Faces da História
, Assis/SP, v.6, nº2, p.324-348, jul./dez., 2019
Neste artigo, abordaremos as hagiografias de alguns destes “amigos de Deus”,
escritas por Ibn ʿArabī de Múrcia,
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considerado um dos grandes escritores esotéricos do
mundo islâmico, na obra intitulada: Epístola do Espírito da Santidade sobre o Exame de
Consciência da Alma
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– Risālat Rūḥ al-Quds fī muḥāsabāt al-Nafs
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-, cuja escrita fora
iniciada em Al-Andalus e finalizada provavelmente em Meca, no início do século VI da
Hégira.
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O documento foi composto como um tratado, dividido em três partes: uma
crítica às irmandades místicas que o autor conheceu durante sua estadia no Egito; um
aprofundamento do método do exame de consciência da alma (muḥāsaba) e as
hagiografias, que segundo o próprio autor, tinham por foco demonstrar como em sua
época não estavam ausentes os sinceros “homens de Deus” (ASÍN PALACIOS, 2005, p.
85). Esta obra foi destinada a um amigo e companheiro de caminhada mística do autor,
ʿAbd al-Azīz al-Mahdwī, que vivia em Túnis.
Nosso foco será a análise da parte da obra que compreende o resumo dos relatos
das hagiografias dos mestres andaluzes, que contém 55 hagiografias de mestres
esotéricos
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andaluzes e magrebinos, inspiradores e iniciadores humanos de Ibn ʿArabī
na disciplina do conhecimento das realidades divinas, desde o primeiro mestre a
aparecer no escrito, Abū Já’far Aḥmad Al-͑Uraybī, até Fāṭima bint Ibn al-Muṯanā.
Escolhemos para apresentar apenas alguns destes mestres, sendo eles: Ṣāliḥ al-‘Adawī;
Abū ʿAbd Allāh Muḥammad al-Ḫayyāt, o alfaiate, e Abū al-‘Abās Aḥmad al-Išbīliyān; Abū
ʿAbd Allāh Muḥammad bin Ašraf al-Rundī; ʿAbd Allāh al-Ḫayyāṭ; Šams Umm al-Fuqarā .
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Al-Šayḫ al-akbar (O maior dos mestres), Ibn Aflatūn (O Platonista), Muḥyī al-Dīn (Vivificador da Fé),
foram alcunhas atribuídas a Muḥammad b. Alī b. Muḥammad Ibn al- ͑Arabī al-Ṭa’ī al-Ḥātimī (ca. 1165-1240),
autor de obras esotéricas e considerado um dos maiores místicos muçulmanos. Nascido em Múrcia, em Al-
Andalus, falecido e sepultado em Damasco, foi o autor de mais de 300 obras, conhecidas ou citadas. Neste
trabalho, utilizaremos o termo “akbari” como adjetivo que referencia os escritos deste mestre andaluz.
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A principal tradução parcial desta obra encontra-se na Vida de santones andaluces (ASÍN PALACIOS,
2005). Há uma tradução inglesa que mescla esta Epístola do Espírito da Santidade com outra obra akbari,
al-Ḏurrat al-faḫira, também uma obra em que há excertos hagiográficos (IBN AL-ʿARABĪ, 2007).
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Tivemos acesso a sua versão árabe por meio da edição comentada de Mahmud al-Ghurab, com que
cotejamos a tradução espanhola para leitura de termos e construções específicas (AL-GHURAB, 1985).
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Osman Yahia elabora esta cronologia tanto da vida quanto da obra do mestre murciano, afirmando que a
Risālat Rūḥ al-Quds começou a ser escrita em meados de 586 A.H., em Marchena, quando o autor visitou
uma de suas mestras, Fāṭima bint Ibn al-Muṯanā e foi finalizada em 600 A.H., quando da estada do mestre
murciano em Meca, sendo depois, por constatação dos manuscritos, lida em 601 A.H., em uma reunião de
samāʿ em Bagdá e em outra reunião, em 617 A.H., na cidade de Alepo (YAHIA, 1964, p. 93).
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A devoção e teorização sobre a santidade islâmica que, segundo Michel Chodkiewicz, têm em Ibn ʿArabī
seu grande defensor e divulgador, estava bastante assentada entre os grupos de busca esotérica ou
mística, bāṭin. Dentro do islã, esta busca mística compunha parte de um desejo de adentrar aos mistérios
da divindade. Esta busca, este desejo, amparou a conformação da interpretação bāṭin, interior, da
revelação corânica e dos mistérios da criação. Diversos métodos e grupos encontram-se nesta busca
interior islâmica, tanto entre os xiitas quanto os sunitas. O ocidente debruçou-se sobre parte destes
grupos a quem foram chamados “sufis”. Dois textos básicos para a compreensão destes movimentos são, a
nosso ver: Las dimensiones místicas del Islam, de Annemarie Schimmel (2002); e Studies in Early
Mysticism in the Near and Middle East, de Margaret Smith (1995).