FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.6, nº1, p.62-85, jan.-jun., 2019
Coisas Antigas Continuam no Ouvido”: a tradição oral africana como fonte histórica
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Hampaté Bâ, que acreditava ter nascido em 1900, nasceu em Bandiagara, região
do Mali. Ele viveu entre os povos tucolor e bambara. É um negro africano convertido ao
islamismo, que, na administração colonial, fez alguns cursos e se especializou nas
técnicas das tradições orais. “Fortemente marcado pela identidade nascida de suas raízes
originárias e ancestrais” (LEITE, 2003, p. 7), ele revelava como via os acontecimentos em
suas memórias, como uma cena de um filme.
Quando descrevo o traje do primeiro comandante de circunscrição francês que
vi de perto em minha infância, por exemplo, não preciso me “lembrar”, ou seja,
por exemplo, eu o vejo em uma espécie de tela de cinema interior e basta contar
o que eu vejo. Para descrever uma cena, só preciso revivê-la (HAMPÂTÉ BÂ,
2013, p. 7).
Dentre as importantes obras de Amadou Hampâté Bâ, devem-se citar O Império
Fulani de Macina, de 1955; Vida e Ensino de Tierno Bokar, o Sábio Bandiagara, de 1957,
adaptado ao teatro por Peter Brook
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, em 2003; Kaïdara, narrativa iniciadora de Peul,
de 1969; O destino estranho de Wangrin, de 1973, vencedor do prêmio de Literatura da
África negra em 1974; Jesus visto por um mulçumano, de 1976. Na maioria de suas obras,
Hampâté Bâ defende conhecimentos africanos, aqueles de “dentro”, que é a forma de
expressar os verdadeiros sentimentos, as vivências e os significados das culturas orais,
com base em suas próprias vivências.
Não à toa, ele fazia parte de uma geração de tradicionalistas, que viam os anciãos
“como verdadeiras bibliotecas”, convencido de que, à medida que eles morrem, uma
gama de saberes também vai embora. Alertava não haver uma África ou uma tradição
africana. No primeiro capítulo da obra Amkoullel, o menino fula, uma autobiografia,
prefaciada por Fábio Leite
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, grande estudioso de África, ele inicia com o tema “Raízes”.
Hampâté Bâ fornece algumas representações importantes para o trabalho com as
tradições orais, revelando que, na maioria dos casos, os sujeitos africanos partem de sua
vida individual, e daí se fortalecem numa coletividade: “Na África tradicional, o indivíduo
é inseparável de sua linhagem”
(HAMPÂTÉ, BÂ, 2013, p. 19). Ele dá importância ao nome,
às relações de parentesco; sugere origens históricas em sua trajetória de vida. A história
começa no seio familiar, revela a conexão com uma linhagem necessária para legitimar
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Peter Sthephen Paul Brook nasceu em Londres em 1925; é um diretor de teatro e cinema britânico, com
destacados trabalhos como “Mahabharata” (1985), “A tempestade” (1990), “Tierno Bokar” (2004). Brook
interessa-se pelas questões ancestrais de África, fato que o levou a trabalhar com um dos maiores atores
burkinabês, Sotigui Kouyaté (1936-2010), ator que interpretou a própria vida em diáspora, em busca de
compreender as mudanças em suas práticas (BERNAT, 2013).
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Fabio Leite foi professor de Ciências Políticas e Sociais e trabalhou sobre a ancestralidade na África
negra, especialmente observando as sociedades Iorubá, Agni e Senufo. Fabio Leite prefaciou a obra de
Hampâté Bâ. “Amkoullel, o menino fula, foi publicado em 2013. Este professor faleceu em 2018, deixando
um grande legado de estudos em África.