Faces da História
, Assis/SP, v.6, nº2, p.238-253, jul./dez., 2019
tradução nossa).
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A ideia de o “oriental” ser o “reverso” do cavalheiro/europeu é
bastante esclarecedora pois é uma forma de ver o “ocidental” em espelho ao “oriental”,
sendo um dos tipos de recurso da retórica da alteridade de Burton. Com essa
observação, o explorador tem por intuito “traduzir o outro” – nesse caso, o “oriental
muçulmano” – em termos de um “saber compartilhado” com o seu leitor inglês, para
fazer com que esse público acredite no outro – Abdullah – que está sendo construído
nas páginas do relato (HARTOG, 2014, p. 41).
Para exemplificar essa definição, Burton descreveu o modo como um “indiano
muçulmano” bebia um copo de água:
Para nós [ocidentais], é uma operação bem simples, mas a sua [do muçulmano]
performance inclui ao menos cinco novidades. Em primeiro lugar, ele agarra o
copo como se fosse o pescoço de um inimigo; em segundo, ele profere: “Em
nome de Allah, o Misericordioso, o Misericordiador” antes de molhar seus
lábios; em terceiro, ele embebe os líquidos, engolindo-os, e não aos goles como
deveria, e termina com um grunhido satisfeito; em quarto, antes de afastar o
copo do rosto, ele sussurra: “Abençoado seja Allah” – algo cujo significado
completo só se compreende no deserto; e, em quinto, ele retruca: “Que Allah
torne aprazível para vós”, ao que seu amigo lhe deseja educadamente: “Prazer e
saúde!” Ele também é cuidadoso em evitar o ato irreligioso de beber o elemento
puro estando em pé, tendo em mente as três exceções reconhecidas: o fluido do
poço sagrado de Zam-Zam, a água distribuída em atos de caridade, e a que
permanece depois do wuzu, a ablução menor. Além do mais, na Europa, onde as
duas mãos são usadas indiscriminadamente, esquece-se do uso exclusivo da
mão direita, a manipulação do rosário, o abuso da cadeira – pois o oriental
genuíno coloca as suas pernas para cima, parecendo estar tão confortável nesta
posição quanto um marinheiro no lombo de um cavalo trotando – com os dedos
pés colocados retos na frente, o olhar sério e o hábito de proferimentos
devotos” (BURTON, 2014, v. 1, p. 16, tradução nossa).
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Ainda que não a tenha referenciado diretamente, é provável que Burton tenha
retirado essa descrição das sunnas do Profeta Muhammad, o conjunto de regras de bom
comportamento que se espelha nas ações do próprio fundador da religião islâmica e que
os muçulmanos procuram seguir. De acordo com as sunnas, ao beber é preciso que o
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[No original] “the difference between a gentleman and his reverse, -- namely, that both perform the same
offices of life, but each in a several and widely different way – is notable as applicable to the manners of
the Eastern as of the Western man]” (BURTON, 2014, v. 1, p. 6).
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[No original] “Look, for instance, at that Indian Moslem drinking a glass of water. With us the operation is
simple enough, but his performance includes no fewer than five novelties. In the first place he clutches his
tumbler as though it were the throat of a foe; secondly, he ejaculates, “In the name of Allah the
Compassionate, the Merciful!” before wetting his lips; thirdly, he imbibes the contents, swallowing them,
not sipping them as he ought to do, and ending with a satisfied grunt; fourthly, before setting down the
cup, he sighs forth, “Praise be to Allah”—of which you will understand the full meaning in the Desert; and,
fifthly, he replies, “May Allah make it pleasant to thee!” in answer to his friend’s polite “Pleasurably and
health!” Also he is careful to avoid the irreligious action of drinking the pure element in a standing position,
mindful, however, of the three recognised exceptions, the fluid of the Holy Well Zemzem, water distributed
in charity, and that which remains after Wuzu, the lesser ablution. Moreover, in Europe, where both
extremities are used indiscriminately, one forgets the exclusive use of the right hand, the manipulation of
the rosary, the abuse of the chair,—your genuine Oriental gathers up his legs, looking almost as
comfortable in it as a sailor upon the back of a high-trotting horse—the rolling gait with the toes straight to
the front, the grave look and the habit of pious ejaculations” (BURTON, 2014, v. 1, p. 16).