Recebido em: 12/03/2019
Aprovado em: 15/05/2019
“Coisas Antigas Continuam no Ouvido”: a tradição oral
africana como fonte histórica
“Ancient Things Remain in the Ear”: the African oral
tradition as a historical source
PESSOA, Mônica
*
Resumo: As tradições orais africanas, desde a década de 60, com as independências de
diversos de seus países, vêm se transformando e ganhando espaço em pesquisas
acadêmicas, tornando-se uma fonte interdisciplinar com potencialidades e possibilidades
para o conhecimento do universo de suas populações. Elas revelam um manancial de
experiências que reúnem memórias e histórias individuais e coletivas, seus diversos
modos de ser e estar no mundo. Este artigo busca discutir sobre as tradições orais como
fonte de pesquisa, analisando as que foram feitas em/sobre África a partir da década de
*
Mestre em Patrimônio Cultural e Sociedade pela Universidade da Região Joinville (Univille), Joinville/SC, e
doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Hisria do Tempo Presente na Universidade do Estado de
Santa Catarina (Udesc), Florianópolis/SC. Professora de História na Secretaria do Estado do Amapá. Foi
bolsista Capes no Programa de Mobilidade Acadêmica Abdias do Nascimento, orientada pelo Prof. Dr.
Alioune Sow do Departamento de Linguagens, Literaturas e Culturas do Centro de Estudos Africanos da
Universidade da Florida. Atualmente, é bolsista Uniedu-SED (Secretaria do Estado de Santa Catarina). E-
mail: monicapessoa2@gmail.com
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.6, nº1, p.62-85, jan.-jun., 2019
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1960, mas selecionando-as e conjugando a alguns estudos em vários campos fora dela
até a atualidade. O objetivo é evidenciar abordagens teórico-metodológicas quanto ao
uso das tradições orais em um campo de estudos interdisciplinar para compreender
como elas potencializam vozes africanas e são fontes históricas importantes para as
populações de cultura oral.
Palavras-Chave: África Ocidental; Conhecimento africano; Tradição oral; Memória.
Abstract: African oral traditions, since the 60s with the independence of several of their
countries, have been transformed and gained space in academic research, becoming an
interdisciplinary source with potentialities and possibilities for the knowledge of the
universe of its African populations. They reveal a wealth of experiences that bring
together memories and stories of individual African subjects and their diverse ways of
being and being in the world. This article seeks to discuss oral traditions as a source of
research, analyzing research that has been done in / from Africa since the 1960s, but
selecting them and combining them with some studies in various fields outside the
present. The objective is to analyze some theoretical-methodological approaches to the
use of oral traditions in an interdisciplinary field of study, to understand how they
potentiate African voices and are important historical sources for the populations of oral
cultures.
Keywords: Western Africa; African knowledge; Oral tradition; Memory.
Um caminho metodológico fértil para pesquisas interdisciplinares
Tete ka asom ene kakyere
“Coisas antigas continuam no ouvido”
Provérbio Akan (Ghana)
As tradições orais, como documentos, despertam amplo interesse em pesquisas
científicas. Vários estudiosos de diferentes campos interdisciplinares apostam nelas
como fonte de pesquisa fidedigna pela forma como os sujeitos africanos podem
demonstrar e compartilhar suas experiências através da oralidade, acionando tempos e
contextos que, muitas vezes, ultrapassam o tempo vivido e, mais do que o passado e o
futuro, buscam dar sentidos a suas vidas no presente e construir-lhes significados. As
tradições orais são mecanismos através dos quais as sociedades de cultura oral
interpretam e representam seu passado no presente, apreendendo os modos de vida
(como as técnicas da metalurgia, tecelagem, agricultura e arquitetura), a organização
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social, as relações de parentesco e as genealogias para entenderem as relações sociais e
políticas em suas sociedades
1
.
As tradições orais mudaram no tempo. As antigas imagens dos griots e djelis
2
, por
exemplo, mestres da palavra e contadores de história das sociedades de culturas orais da
África ocidental, os que se viam como se estivessem debaixo dos baobás, emergiram no
mundo do cinema europeu e na música internacional com instrumentos quase nada
imunes às adaptações tecnogicas nas performances no Ocidente, com seus contos,
epopeias e genealogias. A questão, aqui, é como utilizá-las em pesquisas acadêmicas,
como refletir com cada autor e em cada tempo histórico e contextos diversos. É de como
interpretar um mundo particular e, ao mesmo tempo, diversificado das tradições orais
africanas.
O objetivo neste artigo é refletir sobre a utilização das tradições como fonte em
vários caminhos interdisciplinares. Pretendo mostrar como elas se tornaram necessárias
à compreensão do passado de sociedades de cultura oral, mas, sobretudo, do presente,
buscando enfatizar o que autores de diferentes épocas e correntes filosóficas refletem
sobre essas tradições e, além disso, o que se pode extrair desse vasto campo de
conhecimento. Analiso, desse modo, como são tratadas as tradições orais, construindo
um breve histórico dentro dos estudos africanos, assumindo que essas tradições
potencializam vozes africanas, tornando-se fontes históricas importantes para o
conhecimento das populações de cultura oral.
Debaixo dos Baobás: percursos tradicionalistas
Para alguns africanistas da década de 1960 e 1970, as tradições orais significavam
o começo de uma autoinscrição na história da humanidade (MBEMBE, 2001). Embebidos,
1
Este artigo foi extraído da pesquisa de doutoramento em História, intitulada: "Os griots e djelis
contemporâneos: a trajetória de Toumani Kouyate", orientada pela Prof.ª Dr.ª Claudia Mortari (UDESC)
e Co-orientada pelo Prof. Dr. Alioune Sow (Universidade da Florida). Esta pesquisa busca apreender
como Toumani Kouyaté se constituiu em um djeli contemporâneo, a partir de seus deslocamentos
culturais, que acontecem pela memória de um corpo de tradições adaptadas por ele nas suas diásporas,
que o orientam a inovações das tradições orais no tempo presente, constantemente metamorfoseadas
por suas experiências performáticas. Suas genealogias, epopeias e contos se adaptam aos contextos de
seus interlocutores e, principalmente, à sua trajetória de vida, nãoenquanto sujeito africano, mas
como um cosmopolita que recupera memórias individuais e coletivas para avaliar, discutir e criar
soluções para as problemáticas da sociedade contemporânea na França.
2
Os griots fazem parte da casta nyamakala, de contadores de histórias da África ocidental. Segundo o djéli
Toumani Kouyaté, mestre da palavra de Burkina Faso, em entrevista a mim concedida em 2017, os griots
são responsáveis pela arte do conto, da música e da dança; são contadores de histórias. Os djélis, porém,
possuem uma tradição histórica de ligação com Sundjata Keita, fundador do império do Mali, no século
XIII, tendo-lhes sido confiada a palavra sagrada e a responsabilidade de contar a epopeia, as histórias
fantásticas do imperador, por ter sido o primeiro djeli de Sundjata. Além disso, os djelis Kouyatés contam
o sumú, a história das famílias e são mediadores sociais, diferentes dos griots, que são animadores
públicos.
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grosso modo, por um pensamento africanista que almejava a valorização da cultura e do
conhecimento africanos, consideravam necessário constituir um lugar teórico diferente
das propostas coloniais, para as quais o sujeito africano desconhecia a escrita e seu
próprio continente. Até recentemente, construíam-se visões sobre uma África negra
pelos olhares dos conquistadores europeus. No entanto, a partir de 1950 e 1960,
intelectuais africanos, introduzidos no Ocidente, criaram possibilidades de autoinscrição
no mundo, preocupados “com a diferença africana e com o que lhes havia sido
expressamente negado: o direito à universalidade e, portanto, ao reconhecimento das
contribuições africanas à constituição da humanidade” (JEWSIEWICKI; MUDIMBE, 1993,
p. 1).
Achille Mbembe, professor de história e potica do campo dos estudos pós-
coloniais, menciona os desafios da construção da autodeterminação do sujeito africano
na história, em que concepções promoveram a ideia de uma única identidade africana. O
economicismo e o nativismo impediram uma história que valorizasse o sujeito africano,
marcado erroneamente por um conjunto de eventos: a escravidão, o colonialismo e o
apartheid, que transformaram a sua imagem em objeto inanimado e incapaz de construir
um futuro a partir de seu passado no presente. Para o autor, a saída sobre este processo
de perda de sua própria história e expropriação material como uma “experiência singular
de sujeição, caracterizada pela falsificação da história da África pelo outro, o que
resultou em um estado de exterioridade máxima (estranhamento) e de desrazão”, é
refletir sobre as “imaginações africanas” traduzidas em práticas interconectadas,
gerando a construção de um estilo próprio (MBEMBE, 2001, p. 176).
As transformações e as novas percepções da importância das tradições orais para
a construção da história africana começam nesse período, no difícil embate, por parte de
africanistas, de mostrar a um mundo cético que as tradições orais eram tão confiáveis
quanto os documentos escritos e que podiam oferecer aos estudos históricos um campo
vasto de interpretação das dimensões individuais e coletivas para a compreensão do
passado, a partir de testemunhos orais como instrumentos metodológicos, utilizando
recitações, mitos, epopeias, danças e performances, em geral. Tal interesse sugere expor
as cosmogonias das populações africanas que, por muito tempo, foram dominadas pelo
pensamento colonial:
O espírito científico, o desejo de conquistar o mundo e submetê-lo à lógica do
pensamento racional tende a eliminar o desejo de compreender a magia, as
mitologias e o supostamente irracional. Nesse contexto histórico, o desejo de
compreender e explicar pôde se estabelecer como essencial (JEWSIEWICKI;
MUDIMBE, 1993, p. 5).
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Esses intelectuais buscavam como principais inspirações a cultura negra da
diáspora, que, para o reconhecimento de sua própria humanidade, conjugava
experiências e a presença negra, reivindicando uma humanidade negra legítima em meio
a uma cultura baseada na visão greco-romana e judaico-cristã, uma e outra ancoradas
em uma filosofia hegeliana da história. Entretanto, os intelectuais africanos almejavam
uma correção dessas posturas, construindo uma historiografia que demonstrasse,
sobretudo, a historicidade das sociedades africanas (JEWSIEWICKI; MUDIMBE, 1993, p.
2).
Este movimento não significou uma luta específica desses intelectuais apenas
com relação a uma historiografia africana, tal como vemos o pioneirismo no campo das
tradições orais de Jan Vansina, professor belga da Universidade Wisconsin, em Madison.
As análises das tradições orais eram demandas e contribuições de antropólogos,
historiadores, linguistas, etc., que acreditavam, nesse campo interdisciplinar, que as
tradições orais mereciam atenção, pois elas não só existiram no período pré-colonial,
como a biblioteca colonial pensara, mas continham e ainda hoje continuam
representando uma riqueza legítima como um grande arquivo documental, pois são
repletas de discursos históricos.
Nesta geração de estudiosos engajados nos usos das tradições orais como fontes,
formas de autoinscrição no mundo e no envolvimento com uma história do presente e do
passado, três grandes estudiosos se destacam. Eles refletem, mesmo que de modos
diferentes, as tradições como verdadeiras expreses das sociedades africanas e, mais
que isso, como documentos críveis para o conhecimento do passado das sociedades de
culturas orais. Hampatê Bâ revela, a partir de sua autobiografia, a transmissão das
tradições orais e seus significados como experiência própria. Djibril Tamsir Niane,
estudioso principalmente da epopeia de Sundjata Keita, explica, pela boca do griot e do
djeli, os segredos da memória e seu papel nas histórias do Mali. Por fim, Jan Vansina, que
percebe as tradições orais como documento, em forma de “produto”, fruto do
conhecimento ancestral, e como “processo”, pois os genealogistas não se prendem ao
passado, mas interpretam o presente político de suas sociedades. Esses especialistas em
tradições orais acreditavam alcançar um objetivo maior dentro dos estudos africanos.
Paulin J. Hountondji, ao refletir sobre a perspectivas dos estudos africanos, revela o que
mais os atrai: “um processo autônomo e autoconfiante de produção de conhecimento de
capitalização que nos permita responder às nossas próprias questões [...] tanto
intelectuais como materiais das sociedades africanas” (HOUNTONDJI, 2008, p. 157).
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Hampaté Bâ, que acreditava ter nascido em 1900, nasceu em Bandiagara, região
do Mali. Ele viveu entre os povos tucolor e bambara. É um negro africano convertido ao
islamismo, que, na administração colonial, fez alguns cursos e se especializou nas
técnicas das tradições orais. “Fortemente marcado pela identidade nascida de suas raízes
originárias e ancestrais” (LEITE, 2003, p. 7), ele revelava como via os acontecimentos em
suas memórias, como uma cena de um filme.
Quando descrevo o traje do primeiro comandante de circunscrição francês que
vi de perto em minha infância, por exemplo,o preciso me “lembrar”, ou seja,
por exemplo, eu o vejo em uma espécie de tela de cinema interior e basta contar
o que eu vejo. Para descrever uma cena, só preciso revivê-la (HAMPÂTÉ BÂ,
2013, p. 7).
Dentre as importantes obras de Amadou Hampâté Bâ, devem-se citar O Império
Fulani de Macina, de 1955; Vida e Ensino de Tierno Bokar, o Sábio Bandiagara, de 1957,
adaptado ao teatro por Peter Brook
3
, em 2003; Kaïdara, narrativa iniciadora de Peul,
de 1969; O destino estranho de Wangrin, de 1973, vencedor do prêmio de Literatura da
África negra em 1974; Jesus visto por um mulçumano, de 1976. Na maioria de suas obras,
Hampâté Bâ defende conhecimentos africanos, aqueles de “dentro”, que é a forma de
expressar os verdadeiros sentimentos, as vivências e os significados das culturas orais,
com base em suas próprias vivências.
Não à toa, ele fazia parte de uma geração de tradicionalistas, que viam os anciãos
“como verdadeiras bibliotecas”, convencido de que, à medida que eles morrem, uma
gama de saberes também vai embora. Alertava não haver uma África ou uma tradição
africana. No primeiro capítulo da obra Amkoullel, o menino fula, uma autobiografia,
prefaciada por Fábio Leite
4
, grande estudioso de África, ele inicia com o temaRaízes”.
Hampâté Bâ fornece algumas representações importantes para o trabalho com as
tradições orais, revelando que, na maioria dos casos, os sujeitos africanos partem de sua
vida individual, e daí se fortalecem numa coletividade: “Na África tradicional, o indivíduo
é inseparável de sua linhagem”
(HAMPÂTÉ, BÂ, 2013, p. 19). Ele dá importância ao nome,
às relações de parentesco; sugere origens históricas em sua trajetória de vida. A história
começa no seio familiar, revela a conexão com uma linhagem necessária para legitimar
3
Peter Sthephen Paul Brook nasceu em Londres em 1925; é um diretor de teatro e cinema britânico, com
destacados trabalhos como “Mahabharata” (1985), “A tempestade” (1990), “Tierno Bokar” (2004). Brook
interessa-se pelas questões ancestrais de África, fato que o levou a trabalhar com um dos maiores atores
burkinabês, Sotigui Kouyaté (1936-2010), ator que interpretou a própria vida em diáspora, em busca de
compreender as mudanças em suas práticas (BERNAT, 2013).
4
Fabio Leite foi professor de Ciências Políticas e Sociais e trabalhou sobre a ancestralidade na África
negra, especialmente observando as sociedades Iorubá, Agni e Senufo. Fabio Leite prefaciou a obra de
Hampâté Bâ. “Amkoullel, o menino fula, foi publicado em 2013. Este professor faleceu em 2018, deixando
um grande legado de estudos em África.
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seu lugar no mundo; então, as genealogias históricas semeiam possíveis passados em sua
narrativa. Ao enfatizar a presença ancestral, os jogos de tempo da narrativa, de ida e
volta ao passado e o processo de transmissão oral na utilização da memória individual e
coletiva, Hampâté Bâ se torna um exemplar quando utiliza sua vida e explica por si
mesmo o universo das tradições orais.
Toda história de minha família, está, na realidade, ligada à Macina” [...] Quase
todas as lendas e as tradições orais dos fulas mencionam uma origem oriental
muito antiga. Mas, dependendo da versão, esta origem é às vezes árabe,
iemenita ou palestina” [...]. Meus longínquos ancestrais paternos chegaram por
volta do século XV (HAMPÂTÉ BÂ, 2013, p. 21).
A ligação a uma linhagem e a uma história heroica do passado nas tradições orais
africanas busca construir uma legitimidade histórica e política. São quase sempre
reivindicações nas relações de parentesco, envolvidas em histórias célebres e fantásticas
de reis locais, as quais, ao selecionar seu capital narrativo, enfatizam um objetivo:
posicionar-se no mundo e em um lugar de prestígio e poder. Essa problemática das
tradições orais aparece na obra de Hampâté Bâ quando ele afirma que seu avô materno
era uma espécie de sacerdote de El Hadj Omar
5
; era também um silatigui, um curandeiro,
adivinho e vidente, um mestre da linguagem.
Três características chaves das tradições orais são vistas em Hampâté Bâ:
primeiro, a importância que dá aos ancestrais, como aprendizado para a toda vida, por
serem um espelho para suas ações futuras. De fato, eles serão reivindicados em todas as
suas histórias, pois é impossível falar de tradição oral sem rememorar os ancestrais, pois
ela significa a construção de um conhecimento que vai passando de geração em geração.
Segundo: a ligação dos seus ancestrais a uma genealogia heroica para obter um lugar de
prestígio histórico. Terceiro: a audiência, aqueles a quem se quer transmitir o recado que
o tradicionalista quer dar a seus leitores/interlocutores, de algo que, na maioria das
vezes, está correlacionado ao presente. As tradições orais demonstram, cada vez mais,
mesmo em tradicionalistas como Hampâté Bâ, que a prática oral está em meio a jogos
políticos e identitários, que visam a entender as realidades sociais e políticas dos sujeitos
africanos contemporâneos.
De uma geração de autores pós-independência africana, o historiador de África,
autor de inúmeros contos e dramaturgo, Djibril Tamnsir Niane, nasceu em Conacri
(Guiné) em 1932; seus estudos revelaram as heranças culturais e históricas do imperador
do Mali, Sundjata Keita. Atualmente, é professor na Universidade de Howard, em
5
El Hadj Omar foi o grande conquistador no período de 1862; ele foi também chefe islâmico oriundo do
oeste e seu império se estendeu do leste da guiné até Tumbuctu, no Mali (HAMPÂTÉ BÂ, 2013, p. 23).
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Washington, D.C. Além de pesquisador sobre o império do Mali (1959) e de Histórias da
África ocidental (1961), Djibril Niane faz parte do Comitê Científico Internacional da
Unesco, com contribuição na História Geral da África (2010), uma coletânea de textos
que, desde 1964, buscou escrever uma historiografia africana a partir de perspectivas
dos próprios africanos.
Algumas obras deste historiador mostram uma compreeno de elementos das
tradições orais e da presença dos griots e djelis, conhecidos como as “pessoas da
palavra”, nas regiões da África ocidental. Eles são vistos como mestres da palavra. São
diversas famílias, como Diabaté, Kouyaté e Traorê, que fazem parte da casta nyamakala,
a casta daqueles que produzem algo material, como os ferreiros, os caçadores e
pescadores, e daqueles que produzem algo essencialmente imaterial, a palavra, Kouma,
que possuem poder nas sociedades de cultura oral, ou como é chamado o Nyama, a força
vital que existe em cada palavra e em cada ser vivo. Algumas famílias, como os funés, são
genealogistas; outras, são os djélis, responsáveis pela palavra sagrada, pela epopeia e
pelas histórias das famílias. Estes últimos, como os djélis Kouyatés, são diretamente
ligados ao passado de Sundjata Keita, imperador do Mali no século XVIII. Tais fatos são
contados na obra de Djibril, A epopeia Mandinga ou de Sundjata Keita.
As origens e funções dos djélis expressas nessa obra são as de “um mestre cheio
de ciência” (NIANE, 1982, p. 17). A obra situa-se no contexto dos anos 1960, com o título
original Soundjata ou L’épopée Mandingue
6
, influenciados por uma escrita que emerge
com a independência de inúmeros países africanos, produzindo atores e sujeitos que
começaram a escrever suas histórias e experiências como produções teóricas avessas ao
colonialismo. Na época, os países africanos que haviam conquistado a independência
iniciaram um processo para exprimir os efeitos, as transformações culturais e os danos
causados pela colonização, reconstituindo, a partir de discursos e performances, uma
trajetória histórica em textos escritos por autores africanos. Com uma visão pós-
colonial, essa literatura foi marcada pela recusa da dependência e da violência contra os
modos de vida das populações africanas subjugadas pela língua, religião, cultura e
educação impostas pelo colonizador. Dessa forma, foram “propondo uma nova visão de
mundo, caracterizada pela coexistência e negociação de línguas e de culturas(LEITE,
2012, p. 320). Isto ocorre na diáspora, por exemplo, quando os griots contam suas
histórias em outros lugares, utilizando outras línguas que não as de suas culturas e
países de origem, e negociam seus textos de acordo com sua audiência. São novos
produtos da contemporaneidade e novas formas de coexistência.
6
Esta obra teve sua primeira edição em 1960, pela Présence Africaine em Paris. Traduzida e publicada no
Brasil, em 1982, pela Coleção Autores Africanos, São Paulo.
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O texto de Djibril Niane (1982) incorpora esse viés com uma postura
descolonizadora, conectando dimensões locais e fazendo com que a literatura reelabore
e evidencie temáticas, problematizando novos conceitos, antes esquecidos, que
embasam e fortalecem elementos fundadores da sociedade, outras formas de pensar e
organizar processos históricos e sociais na África ocidental. Para Walter Mignolo (2017,
p. 2), desde o Renascimento, a Europa vem produzindo várias narrativas, através dos
colonialismos históricos”, centradas em suas conquistas e demandas. Assim é que
escondem a obscuridade e a violência pela qual os povos dominados por essa lógica
viviam “a colonialidade” ou as “modernidades globais”, pois, segundo ele, não haveria
colonialidade sem modernidade. Desse modo, impunha-se a necessidade de outras
abordagens históricas “descoloniais”, traduzidas em ões descolonizadas “como
resposta às inclinações opressivas e imperiais dos ideais europeus modernos, projetados
para o mundo não europeu, onde são acionados” (MIGNOLO, 2017, p. 4).
O processo de pilhagem pela escravidão, na África ou na América, em fins do
século XVIII, é destacado por Walter Mignolo (2017, p. 5) como um processo que permitiu
emergir uma matriz colonial de poder
”, pela qual “os africanos e os indígenas eram
excluídos desse processo”, sem o domínio, o controle e a administração de suas próprias
vidas ou de seus recursos econômicos. Essa matriz colonial de poder é sustentada por
alguns pilares, como o domínio e o controle da economia dos povos, da autoridade, do
gênero e da sexualidade, e, principalmente, pelo abuso e a imposição de um
conhecimento para retirar a subjetividade dos povos subjugados a essa nova ordem
global. O que fortaleceu essa lógica foram o “fundamento racial e a legitimidade do
patriarcado do conhecimento, a enunciação pela qual a ordem social é legitimada”
(MIGNOLO, 2017, p. 5).
O pensamento descolonial e as opções descoloniais (isto é, pensar
descolonialmente) são nada menos que um inexorável esforço analítico para
entender, com o intuito de superar, a gica da colonialidade por trás da retórica
da modernidade, a estrutura de administração e controle surgida a partir da
transformação da economia do Atlântico e o salto de conhecimento ocorrido
tanto na história interna da Europa como entre a Europa e as suas conias [...]
(MIGNOLO, 2017, p. 6).
Compartilhando dessa ideia, Boaventura Santos (2007, p. 77) assume essas
histórias e todo o “exotismo” produzido erroneamente sobre as culturas africanas como
uma cartografia metafórica, que divide o Velho do Novo Mundo. Essa divisão, para esse
autor, configura-se em injustiça social, ligada à injustiça cognitiva global, afirmando que
para romper com essa epistemologia se “exige um novo pensamento, um pensamento
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s-abissal”. Contudo, essas linhas tenderam a mudar no tempo, com os processos de
lutas anticoloniais e por independência, havendo uma sublevão pelo direito à
emancipação.
Mafalda Leite (2012, p. 129) ao termo pós-colonialismo um sentido de “caminho
crítico teórico”, acepção que surge no pós-Segunda Guerra Mundial, designando o
processo pelo qual os países ganharam suas independências, reunindo, depois, uma
vasta gama de estudos para articular e mensurar as diferentes experiências e os “efeitos
culturais da colonização”, forjando outras práticas avessas ao colonialismo. Para tanto,
ela define s-colonialismo comoestratégias discursivas e performáticas (criativas,
críticas e teóricas) que frustram a vio coloniale que agora “reclamam uma voz crítica
pós-colonial, oriunda, ou com raízes, nos ex-países colonizados” (LEITE, 2012, p. 131).
Nesse sentido, Djibril Niane (1982, p. 6) conta que, na “África antiga”, os griots
“eram os conselheiros dos reis, conservavam as constituições dos reinos exclusivamente
graças ao trabalho de sua memória”. A histó
ria é contada pelo griot Mamadu Kouyaté, da
aldeia de Djeliba Koro, na Guiné. Ele é ancestral do griot de Sundiata Keita, Balla
Fassakê, que viaja do início ao fim, durante a sua saga, sendo seu conselheiro em suas
derrotas e vitórias. É pelas palavras do griot que o autor início à história:
Sou Griot. Meu nome é Djeli Mamadu Kuyaté, filho de Bintu Kuyatê e de Djeli
Kedian Kuyaté, Mestre na arte de falar. Desde tempos imemoriais, estão os
Kuyatês a serviço dos príncipes Keita do Mandinga: somos os sacos de
palavras, somos o repositório que conserva segredos multisseculares. A arte da
palavra não apresenta qualquer segredo para s; sem nós, os nomes dos reis
cairiam no esquecimento; s somos a memória dos homens; através da
palavra, damos vida aos fatos e façanhas dos reis perante as novas gerações
(NIANE, 1982, p. 11).
Djibril Tamsir Niane (1982) compila algumas perspetivas sobre a função
tradicional dos griots, tratando da fala como arte e de suas dimensões como forma de
resguardar um passado glorioso, ligado não somente aos feitos deste imperador, mas ao
cotidiano de um momento exemplar para governos, leis, culturas orais e patrimônios na
sociedade contempo
nea.
“Ensinei a reis a história de seus ancestrais, a fim de que a vida dos antigos lhes
servisse de exemplo”. Nesse trecho, Djibril Tamsir Niane (1982, p. 11) reflete sobre os
papéis da memória e da história como dupla responsabilidade, que transformam o griot
em deposirio de memória ancestral. As culturas orais, fontes de conhecimento para
refletir as histórias de experiências e culturas africanas, deixaram de ser menos
importantes que a escrita das sociedades e se tornaram fruto de vivências profundas de
africanos que, através delas, compartilham, transmitem e renovam suas ões traduzidas
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em contos, performances, artes, saberes e ofícios atualizados para se adequarem às
políticas do tempo presente.
Segundo Mudimbe (2013), existe a problemática de uma produção histórica
contada somente de acordo com os propósitos dos colonizadores europeus, de um lado,
e, por outro, a necessidade de tratar o conhecimento africano como legítimo e capaz de
se fazer por si só, pois, por muito tempo, ele foi dominado pelas influências de uma
historicidade judaico-cristã que excluía as preocupações e expreses do conhecimento
e contribuições das populões africanas, suas heranças culturais e o reconhecimento de
todo legado histórico como instrumento sólido, fiel às realidades políticas e filosóficas do
passado africano e a suas incidências no presente.
Nesse sentido, a tradição oral possui grande relevância, porque, enfatiza
Mudimbe, a partir das experiências de africanos, “emergem discursos sobre alteridade,
cuja negritude, experiências e filosofias africanas podem ser consideradas como os
melhores concebidos na história da intelectualidade da África contemporânea
(MUDIMBE, 2013, p. 4). Para ele, os autores africanos vêm trabalhando como operários
em construção” para reconstruir um caminho sólido e palpável para os caminhos antigos
que ligam o passado ao presente, construídos agora sobre o pilar de uma “camada escrita
que abrange a versão oral e as reconstruções performativas do passado, empregando-as,
na melhor das hipóteses, como blocos em construção” (MUDIMBE, 2013, p. 4). A escrita
pode, agora, absorver as verdades da oralidade.
A tradição oral como fonte histórica
Um dos pioneiros nos estudos das tradições orais foi Jan Vansina, historiador e
antropólogo belga, nascido em 14 de setembro de 1929 e falecido em fevereiro de 2017.
Esse autor era professor da Universidade de Wisconsin, Madison. Seus primeiros
estudos focaram em pesquisas medievalistas e etnográficas. Quando estava no Congo,
em 1952, trabalhando em uma organização belga, engajou-se em pesquisas com os povos
Kuba, que ocupam parte da atual República Democrática do Congo, utilizando métodos
para conhecer as tradições históricas, momento em que ele contribuiu para um avanço
historiográfico do estudo da África pré-colonial. Obteve doutorado na Universidade
Católica de Leuven, em 1957 (UNIVERSITY OF WISCONSIN, 2019). Ele foi um dos
maiores pesquisadores no campo das tradições orais, com importantes obras. Das que
escreveu, podem-se citar Reinos da Savana (1966); Os filhos de Woot. Uma história dos
povos Kuba (1978); Vivendo com a África (1994); Como nascem as sociedades:
governança na África centro-ocidental antes de 1600 (2004), Sendo colonizado: a
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Coisas Antigas Continuam no Ouvido”: a tradição oral africana como fonte histórica
73
experiência Kuba no congo rural (2010); Antecedentes de Ruanda Moderno: o reino de
Nyiginya (1994).
Entre seus estudos mais notáveis está a Oral Tradition as a history (1985), ou, A
tradição oral como História. Essa obra, com base especialmente em análises de cunho
metodológico da disciplina História, já no prefácio traz um conceito sobre o significado
das tradições orais. Demonstra sua importância para as sociedades africanas, dando
valor à memória e a como essas populações a valorizam como experiência humana,
capaz de refletir sobre o presente, e não como experiências estanques do passado. Além
disso, exprime a paixão do autor por esse tema, que considerava central para estudantes
da cultura, da ideologia, das sociedades, da filosofia, da arte e da história:
A tradição oral só aparece quando é contada. Por momentos fugazes elas
podem ser ouvidas; mas, na maioria das vezes, elas habitam apenas nas mentes
das pessoas. O enunciado é transitório, mas as memórias não são. Ninguém nas
sociedades orais duvida que as memórias possam ser repositórios fiéis que
contenham a soma total da experiência humana passada e expliquem o como e o
porquê das condições atuais (VANSINA, 1985, p. 12).
Para Jan Vansina (1985), as tradições orais são uma fonte necessária e legítima
para a produção histórica. Ao se debruçar sobre a problemática de sua importância e
validade como fonte histórica, busca refletir sobre a lacuna da metodologia da História,
caracterizando a tradição oral e nos conduzindo a conhecer as veredas que cercam suas
possibilidades como método e seu legítimo valor histórico. O autor concebe a tradição
oral como produto, justificando sua produção no seio dos grupos sociais por meio das
experiências no tempo. São histórias que circulam por diversas gerações como
resquícios do passado mas não só do passado, nem feitas apenas de narrativas: elas
refletem problemas contemporâneos, éticos e morais. Todas as mensagens aparecem no
cotidiano atual e refletem ideias ou concepções de outros tempos, da mesma forma que
os conhecimentos dos ancestrais. Em outras palavras, as tradições, como “processo”,
são a “tradução de um momento”, pois são transmitidas de boca a ouvido,
“representando elaborações da consciência histórica” dos grupos culturais na forma de
desenvolvimento oral até que essas mensagens desapareçam em sua maneira original
(VANSINA, 1985, p. 30).
Jan Vansina (1985, p. 11) afirma que a cultura é refletida por “lembranças colocadas
dentro das palavras e ações” e que a mente, a partir das memórias, carrega as culturas
de geração em geração. Assim como a História, pesquisas interdisciplinares são centrais
para os estudos da tradição oral, como este trabalho se propõe, pois diversas disciplinas,
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PESSOA, Mônica
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da mesma forma que Antropologia, Sociologia, Filosofia e as artes produzem várias
abordagens para a compreensão dos papéis dos djélis e evidenciam seu valor para a
compreensão histórica, de modo que “quando o griot diz: é a palavra do meu pai, é a
palavra do pai, do meu pai” ele encapsulou a autenticidade de suas palavras, assim
como o historiador cita sua fonte de arquivo e nela confia (NIANE, 2009, p. 7).
No debate acerca das narrativas e dos eventos históricos que colocam a tradição
oral como evidência histórica, Luise White, historiadora e especialista em história política
e militar em regiões como Quênia, Uganda e Zâmbia, instiga análises sobre o olhar do
historiador a respeito de narrativas, reminiscências e memórias e sobre o tratamento
dado às performances dos testemunhos. Autora de The Comforts of Home: prostitution
in Colonial Nairobi (Chicago, 1990), ganhou o Prêmio Herskovits de Melhor Livro em
Estudos Africanos em 1991, com os livros Speaking with Vampires: rumor and history in
Colonial Africa (Califórnia, 2000) e The Assassination of Herbert Chitepo: texts and
politics in Zimbabwe (Indiana, 2003). Com Douglas Howland, escreveu The State of
Sovereignty: territories, laws, populations (Indiana University Press, 2008). Seu último
livro intitula-se Unpopular Sovereignty: Rhodesian independence and African
descolonization (Chicago, 2015). Ela é coeditora, com David William Cohen e Stephan
Miescher, de African Words, African Voices: critical practices in Oral History (Indiana,
2001).
Nessa última obra, Luise White discute sobre a confiabilidade das fontes e sobre
como o historiador representa os sentidos do que seja verdadeiro ou falso a partir das
evidências. White argumenta existirem várias compatibilidades entre história oral e
tradição oral, pois “as pessoas recorrem às formas segundo as quais o passado lhes foi
apresentado para representar suas próprias experiências e ideias” (WHITE, 2001, p. 283).
Tanto as narrativas pessoais contadas pela história oral quanto as tradições orais
requerem orientações metodológicas e, no caso da África, chamam a atenção sobre a
política pela qual “os africanos foram encorajados a falar de si mesmos” (WHITE, 2001, p.
296).
Em seu ensaio Histórias verdadeiras: narrativas, eventos, história e sangue no
Lago Victoria Basin, a autora apresenta, por meio de entrevistas no Quênia e em Ruanda,
uma discussão que instiga a respostas sobre a veracidade do “material oral” a partir do
que ela nomeia de “rumores coloniais comuns” (WHITE, 2001, p. 281). Ao articular
entrevistas de homens migrantes, trabalhadores de fazendas, entre os anos de 1900 e
1940, sobre possíveis “vampiros”, capturadores (oficiais coloniais) de africanos para a
retirada de seu sangue, Luise White sugere que as histórias são verdadeiras e falsas;
porém, que a questão, no gênero oral, não está nessas fronteiras, mas no significado
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Coisas Antigas Continuam no Ouvido”: a tradição oral africana como fonte histórica
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dessas experiências para os entrevistados e na forma como acessam fatores
sociológicos, históricos e sociais: “As histórias de vampiros eram um gênero oral
generalizado e foram contadas e recontadas como histórias verdadeiras; se descreveram
ou não um evento ou evento real é outra questão inteiramente diferente” (WHITE, 2001,
p. 282). A principal questão não está na veracidade ou na interpretação das palavras,
mas em quando se estabelece a autoridade do falante como compartilhamento de uma
experiência vivida. As vozes africanas compartilhadas por White tornaram-se fonte
histórica porque apresentavam elementos empíricos que devem ser valorizados,
entendendo que “o presente não molda a história oral da maneira simplista que seus
críticos imaginaram; antes, um presente específico valoriza relatos específicos do
passado” (WHITE, 2001, p. 286).
Se o passado e as experiências no presente são cruciais para refletir sobre as
evidências históricas dos testemunhos orais, as tradições orais são capazes de sugerir
outras vozes para interpretar o próprio mundo e as aspirações das sociedades
colonizadas. A estudiosa Laura Fair, na mesma coletânea de artigos organizado por Luise
White, que tem como foco a história cultural, ao analisar as ferramentas sociais e
culturais do período africano pós-abolição, em Zanzibar (1890-1945), aborda o “sentido
de autoridade da voz” (FAIR, 2001, p. 246) de uma cantora e suas performances nas
regiões de Zanzibar durante os anos 1920 e 1930. Tais performances introduziam o estilo
taarab músicas que consistiam em poemas em swahili.
7
Siti Saadi, chamada Mtumwa,
que, pela tradução em swahili, significa descendente de africanos escravizados de sua
região que abandonam a vida rural, busca, na cidade de Siti, melhores oportunidades,
transformando-se em famosa cantora. Ela utiliza sua voz para expressar situações e
anseios da sociedade de seu tempo, como “um ícone representando os sonhos realizados
de toda uma geração”. Trata-se de canções amplamente recordadas, cujo desempenho
tem servido “para cristalizar as lembranças das lutas violentas que opuseram os pobres
africanos aos proprietários árabes e asiáticos, bem como à administração colonial”
(FAIR, 2001, p. 246).
A voz de Mtumwa era feita em sua própria língua e expressava o objetivo de
restaurar a expressão africana em suas músicas gravadas, criticando os problemas
sociais com discussões de classe, gênero e lutas políticas, enfatizando eventos e
experiências culturais em que seus contemporâneos estavam envolvidos. O material pelo
qual Siti é mais amplamente lembrada é sua crítica incisiva à classe local, a questões de
7
“Língua do grupo banto falada, na atualidade, como primeira língua, do Quênia até a fronteira meridional
da Tanzânia e usada como língua Franca até o leste do Congo e norte de Moçambique” (LOPES; MACEDO,
2017, p. 274).
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gênero e de política colonial (o que representa menos de um quarto de seu repertório
publicado). Por compreenderem a efemeridade da palavra falada, os autores das canções
identificavam o ato de gravar com a capacidade de preservar. Imbuído pelo senso de
autoridade, que, muitas vezes, acompanha a alfabetização, o público atribuía um poder a
Siti como criadora de fontes orais. Ela, ainda como cantora, valorizava a produção de
canções em coletividade, fazendo de suas criações um ato público e coletivo.
Tanto Jan Vansina quanto Luise White e Laura Fair se engajaram na autenticidade
e validade das tradições orais como fontes históricas, expandindo e interpretando as
experiências africanas por suas próprias vozes. Abrem possibilidades, então, para a
apreensão das narrativas de sujeitos africanos ao reivindicar as tradições orais como
fontes históricas. No que toca à responsabilidade do pesquisador, compete-lhe discernir
especialmente as implicações políticas, sociais e culturais dos discursos desses sujeitos
no tempo. Eles investem em cronologias históricas para reinventar sua própria versão da
epopeia de Sundjata e das narrativas de origem, principalmente para interpretar
politicamente seu tempo, ligando os eventos históricos do passado a situações
contemporâneas.
Pesquisas com foco nos Griots e Djélis: as tradições orais na África ocidental
Somos a memória dos homens; através da
palavra, damos vida aos fatos e façanhas
dos reis perante as novas gerações (NIANE,
1982, p. 11).
Os griots aparecem nos relatos de viajantes franceses no final do século XVII e
início do século XVIII. Primeiramente, foram vistos como músicos e poetas, depois, como
historiadores, conhecidos como tradicionalistas ou genealogistas, responsáveis pelas
epopeias e, através de suas memórias, guardavam um saber social, enriquecidos pelas
músicas e contos (CAMARA, 1992). Esses “mestres da palavra” eram membros
importantes da antiga sociedade bem hierarquizada, detinham uma tradição histórica,
tendo a função de artistas, pelas suas lendas e epopeias, munidas de uma “tradição oral”,
sendo suas práticas, “mais arte que ciência” (LAYE, 1978, p. 21). Na epopeia Mandinga,
Djibril Tamsir Niane (1982, p. 7), diz que eles eram os “mestres na arte das perífrases”,
empregando maneiras arcaizantes, transpondo fatos em lendas, com sentidos secretos e
despercebidos. No conceito recente de Carolina Hofs (2014, p. 7), eles são vistos como
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Coisas Antigas Continuam no Ouvido”: a tradição oral africana como fonte histórica
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“artesãos das palavras e dos sons”, as quais os traduzem em eventos e ações
desempenhando várias funções entre músicos, genealogistas, conciliadores e poetas.
Sobre os estudos de Sundjata Keita e as tradições orais especificamente na área
cultural mandinga, destacam-se alguns autores, que possuem um trabalho extenso sobre
as tradições orais a partir da figura de alguns griots e djélis, nas regiões da África
ocidental. São trabalhos como os de Sory Camara (1976), Jan Jansen (1970) e Cherif Keita
(1995) que se ancoram nas características, permanências e continuidades das práticas
desses agentes de memória no tempo; entretanto, cada autor trabalha de acordo com as
demandas de seu tempo. Eles trabalham com sujeitos africanos e suas práticas culturais.
Dificilmente se encontram esses trabalhos em língua portuguesa; são obras de
intelectuais africanos que estudaram na Europa e de europeus engajados nos estudos de
sociedades de culturas orais.
Sory Camara (1939-2016) nasceu em Gueckedou, no sul da Guiné, e foi um
especialista em antropologia social e cultural. Ele começou a estudar sobre os griots e
djélis da África ocidental fazendo parte do departamento de Antropologia da
Universidade de Bordeaux, na França. Algumas de suas obras são: L’histoire pour les
Mandenka (1973); Gens de la parole. Essai sur la condition et rôle des griots dans la
société Malinké (1976); Grain de Vision, Afrique Noire, drame et liturgie (Travaux et
documents) (1994); Vergers de Láube: Paroles mandenka sur la Traversée du Monde
(2001), entre outras.
Esse autor foi marcante na coleta e análise de um importante e exaustivo trabalho
sobre a condição social, cultural e política dos griots na sociedade mandinga, na década
de 1970, focando uma descrição antropológica. Sory Camara expôs as hierarquias da
casta nyamakala, daspessoas de palavra” e suas singularidades nas relações de
parentesco e solidariedade, na importância do nome e do valor dos ancestrais, bem como
na importância da palavra, da iniciação da criança griot e djéli e das funções em diversas
performances, como música, dança e contação de histórias, especificando cada família e
seu lugar social. Suas obras ganharam diversos prêmios, dentre eles, o Grande Prêmio
Literário da África Negra.
Nessa obra, Gens de la Parole, que teve sua primeira publicação em 1969,
reeditada em 1992, Sory Camara mostrou interesse em redescobrir as tradições orais,
analisando, a partir de uma fisiologia social, o papel e o significado dos griots, propondo-
se entender como funciona e se organiza a casta do Nyamakala na sociedade mandinga.
O autor busca compreender como os griots continuam existindo depois de séculos, não
apenas por questões de sobrevivência, mas como sujeitos que inferem na sociedade, com
seus atributos essenciais, a música e a palavra. A partir de uma análise psicológica e
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PESSOA, Mônica
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sociológica, discute as relações desses “personagens” na vida social, religiosa e
econômica mandinga. Percebendo a presença dos griots nas estruturas hierárquicas
entre as castas e a relação de solidariedade e comunicação, analisa a sua inserção nas
mediações de conflitos sociais e políticos. Para tanto, faz, em primeiro lugar, o
reconhecimento histórico, linguístico e geográfico da sociedade mandinga:
Os Malinkes foram, desde a Idade Média até o início da era colonial, um povo
conquistador de guerreiros. Eles também foram e ainda permanecem hoje entre
os maiores comerciantes da África Ocidental. Eles formam um grupo
homogêneo de populações na região leste da atual República da Guiné, minorias
importantes no sul da República do Senegal, no sudoeste de Mali e no noroeste
da República da Costa do Marfim (CAMARA, 1992, p. 17).
A casta do ñamàkálá representa, na sociedade mandinga, uma posição
intermediária entre as categorias extremas, os Horó e os jo. Em base a relações
interclânicas e políticas, os ñamàkálá mediavam as relações entre os nobres e os cativos.
Contudo, apesar de não estarem no comando, detinham um poder, por desempenharem
um papel de legitimador das ações dos príncipes, com diversas especializações sociais,
visto que os nobres sofriam restrições políticas e os clãs reais necessitavam de pessoas
de outras condições sociais para estabelecer sua autoridade (CAMARA, 1992). Desse
modo, essas relações interclânicas desenvolviam relações de solidariedade unidas a um
conjunto de representações coletivas, como, por exemplo, o matrimônio.
Ainda segundo Sory Camara (1992), a sociedade mandinga de divisão entre clãs
seguia alguns critérios comuns, de acordo com sua organização hierárquica, como
possuir um nome comum (Jamú), um ancestral comum, que poderia ser real ou mítico
(Bébá), e um totem (Tàná), podendo cada indivíduo ser parte das castas existentes:
nobre, cativo ou nyamakala. Esta última casta, de que os griots fazem parte, representa
uma casta inferior. Os desta casta realizavam alguns ofícios essenciais para a sociedade
mandinga. Os indivíduos que integram seus grupos clânicos consideram-se, desse modo,
parentes e da mesma origem. No pensamento mandinga, cada grupo clânico possui uma
história totêmica, e o Jamú, nome clânico, é essencial para o desenvolvimento da
genealogia, com referência às histórias e aos feitos ancestrais. Os Horó orgulham-se do
seu jamú, pelo qual apreendem o resumo dos feitos ancestrais com passado glorioso
através da genealogia, ao contrário dos Jo, que podem adotar o nome de seus mestres.
O nome dos indivíduos nessas sociedades clânicas é importante para demarcar os
lugares que serão ocupados na sociedade, seja de poder ou não. O nome remete às
memórias de seus ancestrais, considerando a importância do grupo e de suas
responsabilidades na sociedade. Como explica Sory Camara (1992, p. 29), “o nome está
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Coisas Antigas Continuam no Ouvido”: a tradição oral africana como fonte histórica
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aqui não apenas para marcar a identidade de uma pessoa, mas também, e acima de tudo,
como um atributo honorífico de quem se orgulha.” O jamú representa um “resumo
genealógico”; com ele, os djélis cantariam em suas canções genealógicas as histórias dos
gestos das famílias e dos princípios ancestrais, fatos que baseariam a vida em grupo,
servindo seja para conhecer as origens de cada um, como para guardar essas histórias
para todas as gerações. O jamú, nessa estrutura social, relembra as aventuras e histórias
do ancestral fundador do clã, suas peregrinões, vitórias, a busca de um passado ou de
uma viagem a um tempo mítico que liga as experiências dos ancestrais ao tempo da
coletividade no presente. A sabedoria daqueles que já viveram antes dele darão o
exemplo às gerações vindouras (CAMARA, 1992).
Ao refletir sobre como muitos autores se empenharam nos estudos das tradições
orais, é possível observar que cada um focou uma especificidade, uma realidade e,
sobretudo, um tempo histórico. No caso de Jan Jansen, antropólogo e historiador
medieval pela Universidade de Utrecht, sua obsessão e capacidade de reunir pesquisas
in situ” e documentos em arquivo foi de extrema importância para a apreensão de como
as tradições orais fornecem diversos dados históricos sobre as sociedades de cultura
oral malianas, sobretudo no que tange à vida e à trajetória de Sundjata Keita, coletadas
pela boca dos djélis, em uma análise crítica das fontes orais sobre a sociedade no período
do império do Mali no século XIII. Suas obras de grande relevância podem ser citadas,
quais sejam: artigos na obra In Search of Sundjata; The Mande Oral Epic as History,
Literature, and performance (1999); L’Épopée de Sunjara, d’après Lansine Diabaté de
Kela (1995); Épopée, histoire, Société: les cas Soundjata Mali et Guinée (2001); The
Grit’s: essay on Oral de Soundjata (2000). Além destas, tem escrito artigos em revistas,
inclusive como coeditor da revista History in Africa: Journal of Method.
Sobre as práticas dos djélis em recitar as genealogias, em seu longo trabalho de
investigação sobre a compreensão de aspectos etnográficos e performáticos dos djélis
diabatés, Jan Jansen se põe a analisar louvores (fasaw), ouvindo vários dos conhecidos
como Kumatigui, os mestres da palavra entre o triângulo Bamako, Kita e Kankan (rego
mandinga e do antigo império medieval do Mali). Ele busca descobrir a natureza da
epopeia de Sundjata, observando as práticas dos djélis nas cerimônias secretas de
Kamabolon
8
, que ocorrem a cada sete anos em Kela, no Mali. Nesse trabalho, realizado
entre 1991 e 1993, percebe-se que as performances declamadas são eventos sobre o
8
Kamabolon é uma casa sagrada, situada em Kela região de Kamgaba no Mali, onde acontece a cerimônia
de sete em sete anos de recitação do épico de Sundjata Keita. Ela foi construída em 1653 e como
patrimônio histórico dessas populações, suas práticas significam uma política de liderança dos djélis
diabatés em Kela, os quais contam sobre as histórias dos seus ancestrais e sobre as peregrinações em
Meca, histórias que objetivam constituir elementos de legitimação de poder a partir de genealogias
históricas ligadas ao mundo muçulmano (JANSEN, 1999, p. 309).
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tempo de Sundjata, como a batalha contra Sumanguru Kantê, seu arqui-inimigo, o
confronto com o djéli Bala Fassakê, o exílio de Sundjata e a fasaw, genealogias com os
nomes em louvor dos seus ancestrais e com referência a grandes heróis ligados ao
profeta Maomé e a Sundjata. Os louvores são acompanhados pelas pessoas do vilarejo,
entre mulheres, crianças e visitantes. Os djélis diabatés recebem presentes em dinheiro
(moedas e cédulas), que o público joga durante a cerimônia.
As veres da epopeia de Sundjata em Kangaba, por exemplo, não são, para Jan
Jansen, criações literárias individuais. Trata-se de uma epopeia potica, pois, mesmo que
não haja muitas demonstrações, as genealogias são encapsuladas com linhas de louvor
padronizadas e são reivindicadas em favor dos Keitas de Kangaba, os patrões dos djélis
diabatés de Kela. Eles incorporam uma ação de lazer da sociedade e incluem ali um
conteúdo político. As cerimônias são secretas, para manter a estabilidade, os segredos e
as cosmovisões de uma herança cultural de um grupo específico, revelando que a
epopeia é “produto de um patrimônio altamente padronizado e realizado coletivamente”
(JANSEN, 1996, p. 35).
Jan Jansen considera as tradições orais o único recurso para a representação do
império de Sundjata Keita. No entanto, percebe que elas são caracterizadas pelos
mesmos padrões, quase “sem utilidade para reconstrução do passado” (JANSEN, 1996, p.
95). Mesmo assim, compreende que as posições ocidentais em torno da cronologia não
são válidas para as análises das tradições orais do mandê. As genealogias aparecem
como construções ideológicas baseadas no princípio de determinação, possivelmente
com princípios de descendências patrilineares, já que raramente aparecem figuras
femininas nas genealogias (JANSEN, 1996).
Contudo, as genealogias comumente representam elementos sociais e culturais de
um passado recente e também podem referir-se a um passado longínquo, como ao tempo
que expressa elementos históricos da fundação do império, pois, para Jan Jansen (1996, p.
10), “um princípio fundamental nas genealogias está na economia de cronologia,
imigrações muito prestigiosas e nas tendências estabilizadoras na sociedade”. Sempre
que uma sucessão de eventos estimula um status particular daquele que a declama, ela
deve ser analisada de geração em geração, com suas mútuas transformações.
Além desses trabalhos, Jan Jansen escreveu sobre a vida de Bala Kanté, um
ferreiro nascido em 1926, iletrado e contador de muitas histórias. Na obra Entretiens
avec Bala Kan: Une Chronique du Manding du XXème Siècle (Entrevistas com Bala
Kanté: uma crônica do Mandingo do século XX), o autor interpreta as narrativas de Bala
na cidade de Sobara, em Burkina Faso. Ele percebe que Bala Kanté expressa uma “visão
autêntica” de “modelos locais”
(JANSEN, 2005, p. 7), problemáticas de dentro da
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sociedade mandinga. Sua vida ilustra experiências vivenciadas no mandê e os temas
tratados por ele com nostalgia expressam o cotidiano, movido pelos modos de vida de
sua cidade de 400 mil habitantes, como a chegada da vida moderna, as práticas
relacionadas ao trabalho, as novas tecnologias, o abandono dos costumes antigos sobre a
questão da moralidade sexual, a monetarização da cidade e a submissão ao poder
internacional, razão pela qual, segundo Jan Jansen (2005, p. 7), ele “vive entre o velho e o
novo”
Nessa mesma alusão sobre conhecer as rupturas e continuidades dos papéis dos
griots e djélis, percebe-se, pelo estudo de Cherif Keita, professor do Departamento de
Estudos Francófonos do Carleton College, ser ele um especialista em culturas
francófonas e problemas sociais e literários na África contemporânea. Esse professor
vislumbra elementos atuais capazes de mensurar as transformações da arte
contemporânea na área cultural mandinga. Seu trabalho desperta interesse no estudo
das práticas das tradições orais contemporâneas, principalmente de sujeitos africanos
que estão na diáspora. Além de inúmeros livros, Cherif Keita é autor do documentário
Remembering Nokutela. Nokutela foi uma mulher africana, pioneira na luta por
libertação da África do Sul. Keita quis mudar a imagem das mulheres africanas apenas
como nota de rodapé. O autor se engajou em contar sua história 44 anos depois de sua
morte, em forma de documentário, demonstrando ser sensível às narrativas de sujeitos
então apagados da História.
Já na obra Massa Makan Diabaté: un griot Malinké à la reencontre de l’écriture,
constatando a importância da genealogia e a influência do grupo social para a construção
do indivíduo, Cherif Keita analisa as experiências do escritor Massa Diabaté, um griot
das regiões de Kita, no Mali, que agrega sua arte e escrita literária a um patrimônio
familiar. O autor enfatiza a “validade da genealogia como fonte fundamental de aspiração
artística e poética” (KEITA, 1995, p. 39). Pela prática da fasiya, o autor reconhece o
apego do artista mandingo às práticas de seu povo, “criando dentro de uma tradição, de
acordo com os cânones encarnados por uma linhagem paterna”. A fasiya é quando o
homem ou mulher mandingo conecta suas práticas ao patrimônio familiar e à sabedoria
ancestral, reconciliando sua individualidade com uma dimensão coletiva, contribuindo,
desse modo, para a elevação social de seu grupo social.
Cherif Keita (1995, p. 40) dá importância à iniciação, produzindo caminhos que
estabelecem algumas hipóteses para a compreensão das performances contemporâneas
dos djelis no tempo presente. Explica:
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.6, nº1, p.62-85, jan.-jun., 2019
PESSOA, Mônica
82
A personalidade mandinga privilegia a iniciação do indivíduo ao seu Fasiya ou
patrimônio familiar para garantir-lhe os recursos materiais e morais essenciais
ao seu compromisso com o pleno status de Mogo, isto é, ser um ser humano
consciente de suas bases, jujon, e capaz de contribuir para a elevação do grupo
social em que vive.
São os caminhos da iniciação que traçam todo um conjunto de responsabilidades,
pelas quais será garantida a sabedoria que baseará a moral e os saberes desde a infância
nas relações com o grupo social, sempre ligado ao universo dos ancestrais tanto à
sabedoria quanto à dor durante a prática e o momento da circuncisão, pois “a criança
educada e iniciada é capaz de enfrentar todos os desafios da existência/vida” (KEITA,
1995, p. 40). A iniciação orienta a criança mandinga ao encontro de sua humanização e
sela uma relação profunda com a vida social e coletiva. É por meio da fasiya a relação
de pertencimento cultural do artista antes de nascer que a criança se torna depositária
dos segredos originários de sua linhagem paterna.
Cherif Keita vai perceber em seu trabalho o quão importante é a iniciação
mandinga. A partir da circuncisão, garante uma estreita relação com o mundo invisível
dos ancestrais, como uma força vital, nyama, uma grande energia com eficiência social
capaz de ultrapassar os limites da palavra e transformá-la em ação, numa interação com
os princípios imateriais, transformando a palavra como ato concreto no corpus social
mandinga. A palavra Kouma está apta a agir e a produzir efeitos a partir da pessoa que
fala e das forças das quais emana; veicula sentimentos humanos e é, ao mesmo tempo, o
melhor instrumento social e um insubstituível instrumento de dominação. Escreve: “Sem
a palavra, não há poder, autoridade” (KEITA, 1995, p. 49).
Além disso, Cherif Keita, ao buscar entender a natureza das relações dos
escritores africanos e dos artistas orais na Fraa, percebe que Massa Makan Diaba
“tem profundas raízes no antigo mandê”, visto que ele utiliza seus poemas e sons épicos
para celebrar o estado de ser mandinga “maninkaya” (KEITA, 1990, p. 104) —, por
impor as visões de mundo mandinga nos textos em língua francesa. Diabaté preocupa-se,
na França, em encontrar uma tradução adequada aos seus esquemas culturais, na crença
de que “o papel do artista oral é manter vivas as memórias e valores do velho Mali”
(KEITA, 1990, p. 104). Ele admite a importância dos djélis no mundo colonial e pós-
colonial como desafio, escolha consciente para sua vida e sua arte, compreendendo a
importância do mundo mandê na produção de seus textos, pois, para ele, os djélis têm “a
função da preservação da harmonia social
(KEITA, 1990, p. 106), mantendo as memórias
dos ancestrais vivas.
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Coisas Antigas Continuam no Ouvido”: a tradição oral africana como fonte histórica
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Considerações finais
É possível perceber, nos estudos africanos, e também através de um conjunto de
autores engajados em estudos das sociedades de cultura oral, cuja tradição oral é
matéria-prima para o conhecimento ancestral dessas sociedades, fonte de sabedoria de
diversos povos que, de geração em geração, contam e recontam suas histórias via
oralidade. Mas não é somente a palavra. A oralidade, em confluência com as experiências
coletivas remodeladas no presente, tem como fio condutor os saberes e viveres de seus
antepassados, um patrimônio familiar
9
harmonizado a uma dimensão coletiva (KEITA,
1995, p. 41) que dura, se refaz e se atualiza por séculos. O ato de contar, memorar,
reviver, traduzir, produzir e reproduzir as histórias é o que mantém viva a tradição oral
no tempo presente e lhe dá sentido.
A palavra não é somente o que se fala; é munida de um poder nas dimenes
espirituais, sociais e políticas que regem a vida dos indivíduos dessas sociedades na
África ocidental. A ancestralidade é como um espelho, reflexo dos feitos e valores
culturais para que as gerações conheçam seu passado, na metamorfose de novos
sujeitos que buscam nele e em seus patrimônios culturais fonte de inspiração para
conduzir as novas práticas no presente, tendo como base histórias, contos, canções,
genealogias e ofícios transmitidos de boca a ouvido, fundamentais para a organização
social e a sobrevivência cultural das sociedades com tradições orais.
Baseadas nelas como fontes de história, essas sociedades são capazes de
representar e articular discursos a partir de narrativas que congregam mitos fundadores
e ancestrais, utilizando um discurso particular para organizar o pensamento social e as
práticas cotidianas no tempo presente, contados e recontados em diversas versões e
performances
artísticas. A memória, para eles, são histórias, vívidas, viventes no
cotidiano quando acionadas para compreender e legitimar seu cotidiano no presente.
Tentei discutir neste artigo alguns dos principais estudos relacionados às
tradições orais africanas sem o objetivo de esgotá-lo. Entretanto, como um ensaio,
busquei oferecer possibilidades existentes, nem sempre acessíveis a estudantes
brasileiros, mas que apontam para importantes fontes históricas e caminhos
metodológicos úteis aos pesquisadores interessados no universo maravilhoso que são as
9
Para Cherif Keita (1995, p. 40), o patrimônio familiar advém de caminhos percorridos a partir dos ritos
iniciáticos no seio familiar como a circuncisão, práticas ainda realizadas pelos povos da África ocidental,
com permanências e continuidades próprias e variantes de região para região. Nas sociedades Malinkés é
o patrimônio familiar que liga os indivíduos ao universo dos ancestrais e lhes dão as condições
necessárias para o conhecimento de si mesmo e de seu grupo social.
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PESSOA, Mônica
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narrativas orais das diversas Áfricas, às vezes desconhecidas, mas nem sempre paradas
no tempo.
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