Recebido em: 01/03/2019
Aprovado em: 24/04/2019
Fontes orais e digitais:
apontando possibilidades
Oral and digital sources:
indicating possibilities
CEZARINHO, Filipe Arnaldo
*
Resumo: São múltiplos os discursos que permeiam a Guerra de Espadas em Cruz das
Almas-BA. Com a sua criminalização, em 2011, potencializaram-se os enfrentamentos
entre populares e membros do Estado nos diversos níveis sociais. Nosso objetivo no
presente artigo é analisar os discursos da tradição e do crime tomando as práticas
discursivas como produtoras de subjetividades. Para isso, coligimos duas tipologias de
fontes históricas: a oral e a digital. Defendemos que o uso dessas duas fontes, em
conjunto, permite acessar as constantes mudanças nos processos de constituição dos
sujeitos no tempo e espaço. Ao mesmo tempo, abre-se a possibilidade de conjecturar
sobre as limitações desses documentos quando vistos separadamente e, por outro lado,
suas reais potencialidades quando tratados harmonicamente por historiadores (as) e a
disciplina histórica.
Palavras-chave: Metodologia da História; Discurso; Fontes; Guerra de Espadas.
Abstract: Many discourses permeate the Guerra de Espadas in Cruz das Almas, Bahia.
With the criminalization, in 2011, potentialized the confrontations between the population
*
Graduado em História pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Mestre pelo programa
de Pós-Graduação em História do PPGH/UNICENTRO, Irati. Membro do Núcleo de Estudos de História da
Violência (NUHVI). E-mail: cezarinhohistoria@hotmail.com.
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and members of the State in different social fields. Our objective in this paper is analyzes
the discourses of tradition and of the crime taking the discursive practices as creator of
subjectivities. For this, we found two typologies of historical sources: oral and digital. We
defend that the use of these sources, together, allow accessing the constant changes in
the processes of the constitution of the subjects in time and space. At the same time, it
opens the possibilities of conjecture the limitations of these documents when they are
valued separately and, on the other hand, their real potentialities when treated
harmonically for historians and the History discipline.
Keywords: History Methodology; Discourse; Sources; Guerra de Espadas.
Quem não viu, perdeu a grande oportunidade
de ver a maior guerra de todos os tempos,
travada na cidade de Cruz das Almas. Uma
verdadeira batalha que não era de ódio nem
rancor e sim de paz, amor e fraternidade. Era
a guerra de espadas, travada bem no centro
da cidade, em comemoração ao dia de São
João.
Tribuna Popular, 2001
Não há direito absoluto e imune a
flexibilizações, ainda que tal direito advenha
de costumes socialmente reconhecidos e
transmitidos de geração a geração. Toda e
qualquer tradição e que isto se revele
cristalino -, para que se mantenha no correr
dos tempos, haverá de se pautar nonimo de
racionalidade posvel, submetendo-se a
leituras necessárias na dialética das relações
sociais modernas e seus novos valores. Há
seis séculos superamos a Idade Média [...].
Ação Cautelar, 2011, p. 4
Introdução
Tomando como ponto de partida uma experiência de pesquisa
1
, nosso objetivo é
analisar os discursos da tradição e do crime tomando as práticas discursivas como
produtoras de subjetividades. Defendemos, ainda, que a harmonização das fontes orais e
digitais permite romper com algumas limitações específicas a cada uma dessas fontes.
A linha de pensamento que utilizamos para formulação do presente texto partiu
da noção de discurso como produtor de subjetividades e que vem ganhando evidência
nos diversos campos do conhecimento (CANDIOTTO, 2008; FERNANDES, 2012;
1
As fontes elencadas para constituição do artigo foram produzidas em torno das discussões da pesquisa
de mestrado em História. Buscávamos, naquele momento, refletir sobre os processos de subjetivação dos
atores e atrizes sociais vinculados(as) à tradicional Guerra de Espadas em Cruz das Almas-BA.
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DOMINGOS, 2015). Se discurso é poder, aquilo que se busca obter (FOUCAULT, 1999),
portanto, uma de suas qualidades está na produção de sujeitos no tempo/espaço. Em
síntese, toda prática discursiva opera pela objetivação e subjetivação. Em nossa
concepção, os discursos caracterizam-se por: atribuir significados aos sujeitos, deslocar
e produzir constantemente subjetividades.
Dentro das dinâmicas exercidas pelos discursos, acionamos as técnicas de si que
são importantes na constituição dos sujeitos modernos. Descentrando o indivíduo da
estrutura e partindo de uma perspectiva genealógica, Foucault (1993) atribuía às técnicas
do auto-exame e da confissão condições do sujeito constituir a si mesmo. Sugeriu que
para entender a formação dos sujeitos, historicamente, seria necessário ir além das
tecnologias de dominação discursivas impostas, considerando que cada um estabelece
procedimentos sobre si. Com isso, ele tornava complexas as relações de poder. Partindo
dessa postura, cada sujeito pode adquirir a habilidade de governar a si mesmo e essas
técnicas racionais estabelecem novas subjetividades.
Ao analisar a experiência da sexualidade, fiquei cada vez mais consciente de
que, em todas as sociedades, existem outros tipos de técnicas, técnicas que
permitem aos indivíduos efetuarem um certo número de operações sobre os
seus corpos, sobre as suas almas, sobre o seu próprio pensamento, sobre a sua
própria conduta, e isso de tal maneira a transformarem-se a eles pprios, e
modificarem-se, ou a agirem num certo estado de perfeição, de felicidade, de
pureza, de poder sobrenatural e assim por diante. Chamaremos a estes tipos de
cnicas ou tecnologias do eu (FOUCAULT, 1993, p. 207).
Assim posto, testaremos as proposições de objetivação/subjetivação dos
discursos nas fontes empíricas que aqui se apresentam. Coligimos dois registros orais e
dois registros digitais de colaboradores, em momentos diferentes, para percebermos os
processos indicados anteriormente e o desabrochar de uma ethos de si. A História oral
foi utilizada como recurso metodológico na produção dos relatos. Por questões éticas,
preservamos as identidades dos entrevistados atribuindo, para esses, nomes fictícios. No
caso dos registros digitais, partimos da observação dos perfis das mesmas pessoas em
uma plataforma online, o Facebook, capturando seus registros pela ferramenta
PrintScreen. Aqui, assim como nas entrevistas, foram retirados possíveis indicadores
que permitissem a identificação dos colaboradores.
A seleção dos entrevistados deveu-se por dois motivos principais: o primeiro,
condiz ao fato de serem eles membros da Associação dos Espadeiros. Após a
criminalização da tradição os (as) espadeiros (as) se movimentaram para erigir uma
Associação, criando, assim, estratégias legais para a retomada da tradição ao campo da
legalidade. Ter em mente tal informação será fundamental para compreensão das
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reflexões propositadas nas considerações finais de nosso trabalho. Acompanhando-nos
até o término do texto, o (a) leitor (a) poderá decodificar outros elementos contidos nas
entrelinhas dos discursos desses sujeitos. O segundo, não menos importante, revela que
essas duas pessoas distribuem regularmente informações sobre a Guerra de Espadas
pelas mídias digitais, projetando suas posições com relação à tradição e à criminalização
abertamente. Além dessas tipologias documentais, utilizamos fontes oficiais e jornais
para melhor contextualização do objeto aqui analisado.
Sobre a metodologia da História oral. Esta pode ser considerada uma “velha”
conhecida dos (as) historiadores (as). Seu uso permitiu trazer as histórias dos sujeitos
ordinários, aqueles que sempre tiveram suas vidas negadas pela História oficial
(FRANÇOIS, 1998; TEDESCHI, 2014). A temporalidade, na História oral, é de tamanha
relevância, pois está nela o elemento de definição do que será rememorado por cada
indivíduo (DELGADO, 2003). Destacamos que o relato oral não revela a realidade do
acontecido. Reconstruídos entre o social e o individual, os relatos perpassados oralmente
são sempre versões do passado e jamais serão idênticos. Além disso, a narrativa oral
avança dos eventos para os significados, permitindo acessar os reflexos que
determinados acontecimentos causaram sobre os sujeitos narradores (PORTELLI, 1997).
Por esses motivos, acreditamos na eficácia de submeter o registro oral ao método
foucaultiano e, assim, alcançarmos as inflexões subjetivas nas falas dos nossos
colaboradores.
Antes de tudo, necessitamos situar de que maneira entendemos a História oral.
Como todos (as) sabem, os debates ao redor de uma melhor definição para a História
oral ganharam tons entre diversos (as) historiadores (as). Não cabe aqui levantá-los (as),
pois não visamos discutir sobre essas questões neste artigo. Orientamos, meramente,
que as discordâncias se atrelam ao entendimento do que seria a História oral. Assim, a
história oral seria uma metodologia, uma disciplina ou uma técnica?
Do nosso lado, entendemos que a história oral é uma metodologia que permite a
apreensão de relatos orais e que, mais tarde, podem ser transformados em fontes, sendo
essas últimas submetidas ao criticismo de historiadores e historiadoras, possibilitando a
construção de narrativas históricas. Em busca de uma definição mais sofisticada da
História oral, deixemos o pronunciamento de Verena Alberti (2006, p. 155):
A História oral é uma metodologia de pesquisa e de constituição de fontes para
o estudo da história contemporânea surgida em meados do século XX, após a
invenção do gravador a fita. Ela consiste na realização de entrevistas gravadas
com indivíduos que participaram de, ou testemunharam, acontecimentos e
conjunturas do passado e do presente.
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A criminalização da tradição: sucinta contextualização
A realidade social que proporcionou a reflexão presente neste texto está
localizada no interior da Bahia, mais especificamente em Cruz das Almas.
Imagem 1. Localização de Cruz das Almas-BA.
Fonte: Google Maps.
2
Centenária, a tradicional Guerra de Espadas pode ser considerada a maior
expressão cultural daquela populão. Deflagrada todos os anos no mês junino, pois es
estreitamente vinculada ao São João, a Guerra de Espadas no município divide opiniões.
Para alguns, a tradição é a real expressão da barbárie, primitivismo e anacronismo; para
outros, é a linha que liga os sujeitos à região, que reatualiza as relações de identificação
com seus ancestrais e, dentro dos jogos de poder, pode ser considerada como
patrimônio cultural pelos discursos populares como contraponto ao discurso jurídico. É
o próprio Foucault (2013, p. 20-21) quem explica essa questão:
Por outro lado, parece-me que existem, na sociedade, ou pelo menos, em nossas
sociedades, vários outros lugares onde a verdade se forma, onde um certo
número de regras de jogo são definidas [...] e por conseguinte podemos, a partir
daí fazer uma história externa, exterior, da verdade.
2
Disponível em: https://www.google.com/maps/place/Cruz+das+Almas,+State+of+Bahia,+44380-000/@-
12.6160599,-38.9757028,10z/data=!4m5!3m4!1s0x715bd88b8db3471:0xaaf1562d770b7e79!8m2!3d-
12.6735557!4d-39.1016848. Acesso em: 13 abr. 2019.
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É complexo estabelecer a data de nascimento do tradicional festejo. Podemos
perceber, por meio de jornais, que ela já era praticada por pessoas que moravam na
cidade desde o começo do século 20, conforme apresentado na matéria do jornal A
Tarde, em 1983: “O espetáculo, perigoso, mas de rara beleza, já se realiza há mais de 70
anos, sendo o ponto alto dos festejos juninos em Cruz das Almas” (A TARDE, 1983).
Em outra edição do jornal, o espadeiro Raimundo Mendes, apelidado
popularmente por “Mundinho”, sugere, ao ser entrevistado, diferente vero sobre a
origem da “brincadeira” na cidade: “Mundinho Fogueteiro diz acreditar que ela surgiu
nos anos 40, vindo da Itália e agradando aos índios no Brasil. Ele conta que seus bisavós
eram caboclos e já gostavam da brincadeira” (A Tarde, 2007). Independentemente da
versão admitida, pois sabemos que interesses diversos atravessam tais interpretações, o
mais importante para o momento é que há dificuldades visíveis em buscar uma
“verdadeira” origem da tradição.
Algumas tradições “inventadas” se perdem no horizonte do tempo que chegam a
criar verdadeiros obstáculos na apreensão de sua origem. Outras, mais datáveis, são logo
identificadas (HOBSBAWM, 1984). É mais provável que a Guerra de Espadas esteja
inserida no primeiro bloco de tradições inventadas. Cabe alinhavar que a questão da
origem sempre foi condição imprescindível para a historiografia tradicional. Por outro
lado, ao apropriarmos dos pressupostos teóricos de Michel Foucault (1979), este
seguindo os mandamentos de Nietzsche, a busca pela origem nos levaria para uma
metanarrativa. O mais importante, segundo Foucault (1979), está na utilização da
genealogia como método histórico e não num retorno ao longínquo passado. De toda
forma, a última posição permite caminhar mais facilmente com fenômenos que ganham
formas nas sociedades e que dificultam o seu enquadramento rígido em datas especiais,
sendo o mais importante não a sua origem, mas as relações de poder que podem ser
cartografadas a partir deles.
Mesmo acontecendo em algumas cidades do Recôncavo baiano, é entre os
municípios de Cruz das Almas e Senhor do Bonfim
3
que a disputa pela “hegemonia” de
maior Guerra de Espadas se realiza:
Enquanto Feira de Santana e Alagoinhas disputam a primazia das micaretas
baianas, Senhor do Bonfim e Cruz das Almas fazem o mesmo em relação ao São
João: nas duas cidades, a célebre “guerra de espadas” atrai grande fluxo
turístico e é praticamente impossível encontrar hospedagens nos dias da festa,
tanto numa quanto na outra cidade (A TARDE, 1979).
3
Município localizado ao centro-norte da Bahia. Estima-se que a sua população seja de 78. 588 pessoas.
Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ba/senhor-do-bonfim/panorama. Acesso em: 11 abr. 2019.
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Mas nem tudo é festa. Nãoo de agora os embates que integram a Guerra de
Espadas. Na busca por disciplinamento da prática, o prefeito Carmelito Barbosa instituía,
em 1994, ruas e avenidas proibidas de serem realizadas a queima das espadas. Não há
dúvida que as pressões daqueles (as) que eram contrários (as) ao festejo, mas,
concomitantemente, à percepção de que as leis do Estado brasileiro começavam a
sobrepor-se aos interesses locais, foram determinantes para tais ações. Diversas ruas e
avenidas ganharam faixas indicando que naqueles lugares a Guerra de Espadas estava
proibida:
Este ano, a tradicional guerra de espadas que acontece durante o São João terá
horário predeterminado e também áreas onde a perigosa brincadeira será
proibida. A iniciativa de disciplinar a queima dos fogos na cidade partiu do
prefeito Carmelito Barbosa, atendendo a reivindicação de diversos setores da
comunidade [...]. Para isso, o prefeito, Carmelito Barbosa, lançou mão do
Decreto-lei 4.238, de 8 de abril de 1942, assinado pelo então presidente da
República, Getúlio Vargas [...] (A TARDE, 1994).
Obviamente que a partir daí novos conflitos deflagraram-se por toda a cidade,
pois o maior controle do governo sobre a urbe impedia o acesso livre e os usos
tradicionais daqueles espaços. Desabrocham-se sinais e indícios de que a própria Guerra
de Espadas entrava no eixo de uma evidente modernidade pela qual estava atravessando
a cidade de Cruz das Almas. Lembremos que a década de 1980 foi fundamental nesse
empreendimento com as construções da BR101 e a Barragem Pedra do Cavalo, facilitando
o acesso de pessoas com atribuições socioeconômicas e culturais diferentes e que, em
muitos casos, passavam a morar naquele município.
Como é a dinâmica de funcionamento da Guerra de Espadas? O desenrolar é
simples. Nos dias 23 e 24 de junho, as pessoas costumam sair com suas espadas de fogo
estabelecendo pequenas guerras por entre as vias públicas da cidade. Normalmente em
grupos, as pessoas lançam suas espadas contra as outras e assim começa a diversão.
Não há vitoriosos (as). O mais importante é “pular” as espadas ao som de um bom forró
nordestino e acompanhados (as) pelo licor (bebida comum no São João) que alimenta a
coragem daqueles (as) que se lançam por meio do fogo cruzado. No final da noite, todos
retornam para suas casas e contam as várias experiências adquiridas na Guerra de
Espadas, além, é claro, das orgulhas demonstrações de suas queimaduras.
Em 2011, nas idas e vindas de conflitos que envolvem a Guerra de Espadas, o
Ministério Público local moveu uma Ação Cautelar proibindo a famosa tradição. As
alegações sobre os distúrbios sociais foram várias: depredação dos bens públicos e
privados, riscos de lesões corporais e o impedimento do exercício “natural” de “ir e vir”,
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por exemplo. Com todo esse arcabouço discursivo, os agentes vinculados ao Estado
criminalizaram a prática.
Desde então, as formas de repressão têm sido variadas, assim como, as
resistências demonstram-se cada vez mais inteligentes, criativas e permanentes aos
mandos e desmandos da lei, o que justificou a recomendação do Ministério Público no
ano de 2015:
RECOMENDAR AOS PREPOSTOS DAS POLÍCIAS CIVIL E MILITAR COM
ATUAÇÃO NO MUNICÍPIO DE CRUZ DAS ALMAS/BA que adotem as
providências necessárias para coibir as atividades de fabrico, transporte,
comércio e uso (queima) de fogos de artifícios e pirotécnicos, bem como de
explosivos, pólvoras mecânicas e pólvoras químicas de qualquer tipo, inclusive,
“espadas”, realizadas em desacordo com as determinações legais e
regulamentares, inclusive: (a) apreensão dos artefatos produzidos,
transportados, comercializados e utilizados de forma irregular; e (b) prisão em
flagrante pelo cometimento dos crimes listados na presente recomendação,
ressalvado o dispositivo na lei n. 9.009/1995, quando for o caso
(RECOMENDAÇÃO N. 01/2015, 2015, p. 4).
É partindo desse complexo cenário de criminalização da tradição que devemos
compreender as análises seguintes. Queremos encontrar as:
relações de poder uma vez que os enunciados, inscritos nessas relações e
discursivamente produzidos, apontam para posições-sujeitos, e essas posições
integram exercícios de poder que se oem. Tratam de relações complexas que
compõem os discursos e implicam a produção da subjetividade (FERNANDES,
2012, p. 74).
Apesar de tratarmos das relações da Guerra de Espadas com os discursos, é
evidente a existência do nível mais palpável da vivência da tradição por parte dessas
pessoas. Essa vivência revelada nas relações socioeconômicas, nos múltiplos conflitos
e disputas por objetivos concretos e, é claro, nas formas de dar sentido à existência é
estabelecida com voracidade entre os habitantes que direta ou indiretamente estão
ligados à Guerra de Espadas. Nesse caminhar, Durval Muniz de Albuquerque Júnior (2011)
traduz, habilmente, o que acabamos de suscitar:
[...] as festas são espaços de negociação, de tensões, de conflitos, de alianças e
de disputas entre distintos agentes, que se conflitam e se debatem em torno não
só dos sentidos e significados a serem dados à festa, como também em torno
das práticas que as constituirão, dos códigos que as regerão, das regras que
estabelecerão permissões e proibições, que definirão limites e fronteiras entre o
que pode ser admitido e o que dever ser excluído. As festas podem não só ser
campos de lutas concretas, de enfrentamentos entre pessoas e grupos, em
torno dos valores e preceitos que definem o viver em sociedade, mas elas são
campos de luta simbólica, de luta entre projetos, sonhos, utopias e delírios, mas
são acima de tudo momento e invenção da vida social, da ordem social e da
própria festa e seus agentes (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, p. 147-148).
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Poderíamos, aqui, apresentar várias outras circunstâncias empíricas e trajetos
teórico-metodológicos que manifestam o caráter vivido da Guerra de Espadas por parte
de seus e suas apreciadores (as), escapando, por assim dizer, de análises que velam
restritamente pelos discursos. Adentraríamos pelas formas de sobrevivência dessas
pessoas, pelos conflitos físicos entre agentes vinculados ao Estado e espadeiros (as), nas
transações microeconômicas das vendas das espadas, até mesmo faríamos os (as)
leitores (as) sentirem na língua os diversos sabores de licores e seus efeitos que dão
coragem aos espadeiros e espadeiras para que se lancem no fogo cruzado das espadas.
Mas, como já dissemos, limitaremos nossas reflexões ao campo das práticas discursivas
que constituem sujeitos na Guerra de Espadas em Cruz das Almas-BA.
Subjetivações nômades: espadeiros, criminosos ou heróis?
Talvez, uma das mais acentuadas limitações da História Oral vincula-se ao
retorno do (a) pesquisador (a) ao entrevistado e entrevistada. Em casos específicos, por
exemplo, quando o (a) historiador (a) trabalha com pessoas em condições de crime, a
realização de uma segunda entrevista torna-se demasiadamente complicada, mas não
imposvel. Nesse sentido, a experiência com a utilização de fontes digitais, isto é, com a
captura de registros deixados por essas pessoas em rede, pode contribuir
significativamente, oferecendo novos instrumentais de acesso às informões.
Dentro dos múltiplos problemas existentes no uso e conservação dos
documentos acessados online, destacamos os seguintes: a efemeridade e instabilidade,
ou seja, a qualquer momento podem ser excluídos permanentemente do contexto digital
(LUCCHESI, 2015; TOMASI, 2013); a ausência da autoria, pois a internet permite que
informações, notícias e imagens sejam disseminadas sem a existência de sua origem,
dificultando acessar a sua veracidade (OLIVEIRA, 2014; ALMEIDA, 2011; SÁ, 2008); e, por
último, as apropriações monopolistas das memórias compartilhadas por parte dos
grupos econômicos (BEIGUELMAN, 2014). No caso dos registros online desprovidos de
autoria, Cezarinho (2018) indicou meios para sua utilização. Conforme dito, essas fontes
não são externas às práticas discursivas de determinada temporalidade. Dessa maneira,
bastaria contextualizá-las com outras tipologias documentais para extrair sua
veracidade. Apesar desses ajuizamentos que o (a) historiador (a) precisa ter na hora de
lançar-se sobre tais fontes, é certo que esses documentos digitais carregam profícuas
linhas de possibilidades interpretativas para pesquisas em História.
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Ao refletirmos sobre as fontes orais e digitais, a partir de suas potencialidades e
limitações, percebemos que a relão do pesquisador (a) /entrevistador (a) com o
colaborador (a) /entrevistado (a) pode acarretar em bloqueios de informações.
Obviamente que isso acontece pelo efeito de poder que o discurso pronunciado pode
causar e, também, por ser um mecanismo de defesa do sujeito que narra o evento.
Porém, o registro digital deixado por esses indivíduos, por meio de um suporte
(computador, celular, tablet etc.), permite que suas falas sejam abertas, pois a internet
expande a noção de impessoalidade. Estar por detrás da tela de um computador ou
celular pode explicitar discursos que no relato oral, em casos especiais, não seriam
possíveis. Há maior “liberdade” em discursar sobre questões problemáticas, por
exemplo, a de posicionar-se perante um crime e, até mesmo, sobre os próprios agentes
estatais representantes da lei e da ordem, como veremos adiante.
As vantagens em articular essas duas tipologias de fontes podem ser percebidas
em outras situações. Imaginemos uma prática cultural, como a Guerra de Espadas, que
mobiliza centenas de pessoas todos os anos: qual seria o critério metodológico que o (a)
historiador (a) utilizaria para seleção de seus entrevistados e entrevistadas? Nesse
sentido, reconhecemos a importância dos registros deixados na internet.
Foi exatamente esse o recurso facilitador que propiciou a primeira entrevista
presente neste trabalho. Trazemos o nosso colaborador Martinho, 34 anos, para falar um
pouco de sua relação com a tradição que se tornou crime em 2011. Chamaremos a
atenção para os processos de objetivação/subjetivação propositados por dois discursos:
o da criminalização e da tradição. O entrevistado explica:
Com a proibição? Totalmente. Não me sinto à vontade. Na verdade, eu nem
fabrico. Não fico à vontade para fazer mais. Não tem como, né? Você está
criminalizado para todo efeito. Os seus familiares ficam preocupados se vo
vai na rua, se você fabrica, se você está envolvido. É constrangedor! É
totalmente horrível essa situação (Martinho, entrevista, 21 dez. 2016).
E continua:
Para mim, isso foi bastante agressivo, muito mais agressivo do que a nossa festa
que também não considero ser agressiva. Acho que falta só a mão do poder
público em cima disso, sabe? Mas assim: a forma que foi pregada sobre a
tradição, a proibição criminalizou todo mundo, isso foi horrível, isso foi pior do
que a própria tradição do ponto de vista deles, né? Que é crime, que não presta
(Martinho, entrevista, 21 dez. 2016).
O discurso da criminalização parece deixar Martinho sem saída. Ao analisarmos
a fala, notamos que a objetivação do crime estabelece tamanha força na constituição de
sua subjetividade que acarreta na destituição de suas referências, além de fazer ver a si
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mesmo como um criminoso; sensação que para ele é constrangedora e “totalmente
horrível”. Martinho também demonstra como a criminalização foi violenta com a tradição
e com ele mesmo. Seu relato permite identificar elementos desconfortantes a partir da
objetivação/subjetivação que está sendo projetada pelas relações de poder intrínsecas
aos discursos. Concomitantemente, são visíveis alterações em sua prática com relação à
tradição que tanto estima. As técnicas de dominação, pelo menos nesse momento,
parecem se realizar de forma plena sobre ele.
Concomitantemente, o espadeiro não deixa de perceber os excessos por parte
de pessoas que utilizam as espadas de qualquer maneira, sem um rigor e de maneira
irresponsável:
Tem gente, tem gente que toca espadas como se estivesse lançando uma bola de
boliche. E geralmente quem toca espada assim tem uma espada forte, ou seja, já
faz a espada pensando, não tá pensando em brincar, tá pensando em bagunçar a
festa, tá pensando em medir força com alguém, com algum rude, me desculpe o
termo, igual a ele, certo? Que quem tem consciência não faz um negócio desse.
Essa é uma das, né, uma das maneiras (Martinho, entrevista, 21 dez. 2016).
O primeiro registro digital, retirado da plataforma Facebook, pode contribuir
nesse quesito. Começamos a entender, ao longo da pesquisa, que muitos participantes da
Guerra de Espadas compartilhavam registros sobre os problemas que afligiam a
tradicional festa. Os conteúdos disponibilizados em rede social digital eram
variadíssimos; iam da defesa da tradição às tentativas de regulamentação da Guerra de
Espadas. O próprio Martinho era um desses espadeiros que publicava e ainda publica
informações sobre a sua tradição via internet. Desde então, perscrutamos os perfis
desses sujeitos em busca de dados que contribuíssem para o desenvolvimento da
pesquisa.
Salientamos que, diferentemente da fonte oral, produzida, normalmente, pela
interlocução entre entrevistador (a) /entrevistado (a), a fonte digital, ou a fala (escrita ou
audiovisual) desses sujeitos pela internet, visa alcançar um público muito maior.
Enquanto na primeira, em alguns casos, é claro, tende a ser mais difícil conseguir
informações que envolvam questões pessoais e constrangedoras; na rede online, o
constrangimento parece desaparecer por momentos e, dessa maneira, o privado torna-
se público. A relação impessoal e a falta de contato físico com outros (as) permitem que
os (as) internautas interajam com assiduidade, favorecendo a projeção de discursos
múltiplos. Porém, muitos excluem seus registros quando percebem o real alcance de suas
postagens em rede. Diante disso, o que seria tido como limite, agora, torna-se vantagem
ao historiador.
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Mesmo quando o registro é apagado permanentemente da rede, o (a)
pesquisador (a) que observa pelas mídias digitais e que percebe tal movimento, pode
selecionar o (a) internauta que apagou o registro e buscar compreender os motivos de
sua ação. Isto é, um documento levaria à constituição do outro. Seguindo esse caminho,
evitamos dizer que uma tipologia de fonte é apêndice ou suporte da outra. Essas fontes,
oral e digital, possuem suas peculiaridades, potencialidades e limitações. Buscamos
demonstrar, portanto, que o cruzamento desses documentos amplia o “leque” de
possibilidades do (a) historiador (a).
A motivação em entrevistar Martinho partiu, segundo nosso critério, de uma
postagem realizada por ele na plataforma Facebook. Naquele momento, ele exaltava a
tradição da qual fazia parte e enfrentava a objetivação do discurso jurídico. Sua fala
demonstrava o que Foucault (1993) chamou atenção: as técnicas de si. Em outras
palavras, Martinho criava, a partir dos discursos externos e da reflexão sobre si, a sua
verdade.
Antes de adentrarmos na análise do registro digital, é preciso mencionar que
tanto na História oral quanto nas mídias digitais, o interesse de participação do público
na produção de discursos e representações sobre si e sobre o seu grupo fazem-se
imediatos. Bruno Leal Pastor de Carvalho (2016) destacou que esse é um ponto
elementar no que se convencionou chamar de História Pública. Ao desenvolver, em seu
texto, os três fatores relevantes e que devem ser considerados por historiadores e
historiadoras, ele revelou o seguinte:
[...] a história também pode ser escrita de forma mais próxima das grandes
massas, dos anônimos, dos não historiadores, das camadas sociais que durante
muito tempo se viram com uma voz silenciada na historiografia. A partir do
momento em que o historiador lança mãos das redes sociais para compartilhar
o saber histórico no âmbito acadêmico, ele possibilita ao grande público
produzir críticas, elaborar falas e até mesmo contribuir para a construção
continuada deste saber, afinal de contas, as redes sociais, mais do que meros
pontos de difusão do conhecimento, permitem o dlogo, a interlocução, o
contar histórias e “estórias”, permitem, inclusive, a descoberta de documentos
históricos que dificilmente seriam encontrados por meio de pesquisas
convencionais (CARVALHO, 2016, p. 42-43).
De fato, historiadores (as) estão muito mais próximos (as) do público do que
anteriormente. Em dias atuais, compartilhamos das mesmas redes e plataformas digitais
com aqueles (as) que são personagens de nossas produções e reflexões históricas. Esse
movimento nos leva a pensar nas múltiplas maneiras de lidar com essa nova demanda
social que, na maioria das vezes, coloca em questionamento a nossa própria prática
profissional. As pessoas comuns querem falar e devemos estar preparados (as) para as
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Fontes orais e digitais: apontando possibilidades
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expectativas alavancadas. Tomamos como exemplo o próprio objeto que estamos
analisando no presente texto. Espadeiros e espadeiras têm buscado, frequentemente,
meios de pronunciar suas críticas às demandas da lei e, consequentemente, visando
destituir as intempéries de serem vistos (as) como criminosos (as), como veremos
adiante.
Paralelamente, os registros (fontes) deixados por usuários e usuárias nas
plataformas digitais revelam ao historiador e historiadora mais um excelente meio de
chegada aos significados e às experiências das pessoas. O cotidiano ganha visibilidade.
Nesse quesito, as fontes digitais igualam-se às fontes orais permitindo decodificar
distorções em explicações generalistas. Esse foi e continua sendo ponto crucial nas
abordagens históricas que consideraram e consideram a utilização das fontes orais:
Uma das principais riquezas da História oral está em permitir o estudo das
formas como as pessoas ou grupos efetuaram e elaboraram experiências,
incluindo situações de aprendizado e decisões estratégicas [...]. Em linhas
gerais, essa combinação significa o seguinte: questionar interpretações
generalizantes de determinados acontecimentos e conjunturas (ALBERTI, 2006,
p. 165).
Por fim, somam-se os anseios de verificação do que produzimos. Se
anteriormente a principal maneira de acessar as produções historiográficas estava
vinculada intrinsecamente ao suporte impresso, aos livros, agora, é notório que o
advento da internet facilitou a apropriação dos nossos produtos. Esse processo pode ser
visto com a proliferação de sites e blogs organizados por historiadores e historiadoras
que disseminam suas pesquisas em rede. Jurandir Malerba (2017, p. 142) discorreu sobre
esse potencial fenômeno: “A história não mais se produz na academia, muito menos se
vincula apenas por meio dos livros impressos. As plataformas digitais subverteram as
bases da produção e circulação das narrativas sobre o passado”. Ao mesmo tempo,
novas dificuldades surgiam aos historiadores e historiadoras, “por exemplo, a internet
expandiu vertiginosamente a audiência; mas, mais que isso, a internet ampliou a ponto
de questionar o conceito de “autoria”; assim como seu advento colocou em xeque os
modelos de legitimação do conhecimento e autoridade” (MALERBA, 2017, p. 142-143).
Diante do exposto, podemos analisar a documentação coligida. A captura do
registro foi feita em 9 de agosto de 2016, um dia após Matinho ter realizado a postagem
na rede. No entanto, o próprio Martinho deletou a sua publicação. Como estávamos
acompanhando diariamente alguns desses sujeitos, conseguimos, com sorte, encontrar,
em sua página, a postagem antes da sua “destruição”. Como já alertamos acima, qualquer
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tipo de registro deixado por alguém nas mídias digitais pode desaparecer
repentinamente, e foi o que aconteceu com o do nosso colaborador.
Imagem 2. Print Screen retirado da plataforma Facebook.
4
Fonte: Arquivo pessoal do autor deste artigo.
Essa imagem parece agregar, em síntese, muito da discussão que delineamos ao
longo do presente texto. Se retomarmos às problemáticas em volta dos processos de
objetivação/subjetivação, perceberemos que há um distanciamento discursivo do que foi
relatado na entrevista. Gostaríamos de analisar a imagem por partes, destacando alguns
elementos para identificar as técnicas de si que levaram Martinho a pronunciar esse
discurso.
4
[No original] “O doutor e quem assim quiser, podem até nos colocarem rotulo de criminoso, mas uma
coisa é certa, eu, criminoso, fui representado na abertura das Olimpíadas, onde o mundo todo pode ver que
em uma cidade lá do interior da Bahia, chamada, Cruz das Almas, tem representação e identidade Cultural
forte e EU SOU PARTE disso tudo, com um orgulho danado. Hoje, se pudesse escolher emo ser
criminoso e ao mesmo tempo não ter essa representatividade a nível mundial, eu escolheria ser criminoso,
pelo simples fato de o mundo ter muito mais valor e representatividade para mim, do que um doutor
qualquer”.
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Fontes orais e digitais: apontando possibilidades
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A postagem do espadeiro foi realizada no dia oito de agosto de 2016. Martinho
realizou a postagem com menos de sessenta dias passados da deflagração da Guerra de
Espadas. Isso significa que os seus ânimos ainda estavam atiçados e as rememorações
faziam-se com intensidade. Não há dúvida de que esse motivo contribuiu para Martinho
proceder dessa maneira. Chamamos atenção para a questão das Olimpíadas. Como visto,
ser “representado na abertura das Olimpíadas” o deixa orgulhoso e, dessa maneira, tem-
se mais um discurso que contribui com o processo de sua subjetivação. Eventos de
exaltação dos valores nacionais, por exemplo, os diversos jogos esportivos que envolvem
a nação, acabam alimentando e exacerbando os vínculos de espadeiros e espadeiras com
a Guerra de Espadas em Cruz das Almas. Esse empreendimento está claro na fala de
Martinho. As identidades daquele povo se reafirmam.
Quando comparamos os discursos de Martinho, o primeiro pela entrevista oral e
o segundo pelo registro digital, notamos a distância de significações e de como os
processos de subjetivação são constantes. Se anteriormente ele sentia-se terrivelmente
abalado com a criminalização da sua tradição e com vergonha de ser visto como um
criminoso; agora, ele se reconhece como herói e não vê problema nenhum em fazer isso,
pois se representa como defensor de uma identidade cultural. Obviamente que a atitude
de Martinho, nas mídias digitais, tem a ver com o que foi dito por Cezarinho (2018, p.
334):
Posicionar-se sobre um tema problemático por meio de uma plataforma online
como o Facebook parece ser muito mais confortável e menos comprometedor.
Certamente por não haver contato físico com outrem, fazendo com que os
sujeitos se coloquem com maior intensidade e com menores chances de serem
repreendidos.
Mesmo assim, acreditamos que Martinho procedeu dentro das tecnologias de
produção de si. O “auto-exame” e a confissão realizadas ao público com o qual
estabelece relão pela plataforma Facebook, caracterizam muito bem os pressupostos
anaticos apontados por Michel Foucault (1993) no qual cada sujeito é capaz de
constituir-se e alcançar a sua própria verdade:
Parece-me que, se quisermos analisar a genealogia do sujeito nas sociedades
ocidentais, temos que levar em conta não apenas as técnicas de dominação, mas
também as técnicas do eu. Digamos que se tem de levarem conta a interação
entre esses dois tipos de técnicas, os pontos em que as tecnologias de
dominação dos indivíduos uns sobre os outros recorrem a processos pelos
quais o indivíduo age sobre si pprio e, em contrapartida, os pontos em que as
técnicas do eu são integradas em estruturas de coerção (FOUCAULT, 1993, p.
207).
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Imagem 3. Print Screen retirado do perfil do colaborador na plataforma Facebook.
5
Fonte: Arquivo pessoal do autor deste artigo.
Igor, o segundo colaborador da pesquisa, publicou, em 2014, uma carta na
plataforma Facebook na qual discorria sobre a tradição e a sua iniciação na Guerra de
5
[No original] Lembro-me dos meus tempos de criança quando meus pais me levavam para ver a Guerra
de Espadas na praça Senador Temístocles na casa do meu padrinho, uma mistura de medo e ao mesmo
tempo a adrenalina tomavam conta de mim, dentro da casa via a festa das espadas através de uma grade,
aquilo me inspirou a ser um daqueles caras. (espadeiros). O tempo passou cresci e aprendi a confeccionar
espadas e assim realizei meu sonho de infância, estar no meio das espadas, com isso conheci novas
pessoas que cultivam o mesmo ideal conheci lugares fiz amigos, perdi amigos e hoje levo a dor e a tristeza
em meu coração em saber que tudo aquilo que passei agora só estará na minha lembrança. A espera do dia
23 de junho com as espadas prontas e guardadas esperando o momento de serem queimadas, adrenalina
em colocar o uniforme e a grande orão onde todos pedem a Deus proteção para o nosso grupo e todos
os espadeiros da cidade, todas as batalhas vividas na fabricação das espadas todas as experiências e
conhecimentos adquiridos ao longo do tempo, o costume de colocar o barro (argila) na porta pra [sic]
secar o bambu pra [sic] cozinha [sic] e secar ao sol, o som exorbitante do macete aos nossos ouvidos,
nossas mãos calejadas e doloridas de enrolar espadas com cinzal [sic] e cerol, noites e noites perdidas na
produção. Irmãos guerreiros que se doaram ao meu lado na luta constantem [sic], em ter a
responsabilidade em deixar tudo pronto pra [sic] o dia 23 e 24 de junho. O maior prazer e felicidade que
tinha dia 23 é quando tocava a primeira espada e ao acabar admirava a perfeição do nosso trabalho de
meses, saber que nossas rainhas estavam boas e sem medo de afirmar que elas eram respeitadas por onde
passava. Hoje só tenho a lamentar, pois nós espadeiros infelizmente estamos à margem da sociedade
taxados como foras da lei e sem perspectivas vivendo apenas de especulações. Alguns com grandes
esforços tenta [sic] manter a cultura que nos foi arrancada bruscamente ao ponto de sermos levados para
prisão por conta do ato de tocar espadas. Meu coração vive em grande tristeza, não sinto mais vontade
alguma de participar do São João. Arrancou tudo aquilo que aprendi, ensinei e cultivei no período junino ao
longo de minha vida. Ser um Espadeiro! (Grifo do nosso).
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Fontes orais e digitais: apontando possibilidades
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Espadas. Ele destacava aspectos relativos ao processo de produção das “rainhas” de
fogo e, por fim, apresentava as angústias de ser visto com criminoso. Chamamos atenção
às intrínsecas relações de poder do discurso que produzem novos sujeitos. Se
anteriormente Igor percebia a si mesmo como defensor da cultura e da tradição, agora,
com o discurso da lei, temos a clara indicação de que ele se tornou um sujeito às
margens, um “fora da lei”.
A carta do espadeiro, disposta acima, faz fulgir o que há de mais poderoso no
discurso, os procedimentos de exclusão. Foucault (1999, p.9) apontou, de maneira
perspicaz que o procedimento “mais evidente, o mais familiar também, é a interdição”.
Ao sentir-se preso pelas garras invisíveis dos discursos, garras que atuam no campo da
subjetividade, o espadeiro é constrangido em sua ação e em suas atitudes com a Guerra
de Espadas. É o poder atuando sem contato físico e, mesmo assim, com efeitos
devastadores. Poder que se exerce e que consegue tornar patogico o outro.
Presenciamos a sofisticação do exercício da violência.
O importante do problema anteposto é entender as condições de possibilidades
do discurso pronunciado pelo espadeiro, pois essa condição determina, inevitavelmente,
maior ou menor efeito do poder sobre o corpo. Em outros termos, a aproximação do
período de deflagração da Guerra de Espadas (a carta foi compartilhada no dia 27 de
maio) e a percepção do espadeiro de que suas ações equivaliam ao de um criminoso,
foram fatores suficientes para que o discurso da lei alcançasse o seu objetivo principal,
produzir subjetividades.
Deixemos de delongas e caminhemos para a entrevista com o espadeiro
produtor da carta. A entrevista realizada em dezembro de 2016, dois anos após a
postagem da carta, revela um outro espadeiro. Igor, 35 anos, aprendeu o ofício desde
muito cedo, a partir do relacionamento com os seus familiares:
Cara, minha iniciação foi desde os três anos, quatro anos de idade, porque meus
parentes tinham casa na praça e aí, quando era dia 24 pelo período da tarde, eu
ia com minha família para acompanhar a Guerra de Espadas no período
noturno. E aí fui pra lá desde pequeno, gostei da coisa e aí seguiu (Igor,
entrevista, 21 dez. 2016).
Percebe-se que desde muito cedo Igor já observava a folia na Guerra de
Espadas. Não espanto. Muitos como ele também tiveram a sua iniciação muito cedo,
entre dez e doze anos de idade. Ao ser questionado sobre a problemática da proibição
das espadas na cidade, proibição que remete ao ano de 2011, ele respondeu:
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Cara, eu não digo que espada é proibida, eu digo que espada é irregular. Porque
eu digo que espada é irregular? Porque a gente usa um material, tá? Um
material bélico, material do exército que é a pólvora, a pólvora negra, tá? Então,
diante de toda circunstância que a espada volta, esse manuseio clandestino da
pólvora é que levou a essa situação, correto? [...]. É complicado eu, espadeiro,
falar uma situação dessa, mas eu estava ouvindo a reportagem há dois dias
atrás, uma reportagem de 2011 de Christian [promotor] e ele falando sobre a
questão da proibição. A integridade humana é importante, claro, os locais de
você soltar uma espada é importante, claro, o horário que você vai soltar a
espada é importante, claro, como você fabrica essa espada é importante. Então
são várias questões que fugiu um pouco do padrão, aquele padrão antigo que os
nossos ancestrais traziam e fugiu um pouco dessa realidade, ficou um pouco
mais brutal (Igor, entrevista, 21 dez. 2016).
O relato acima destoa completamente quando cruzado com o relato de 2014. São
narrativas completamente diferentes de uma mesma pessoa. Bom, tomando a ideia de
que os discursos constituem sujeitos fluidos, Igor é uma outra pessoa. O distanciamento
temporal fez com que ele percebesse outras características da Guerra de Espadas. Ao
invés de subserviência, Igor questiona o próprio entrevistador/pesquisador ao sugerir o
termo “irregular”. Segundo ele, as espadas são irregulares, o que já modifica
consideravelmente a forma de abordar o tema. Por outro lado, ao mesmo tempo em que
age com criticismo frente à categoria analítica “proibida”, ele cai nas amarras do saber
jurídico e reproduz a dominação:
E também as fabricações clandestinas no fundo dos quintais, a forma como
estava sendo conduzida o São João na Guerra de Espadas, a gente já não tinha
mais controle sobre essa guerra, entendeu, as autoridades não tinham mais esse
controle, essa questão, então ficou muito complicado e de um certo ponto eu
achei até bom (Igor, entrevista, 21 dez. 2016).
Essa é uma das facetas da História oral. Ela permite atingir as mudanças nos
significados de determinados eventos. Assim, para Alessandro Portelli (1997, p. 33), “o
realmente importante é não ser a memória um depositário passivo de fatos, mas também
um processo ativo de criação de significações”. Igor produziu novas verdades sobre a
Guerra de Espadas e esse processo tem a ver com a sua própria reflexão. O importante
para o historiador está na transformação dos significados em cada contexto, revelando a
mutabilidade do sujeito no tempo e no espaço.
Considerações finais
Os dois espadeiros apresentados revelaram as modulações e inflexões
propiciadas pelos discursos da tradição e do crime no contexto da Guerra de Espadas em
Cruz das Almas-BA. No entanto, é preciso ir além sobre seus enunciados.
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Fontes orais e digitais: apontando possibilidades
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Aparentemente passivos, os discursos apresentados pelos espadeiros revelam algo
profundo e que ainda não foi tratado neste texto: o desejo da interdição por parte dos
(as) próprios (as) espadeiros (as). Como falamos no início de nossa trama narrativa,
essas pessoas são/estão vinculadas e comprometidas com o retorno da tradicional festa
ao campo da legalidade, e isso se revela por meio da Associação dos Espadeiros. É
preciso, e isso aparece em suas falas, encontrar os (as) culpados (as) ou os (as)
responsáveis que conduziram a tradicional Guerra de Espadas à criminalização.
Conforme esse ponto de vista, há uma separação bastante perceptível entre
aqueles (as) que são disciplinados (as), que tendem salvaguardar a tradição e, do outro
lado, os (as) indisciplinados (as) que devem ser interditados (as) da prática por não
seguirem os rigores exigidos pela lei e por afastarem-se das antigas formas de
relacionar-se com a tradição, como nos sugeriu o espadeiro Igor:
E também as fabricações clandestinas no fundo dos quintais, a forma como
estava sendo conduzida o São João na Guerra de Espadas, a gente já não tinha
mais controle sobre essa guerra, entendeu? As autoridades não tinham mais
esse controle. Essa questão, então, ficou muito complicada e de um certo ponto
eu achei até bom [a proibição] (Igor, entrevista, 21 dez. 2016).
De primeira mão, a produção das espadas, desde a sua popularização, pois antes
estava restrita aos fogueteiros da cidade, se realizava dentro das casas, nos fundos dos
quintais. Não havia um corpo uniforme e regulamentar, oriundo do Estado, gerenciando a
prática. As protagonistas eram as pessoas comuns. O que se vê, então, é a continuidade
de formas tradicionais de produção das espadas, algo que atualmente pode estar
totalmente desvinculada às normas estatais de produção e comercialização. Tomar esse
pressuposto como ponto de partida revela as relações de poder nos discursos de nossos
colaboradores. Outro ponto que necessitamos esclarecer, e que elucida os interesses
entre esses agentes, nos leva ao campo dos conflitos. Esses desencontros conflituosos
sobre a Guerra de Espadas não são de agora. A edição do jornal A Tarde, em 1986,
revelava tal problemática:
Em Cruz das Almas, no Recôncavo baiano, a 124 km de Salvador, a perigosa
“guerra de espadas” atrai um grande número de curiosos e participantes.
Admirada por uns, pelo belo espetáculo pirotécnico que proporciona, e
condenada por outros, a “guerra de espadas”, em Cruz das Almas, mesmo
considerada como um ato de selvageria, é uma tradição cinquentenária,
incorporada de forma veemente aos festejos juninos na cidade (A TARDE, 1986).
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Com isso, percebemos que as confusões que permeiam a tradição não iniciaram
no ano da sua proibição, em 2011, mas já se caracterizavam como pano de fundo desde a
década de 1980. O que acabamos de evidenciar são as disputas entre espadeiros (as) pelo
domínio do próprio objeto. Começa-se a entender que os conflitoso são somente
verticais, de cima para baixo, mas horizontais, ou seja, entre as multiplicidades de
espadeiros (as) integrantes da própria Guerra de Espadas. É dessa maneira que os
discursos aqui apresentados carregam interesses, buscam fins específicos, objetivos
concretos e por isso não poderíamos apenas entendê-los por meio dos processos de
produção de subjetividades. Essas subjetividades entram em cena e são manejadas
estrategicamente, muitas vezes racionalmente, por cada um desses indivíduos.
Para finalizar, percebemos que as fontes digitais se abrem como potenciais
alternativas para apreensão de novos dados, quando o retorno do
pesquisador/entrevistador ao colaborador/entrevistado torna-se um processo árduo.
Por outro lado, a existência ou o apagamento de registros online pode servir como
recurso facilitador importante ao pesquisador para seleção e obtenção de novos relatos
com a metodologia da História oral. Em suma, o uso sincrônico dessas fontes permitiu
avançar sobre as limitações específicas de cada uma delas. A partir do que foi
apresentado ao longo do texto, consideramos positivo o cruzamento das fontes orais e
digitais por parte de historiadores e historiadoras. Essa articulação forneceu meios para
acessar, com maior clareza, os processos de objetivação/subjetivação dos sujeitos
através dos discursos da criminalização e da tradição da Guerra de Espadas. Ao
testarmos esses pressupostos nas duas tipologias de fontes, aqui concatenadas,
descobrimos que o poder do discurso não só gerou novos sujeitos, mas, também, operou
com violência sobre seus corpos. Conforme Foucault (2013, p.19), isso acontece porque o
discurso é estratégico e age, inevitavelmente, por meio de relações de poder. Os
discursos devem ser entendidos “como jogos (games), jogos estratégicos, de ação e
reação, de pergunta e de resposta, de dominação e de esquiva, como também de luta. O
discurso é esse conjunto regular de fatos linguísticos em determinado nível, e polêmicos
e estratégicos em outro”. Nesse fluxo contínuo de produção de subjetividades,
identificamos os momentos em que esses sujeitos conseguiram, dentro de postulados
racionais, produzir suas próprias verdades. Ao fazerem isso, alcançaram o que Michel
Foucault (1993) chamou de ethos de si.
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.6, nº1, p.223-245, jan.-jun., 2019
Fontes orais e digitais: apontando possibilidades
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FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.6, nº1, p.223-245, jan.-jun., 2019
Fontes orais e digitais: apontando possibilidades
245
Guerra de espadas terá área em Cruz das Almas. A Tarde, Salvador, 10 maio. 1994.
Batalha de espadas terá a proteção dos bombeiros. A Tarde, Salvador, 19 jun. 1983.
São João em Cruz das Almas. A Tarde, Salvador, 15 jun. 1986.
E Cruz das Almas não fica atrás. Vai à “guerra” de espadas. A Tarde, Salvador, 07 jun.
1979.
A guerra de espadas em Cruz das Almas, Tribuna Popular, Cruz das Almas, jun. 2001.
Fontes orais
Martinho, entrevista, 21 dez. 2016.
Igor, entrevista, 21 dez. 2016.