradas pelo monarca
indicavam o anseio por um modelo imperial territorial, cuja dominação política se
exerceria de forma mais efetiva sobre a população, através de uma política
homogeneizadora por meio da conversão ao catolicismo. Nesse sentido, um dos sintomas
mais evidentes desta refundação foi a tentativa de cristianizar regiões da Índia a partir
do aparato administrativo e eclesiástico supracitado, que começou a se materializar a
partir das décadas de 1530 e 1540, e buscou transladar as principais instituições
necessárias para incutir as leis e as práticas portuguesas e cristãs em Goa (XAVIER,
2003).
No Estado da Índia a evangelização das populações nativas constituiu mais do que
uma obrigação moral, como ponderou Xavier. A convicção de que os súditos deveriam
compartilhar a fé de seu Príncipe era cada vez mais forte no reino e foi este um dos
princípios a conduzir uma aliança entre as autoridades eclesiásticas e os agentes
políticos. A expectativa era de que os valores políticos fossem partilhados através dos
recursos religiosos nas partes mais longínquas do Império, às quais as autoridades régias
possuíam muito pouco acesso. Por meio de jesuítas e franciscanos, do clero secular e das
estruturas paroquiais foi possível expandir a territorialização do Império e estender
malhas administrativas (XAVIER, 2003). Nesse sentido, a religião era então um
instrumento chave para construir e consolidar o poder real. Essa articulação entre os
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poderes políticos e eclesiásticos na expansão portuguesa foi um tema bastante discutido
e enunciado há décadas por Charles Boxer, autor que postulou a aliaa estreita e
indissolúvel do trono e do altar, da fé e do império no contexto da expansão lusa
(BOXER, 1989).
Em consonância com Xavier, Marcocci pontuou que a urgência das autoridades
eclesiásticas e régias em expandir a fé católica às mais diversas populações residentes
no Estado da Índia partiu da certeza de que a conquista das almas era a única via de
consolidação do poder político no Oriente (MARCOCCI, 2012). Para cumprir este
objetivo, foram desenvolvidos, sobretudo em Goa, muitos polos dedicados a impor uma
disciplina cristã aos indivíduos. Para Marcocci, é importante ressaltar o papel dos
missionários (principalmente no que concerne aos jesuítas e aos franciscanos), cujos
trabalhos foram marcados por batismos em massa, guerras, resistências locais, episódios
de violência, contrastes e evoluções entre as autoridades régias, religiosas e as
autoridades locais (MARCOCCI, 2012).
No que concerne aos franciscanos, Faria explicou que a conquista espiritual e
temporal do Oriente desenvolvida por esta ordem religiosa foi dotada de conotações
escatológicas acerca da iminência do Juízo Final, o que reforçou a urgência da conversão
das almas e, consequentemente, implicou a prática de batismos em massa, a princípio
sem expectativa de catequização ou tradução dos preceitos cristãos para outras línguas.
Contudo, foi posteriormente iniciado, nos terrenos de atuação dos missionários, um
trabalho mais lento e amparado no ensinamento e na interiorização dos preceitos
cristãos via estratégias mais idôneas (FARIA, 2013a).
No que toca aos jesuítas, Célia Tavares pontuou que a Companhia de Jesus não
constituía um bloco monolítico e, em função disso, os métodos de conversão variaram.
Contudo, podemos pontuar algumas semelhanças quanto ao modelo de conversão dos
franciscanos nos primeiros anos após a chegada ao Estado da Índia, pelo menos no que
diz respeito à prática de batismos em massa. A princípio, foi priorizado muito mais a
quantidade de conversões do que a instrução dos conversos. Posteriormente, houve a
preocupação em aprender os idiomas locais para catequisar as populações nativas,
dentre elas os menores, e impor práticas de disciplinamento por meio da comunicação
direta e da produção de manuais explicativos pelos missionários (TAVARES, 2004).
A chegada das ordens religiosas na primeira metade do século XVI, a
implementação das principais instituições existentes no reino em Goa, bem como a
instalação do Tribunal Inquisitorial na década de 1560 exprimiam o anseio de interiorizar
nas populações goesas valores e modelos de comportamentos cristãos. Posteriormente,
foram promovidos em Goa cinco Concílios Provinciais (1567, 1575, 1585, 1592 e 1606),
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cujo resultado foi a produção de decretos que buscavam incorporar as orientações
tridentinas e impor uma disciplina cristã no Estado da Índia (FARIA, 2013b). Segundo
Boschi, o surto de evangelização culminou em uma forte intolerância religiosa e
intervenção social (BOSCHI, 1998). Similarmente, Marcocci ressaltou que o momento foi
de redefinição do panorama religioso local, com a expulsão dos brâmanes, a destruição
de pagodes (templos hindus), perseguições domésticas, confisco de terras e coerção à
conversão dos órfãos (MARCOCCI, 2012).
Com base na legislação contida no Arquivo Português Oriental e nos Concílios
Provinciais realizados em Goa entre 1567-1606, podemos perceber um esforço tanto da
Igreja quanto da Coroa para homogeneizar as sociedades locais através de uma disciplina
cristã. Palomo evidenciou que o disciplinamento social era associado ao próprio
processo de construção do Estado Moderno, que contou com o elemento religioso para
robustecer as identidades. Para o autor, a aliança entre os poderes político e religioso
era a chave para favorecer a expansão das diretrizes do disciplinamento através da ação
dos agentes eclesiásticos, como missionários, párocos e inquisidores, que em uma
atuação conjunta promoveram a territorialização dos princípios de fidelidade à Coroa e
de disciplina cristã nas partes mais periféricas do Império, onde as ações civis não
conseguiam abranger (PALOMO, 1997).
Por sua vez, os decretos dos Concílios Provinciais, segundo Ricardo Ventura,
correspondiam a uma intenção de sistematizar um conjunto de medidas pensadas para o
incremento da conversão no Oriente e o funcionamento das instituições e agentes
eclesiásticos com base nas orientações tridentinas (VENTURA, 2011). Tal legislação
evidencia a expectativa portuguesa de cristianizar a população local, ao mesmo tempo
em que foram estabelecidas determinações que visavam regular a vida cotidiana. De
modo geral, esses decretos, segregados em cinco volumes, proibiram a execução de ritos
locais e definiram novas regras para a recepção da herança e para o direito à tutela dos
órfãos por parte das viúvas.
Acerca desta última ação a tutela dos órfãos por parte das viúvas é
importante enfatizarmos que, conforme a legislação portuguesa, eram considerados
órfãos o menor de 25 anos cujos pais eram falecidos ou aqueles incapazes de se reger,
aos quais o Código Philippino mandava atribuir um curador (RODRIGUEZ, 2010). A
retirada compulsória dos órfãos de suas famílias e o sistema de privilégios para atrair
aderentes à constituíram, conforme Robinson, os dois principais métodos para
estimular e coagir a conversão das populações locais no Estado da Índia (ROBINSON,
1998). Enquanto o primeiro modo visava o sequestro de meninas de até 12 anos (idade
que pode se estender até os 14, dependendo de alvará ou decreto) e meninos de até 14
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anos de suas famílias para serem entregues a um curador cristão ou ao Colégio de São
Paulo, o segundo favorecia a conversão através da concessão de cargos e ofícios aos
convertidos.
Consideramos que o papel das populações menores não tem recebido grande
atenção da historiografia dedicada à colonização portuguesa em Goa, ainda que esses
tenham ocupado um importante papel no expansionismo ultramarino português, pois
desde o século XV, como pontuou Ramada Curto, os lusos se
serviram dos menores
como intérpretes na África, como mediadores que transmitiam os
rudimentos da fé
católica para os familiares indígenas ainda não convertidos no Brasil (a partir do século
XVI) e como auxiliares de padres nas escolas e igrejas de Goa, para citar alguns
exemplos (CURTO, 2009).
A conversão dos menores à fé católica constituiu, desde a chegada dos
portugueses ao Oriente, um meio de criar intérpretes. Contudo, apenas a partir de
meados do século XVI é que poderemos falar de esforços mais incisivos e regulares que
visavam convertê-los. O grande incentivo partiu tanto das autoridades régias, como
também das eclesiásticas que buscaram se afirmar e evangelizar a partir do recurso de
intérpretes, do esforço em aprender a língua local e da difusão do
portugs para as
crianças nativas.
Tendo em vista que os órfãos não ficaram alheios ao projeto colonizador cristão
português e foram objeto de atenção das instituições eclesiásticas e régias, indagamo-
nos como os mesmos apareceram na legislação referente ao Estado da Índia. Quais as
iniciativas tomadas para promover sua conversão? Quais as expectativas depositadas
sobre eles?
Os órfãos nativos: coerção à conversão e intromissão familiar
A partir de 1559 a Coroa portuguesa promulgou uma série de legislações para
promover a retirada dos órfãos menores da tutela de suas famílias gentias no Estado da
Índia. A iniciativa ocorreu no governo da regente D. Catarina, que estabeleceu que todo
menor cujo pai, mãe, avós e demais parentes falecessem deveria ser acolhido pelo Juiz
dos Órfãos para ser entregue ao Colégio de São Paulo, onde seriam batizados e
doutrinados.
3
Se por ventura o Colégio não pudesse agasalhá-los e acolhê-los, os padres
deveriam se encarregar de conduzir os menores a outros colégios e mosteiros do Estado
3 O cargo do juiz dos órfãos possuía uma importância central para o cumprimento do decreto acerca da
retirada compulsória dos órfãos. Conforme Coates, esse cargo tinha a função de supervisionar os órfãos,
bem como administrar os bens do pai falecido, até que seus filhos tivessem idade suficiente para geri-los,
isto é, 25 anos de idade idade que um indivíduo, principalmente do sexo masculino poderia iniciar o
processo legal para requerer sua emancipação (COATES, 1998).
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da Índia (ARCHIVO PORTUGUEZ-ORIENTAL, Fasc. V.). A lei foi reforçada em 1564 por
D. Antão de Noronha (Vice-Rei do Estado da Índia), para que se fizesse cumprir o que foi
estabelecido anteriormente. A única distinção entre esses documentos está na definição
da idade do menor a ser acolhido. Se na lei de 1559 menciona-se apenas que sejam
amparados os menores que ainda não tinham a idade da razão, em 1564 é definido que os
mesmos deveriam ter até 14 anos, tanto as meninas, quanto os meninos (ARCHIVO
PORTUGUEZ-ORIENTAL, Fasc. V.).
Em 1567, as autoridades eclesiásticas também evidenciaram uma preocupação em
relação aos órfãos filhos de infiéis no Primeiro Concílio Provincial de Goa. O decreto 13
da ação segunda impôs a retirada dos menores de 14 anos de suas famílias caso o pai
viesse a falecer. Após serem retirados dos infiéis, aos órfãos deveriam ser atribuído um
curador ou tutor cristão para que convivessem com pessoas virtuosas e aprendessem
bons costumes até que atingissem a idade da razão e, assim, pudessem optar pela fé que
queriam seguir. Quanto aos bens dos respectivos menores, esses deveriam ser
gerenciados pelo juiz dos órfãos, uma vez que sob a perspectiva portuguesa os familiares
gentios não ofereciam cuidados necessários a essas heranças, pois como “se ve por
experiência, que os parentes gentios, em cujo poder ficao, lhas roubao” (ARCHIVO
PORTUGUEZ-ORIENTAL, Fasc. IV, p. 350).
Em 1575, o governador Antônio Moniz Barreto promulgou um alvará instruindo
que os órfãos infiéis de Goa e Bardez deveriam ser entregues ao Colégio de São Paulo,
ao passo que os órfãos de Salsete deveriam ser entregues aos capitães daquelas terras,
pois estes se responsabilizariam por fazer com que os menores tivessem acesso ao
Colégio de Margão, onde aprenderiam a doutrina cristã. O alvará decretou que aqueles
que escondessem os órfãos deveriam receber como pena o degredo para as galés e a
perda de seus bens e fazendas, sendo que a metade iria para os catecúmenos e a outra
metade para quem os acusasse (ARCHIVO PORTUGUEZ-ORIENTAL, Fasc. V.).
Ao serem retirados de seus entes familiares, os órfãos deveriam ser acolhidos
pelo Juiz dos Órfãos, esses que também deveriam se encarregar de levar os menores ao
Colégio de S. Paulo, tal como as provisões anteriores estabeleceram. Acerca do Colégio
de São Paulo, ressalta-se que antes de ser conferido à administração jesuíta, o
estabelecimento era nomeado como Confraria de Santa Sé, um lugar já caracterizado
pelo intento de promover a conversão das populações locais gentias. Ao ser transferido
para os jesuítas, o estabelecimento se tornou um grande centro de conversão de
menores nascidos no Oriente, que poderiam ser de diferentes proveniências (malabares,
canarás, bengaleses, malaios, etc.) e etnias (FARIA, 2013a).
O ideal era que os alunos estivessem na faixa etária dos 13 aos 15 anos de idade,
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isso porque havia uma expectativa de que esses jovens possuíssem o domínio efetivo da
sua língua materna para que mais adiante, quando estivessem instruídos e convertidos à
fé católica, utilizassem tal competência linguística para converter gentios conterrâneos
em seu próprio idioma. Antes dos 13 anos, temia-se que o idioma fosse esquecido pelos
menores (VENTURA, 2011).
No mesmo ano da provisão de Antônio Moniz Barreto, especificadamente no
Segundo Concilio Provincial de Goa (1575), o decreto que retirava compulsoriamente os
órfãos de famílias gentias foi reafirmado pelas autoridades eclesiásticas que revogaram o
direito natural das mães gentias de criarem seus filhos, uma vez que elas
“maliciosamente os mudão [os órfãos] para terras dos infiéis, por os tutores lhos não
tomarem”. Em função disso, determinou-se “que quando o pae gentio fallecer, o juiz dos
órfãos tire do poder da mãy os filhos órfãos” (ARCHIVO PORTUGUEZ-ORIENTAL, Fasc.
IV, p. 92-93). Caso o menor ainda precisasse de amamentação, deveria ser entregue a
uma ama cristã à custa da fazenda dos órfãos ou da própria mãe.
O decreto enfatizou que a esses menores precisavam ser ensinados os “bons
costumes”, o que não seria possível em terras de infiéis, consideradas perigosas e uma
ameaça à alma dos órfãos, pois nessas regiões os mesmos estariam sendo privados de
conhecer a fé católica, pela qual se salvariam. Desse modo, para evitar o deslocamento
dos órfãos, o Concílio recomendou que os padres se atentassem aos moradores de sua
freguesia para que quando falecesse um pai, o juiz dos órfãos fosse informado o mais
breve possível para poder executar esta lei. Não podendo o juiz dos órfãos executá-la, o
Vigário da Vara deveria fazê-lo (ARCHIVO PORTUGUEZ-ORIENTAL, Fasc. IV.).
A urgência em retirar essas crianças de suas mães gentias devia-se à necessidade
em dar conta dos deslocamentos que sucediam e também da “desumanidade” que ocorria
aos menores, que além de ficarem suscetíveis “à falsa seita de sua mãe”, que os
“lançavam às feras” em dias supersticiosos, por vezes eram assassinados para que não
fossem sequestrados pelas autoridades eclesiásticas. “Antes os matarão, quando outro
remédio não tiveram” (ARCHIVO PORTUGUEZ-ORIENTAL, Fasc. IV, p. 92).
Em 1582, o incentivo deu continuidade por parte da Coroa, através da provisão do
Rei que, para o aumento da cristandade na Índia, decretou que deveriam ser enviados ao
Colégio de S. Paulo apenas os menores que não tinham pai, mãe ou qualquer parente
ainda vivo. Desse modo, o Rei notificou o vice-rei, o governador, os capitães e os demais
oficiais de justiça que nenhum menor de Goa ou das ilhas adjacentes fossem retirados de
suas famílias (ARCHIVO PORTUGUEZ-ORIENTAL, 1992, Fasc. V.).
A provisão lançada buscava reiterar a lei promulgada em 1559, e pode ter
significado um abrandamento frente às políticas de coerção a conversão em função da
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insatisfação da população local, que se manifestava através do deslocamento dos órfãos
para as terras não gerenciadas pela coroa portuguesa ou através de meios que
buscassem escondê-los dos oficiais de justiça ou assassiná-los, para que não fossem
tomados.
O alvará régio de 1582, ao retomar a provisão de 1559, distinguia-se até então das
formulações dos agentes eclesiásticos decididas nos Concílios Provinciais, essas que
reforçavam a necessidade de retirar os órfãos das famílias gentias independentemente
de a mãe ou demais familiares estarem vivos. Assim, podemos dizer que a questão dos
órfãos foi marcada por discussões, convergências e divergências entre as autoridades
religiosas e régias, que, embora atuassem para um objetivo comum de conversão, nem
sempre promoveram esforços idênticos ou imutáveis. As legislações ganharam
contornos distintos de acordo com a realidade local, as resistências e as dificuldades
impostas pelas populações locais e, portanto, foram passíveis a alterações.
Em 1585, a Igreja buscou contornos diferentes dos concílios anteriores para
favorecer a retirada dos órfãos sem causar grandes tumultos. O Terceiro Concílio
provincial de Goa especificou que os menores filhos de infiéis a serem retirados de seus
entes familiares deveriam ser órfãos tanto de pai quanto de mãe, o que representou uma
mudança significativa da atuação eclesiástica, que desde o Segundo Concílio havia
imposto que a viúva deveria perder o direito natural de cuidar dos seus filhos menores. O
Concílio também pontuou a necessidade de se cumprir esta lei com maior agilidade
possível, a fim de evitar que estes não fossem migrados para terra firme, “onde já tem
passado grande numero deles, e com isso se deixão de converter muitas almas
(ARCHIVO PORTUGUEZ-ORIENTAL, Fasc. V, p. 129).
O Terceiro Concílio provincial considerou necessário reforçar a lei, que embora
promulgada anteriormente, parecia não surtir o efeito esperado, muitas vezes pelo fato
de que as regiões não possuíam juiz dos órfãos para executá-la. Assim, para evitar a
disfunção da lei, recomendou-se que pudesse se recorrer a outros juízes, caso não
houvesse juiz dos órfãos (ARCHIVO PORTUGUEZ-ORIENTAL, Fasc. V.).
Conforme as legislações oscilavam, o arcebispo Aleixo de Menezes pontuou que o
“povo infiel” do arcebispado de Goa entre eles, brâmanes, banianes e guzarates
pediu que a lei referente aos órfãos fosse esclarecida, visto que eles tinham dúvidas
sobre o que deveria ser cumprido: se eram os decretos estabelecidos nos Concílios ou se
eram as leis promulgadas pela Coroa.
Aleixo de Menezes considerou importante elucidar a lei para que a população a
cumprisse melhor e os gentios que fossem culpados de “passar os órfãos às outras
bandas” ou de escon-los fossem punidos pelo ato de malícia e não pela ignorância.
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Ficou decidido em 1600 que os órfãos a serem recolhidos, independentemente de serem
gentios, mouros ou judeus, fossem meninos de até 14 anos e meninas de até doze anos
sem nenhum parente vivo. O Pai dos Cristãos deveria levá-los para o Colégio de São
Paulo ou a casa dos catecúmenos para serem batizados e receberem instruções cristãs.
4
As meninas que têm mais de 12 anos e os meninos de mais de 14 anos sendo ainda
menores e com a mãe ou avós vivos deveriam ser encaminhados a tutores cristãos.
Além disso, o juiz dos órfãos deveria fazer um inventário de suas heranças (ARCHIVO
PORTUGUEZ-ORIENTAL, Fasc. V.).
A provisão do Arcebispo não se manteve por muitos anos. No Quinto Concílio
Provincial de Goa (1606) ficou decidido que os menores que não tivessem pai deveriam
ter tutor cristão, a quem seus bens e fazendas seriam entregues. O gerenciamento dessa
renda, por outro lado, não era tarefa apenas do tutor, mas também do juiz dos órfãos,
que deveria ter o controle dos registros sobre toda a movimentação do dinheiro. Era
considerado também como dever do tutor cristão promover o batizado do menor ainda
que a mãe fosse viva e se opusesse, pois o tutor sucederia o lugar do pai, tendo, desse
modo, autorização para isso (ARCHIVO PORTUGUEZ-ORIENTAL, Fasc. IV.).
É interessante notar que os Concílios também adotaram uma postura precavida, a
fim de evitar que os órfãos fossem deslocados para terras firmes.
5
O decreto 9 da ação
segunda do Quinto Concílio pontuou que muitos gentios deixavam para se converter na
hora de sua morte, quando por vezes encontravam impedimento, principalmente quando
sua esposa e outros parentes os deslocavam para as “terras de mouros”, onde mesmo
que quisessem os batizar, não conseguiriam.
Neste decreto, as mulheres foram acusadas
novamente de se deslocarem maliciosamente para terras não portuguesas a fim de evitar
que seus filhos fossem retirados de sua tutela caso seus respectivos maridos
adoecessem e viessem a óbito. Em função disso, pelo bem da conversão e da salvação, o
decreto solicitou que o rei fizesse valer a lei que nenhum infiel enfermo pudesse ser
movido para terras firmes “que não possa ir por seus pés, e estatua graves penas aos
que os levarem”, pois nessas terras tentam o curar através de cerimônias (ARCHIVO
4 Sabemos que a instituição do Pai dos Cristãos buscou zelar pelos menores considerados órfãos e instigar
a sua conversão. Basicamente, o Pai dos Cristãos foi uma instituição exclusiva das missões católicas no
Oriente Português, que buscava integrar as populações nativas conversas. Cabia ao Pai dos Cristãos zelar
pelos neófitos e atender suas necessidades para que estes não retrocedessem as suas antigas práticas.
Desse modo, o Pai dos Cristãos assumia o papel de Pai dos nativos e embora tenha sido um cargo laico, foi
constantemente ocupado pelo clero regular (AMES, 2008; WICKI, 1969).
5 O termo "terras firmes" é utilizado para se referir a territórios não gerenciados pela Coroa portuguesa
no Oriente. Ressalta-se que esses territórios poderiam estar sob soberania hindu ou muçulmana. O termo
existe nas fontes do século XVI e também XVII. Por exemplo, em 1560 o jesuíta Luís Fróis escreveu:
“nestas terras firmes [...] que se chamam Salcete, há perto de mil cristãos, e por lá estarem misturados
com os gentios e tão vizinhos dos mouros, careceram até agora de quem os cultivasse e viviam quase
como os mesmos gentios.” (WICK, 1956, p. 742-743, grifo nosso).
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PORTUGUEZ-ORIENTAL, Fasc. IV, p. 209). O decreto sugeriu também que o rei
proibisse que em período de enfermidade do pai, os filhos fossem levados para terras
firmes, para evitar que a lei fosse descumprida.
Ressaltamos que embora a nossa documentação não abarque a seguinte questão,
o esforço de retirar dos órfãos também foi desempenhado por ordens religiosas. Faria
pontuou que os franciscanos foram responsáveis por executar medidas coercivas e
interferências no cotidiano, estas que suscitaram diversas reações das populações locais
contra a ação dos frades que retiravam de forma compulsória os menores de suas
famílias. Conflitos, espancamentos, denúncias e assassinatos foram formas de reações
locais (FARIA, 2013a).
Em Bardez, no Colégio dos Reis Magos, os franciscanos também foram
responsáveis por instruir e catequisar os órfãos e os meninos filhos de famílias
prestigiosas. Além do latim e dos ensinamentos dos “bons costumes”, ocasionalmente
havia cursos de concani, filosofia e teologia. Provavelmente os meninos de estratos
sociais baixos eram ensinados separadamente dos filhos das elites locais, que não
recebiam apenas o catecismo, mas também eram ensinados a cantar, servir a missa,
ajudar em conventos, praticar orações mentais (FARIA, 2013a).
A pauta referente à questão dos menores se estende para além do recorte
proposto neste trabalho. O livro do Pai dos cristãos, por exemplo, evidencia que em 1718
o alvará do vice-rei Luiz de Menezes ainda tentava regular tal situação, o que expressa
uma dificuldade por parte dos agentes portugueses de fazer com que a populão local
incorporasse as legislações impostas. Ademais, além da difícil execução desta lei, a Coroa
portuguesa também precisou encarar escândalos e polêmicas que envolviam o juiz dos
órfãos e o uso indevido do dinheiro dos menores. A documentação analisada evidencia
que o dinheiro era utilizado a benefício do próprio Juiz dos órfãos ou para outras funções
que não eram referentes aos menores. Nem sempre esse dinheiro era reposto (ARCHIVO
PORTUGUEZ-ORIENTAL, Fasc. V.). Suely Almeida abordou o fato de que,
aparentemente, a facilidade de aproximar-se do patrimônio dos órfãos representou uma
oportunidade para o juiz dos órfãos realizar atos desonestos (ALMEIDA, 2003).
Coates acentuou que o cargo quando seguido corretamente exigia tempo, em
função dos levantamentos feitos sobre os órfãos e os constantes registros que deveriam
ser feitos acerca do controle de seus bens. Entretanto, os salários foram considerados
baixos para um serviço desgastante. Em 1590, declarou-se que o cargo nunca teria
sofrido um reajuste salarial (COATES, 1999).
De modo geral, a retirada compulsória dos órfãos, bem como o controle da
herança dos menores por parte dos portugueses, representava um dos meios pelo qual a
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Igreja e a Coroa buscavam determinar o curso da vida das viúvas hindus e de seus filhos
menores de 14 anos, incentivando, de maneira coerciva, essas mulheres a se
converterem, para que, assim, pudessem tutelar seus filhos novamente. Havia então uma
expectativa em relação aos órfãos e também às viúvas hindus para que elas se
convertessem e, a partir de seu batismo, outros familiares tomassem a iniciativa.
Ademais, a conversão permitia que essas mulheres se casassem novamente. Muitos
portugueses podem ter sido atraídos pelos bens que os hindus deixavam ao morrer. O
casamento dessas viúvas com os portugueses pode ter sido visto pela Coroa como uma
forma oportuna de promover o enraizamento dos portugueses em Goa e nas terras
adjacentes. O casamento também seria oportuno, pois as terras estariam sob maior
influência da Igreja e da Coroa, através da família batizada.
As fazendas e as terras são um fator fundamental a ser acentuado, pois sob
controle português seja do tutor dos órfãos ou dos possíveis maridos dessas viúvas
poderia ser facilitada a promoção de mais conversões, através da abertura de territórios
e passagens para missionários e padres, prelados em lugares em que o poder real não era
tão instituído.
As ações eclesiásticas e régias fizeram das viúvas e dos órfãos gentios um alvo de
suas expectativas proselitistas e de seus interesses financeiros. Esperava-se que esses
nativos menores se tornassem vassalos fiéis, obedientes, intérpretes, disciplinados e que
não apenas incorporassem os preceitos católicos como também os estendessem a
outros. Acreditamos que estrategicamente as populações menores podem ter sido
consideradas mais dóceis mais fáceis de serem disciplinadas, controladas e
incorporadas ao serviço da Coroa e da Igreja de Goa. Os menores “nativos”,
conhecedores das línguas locais, tornavam-se importantes mediadores entre as
sociedades locais e as comunidades portuguesas que se estabeleciam no Oriente, sendo
essenciais no trabalho missionário como intérpretes e como auxiliares na confecção de
catecismos e cartilhas em línguas nativas.
Mendonça destacou que os livros catequéticos escritos nos idiomas locais foram
de grande suporte aos que pouco compreendiam o português. Aos meninos que
conheciam melhor o catolicismo, eram depositadas expectativas de promover maiores
evangelizações. São Francisco Xavier acreditava que a instrução dos menores poderia
inspirar outros nativos que, ao perceberam a devoção e o exemplo dos menores, iriam
aderir à fé católica (MENDONÇA, 2002). Havia também a expectativa de que os
menores educados nos rigores do cristianismo poderiam se tornar melhores cristãos que
seus pais. Entretanto, as iniciativas de conversão dos mesmos podem ter sido mais
trabalhosas do que se esperava.
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A própria documentação dos Concílios Provinciais e da legislação contida do
Arquivo Português Oriental nos evidencia que a imposição da disciplina cristã em Goa foi
marcada por obstáculos, nuances, contrastes entre as autoridades régias e eclesiásticas
e episódios de violência que delinearam os desafios encontrados pelos portugueses
frente a uma população que resistiu dentro do possível às tentativas de interferências
impostas. A necessidade de reafirmar constantemente os decretos também nos oferece
indícios de como essa legislação poderia não estar sendo cumprida.
Esconder os filhos, assassiná-los ou passá-los às terras firmes parecem ter sido
meios utilizados pelas viúvas para contornar as leis que promoviam a retirada
compulsória de seus filhos menores. É possível que essas passagens não eram tão
difíceis de serem realizadas nas Velhas Conquistas de Bardez, Salcete e Tiswadi,
províncias pequenas de respectivamente 264 km², 355 km² e 166 km². Uma vez que a
Coroa não tinha um controle absoluto de todo o Estado da Índia, nem da transitoriedade
dos indivíduos, é interessante percebermos como as populações locais podem ter
usufruído da porosidade das fronteiras geográficas para burlarem as tentativas de
intervenção em seus costumes, arranjos familiares e religião.
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