Recebido em: 27/02/2019
Aprovado em: 10/05/2019
Desde os avós até os netos:
a autodemarcação da
terra ingena
mbyá guarani tekoá mirim
From grandfather to grandson:
the autodemarkation of
the indigenous land
mbyá guarani tekoá mirim
MARTINS, Fábio do Espírito Santo
*
Resumo: Uma correta compreensão sobre a presença contemporânea do povo indígena
Mbyá Guarani, no litoral do estado de São Paulo, enfatiza a necessidade de novas
percepções que incidam sobre as formas de relações estabelecidas entre eles e os
juruá” (os não índios). A partir disso, este trabalho propõe evidenciar o processo de luta
no contexto da autodemarcação da TI Tekoá Mirim, uma vez que várias instâncias do
Estado os consideram invasores do seu próprio território. Assim, é a historicidade Mbyá
Guarani, exposta ao longo deste trabalho, que legitima e justifica a sua ocupação e
permanência na territorialidade da Terra Indígena Tekoá Mirim. História, portanto, que
articula, em plena interlocução, a cosmologia e a práxis cotidiana deste povo indígena.
Palavras-chave: história indígena; protagonismo; territorialidades.
Abstract: A correct understanding of the contemporary presence of the Mbyá Guarani
indigenous people on the coast of the state of São Paulo emphasizes the need for new
perceptions that focus on the forms of relations established between them and the Jur
(non-Indians). Therefore, this paper proposes to highlight, the process of struggle in the
context of the self-denial of TI Tekoá Mirim, already, that several instances of the State
*
Mestre em Ciências Sociais pela UNESP/FCLAr, Araraquara-SP. Doutorando do PPGCS da
UNESP/FCLAr, Araraquara-SP. Pesquisador do CEIMAM (Centro de Estudos Indígenas “Miguel A.
Menendéz” UNESP/FCLAr). Bolsista CNPq. E-mail: epiritomartins@bol.com.br.
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.6, nº1, p.86-101, jan.-jun., 2019
Desde os avós até os netos: a autodemarcação da terra indígena
mbyá guarani tekoá mirim
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consider them invaders of its own territory. Thus, it is the Mbyá Guarani historicity,
exposed throughout this work, which legitimizes and justifies its occupation and
permanence in the territoriality of the Tekoá Mirim Indigenous Land. History is,
therefore, that articulates in full interlocution, the cosmology and daily praxis of this
indigenous people.
Keywords: indigenous history; protagonism; territorialities.
Introdução
A severa realidade vivenciada pelos Mbyá Guarani da Terra Indígena Tekoá Mirim
foi diretamente narrada, e em cus, para o autor por eles próprios, como processo
constituinte da etnografia que caracterizou parcialmente a elaboração desta pesquisa. Já
que “nada poderia substituir a observação direta, pois é frequentemente sob a inocência
de um gesto semiesboçado, de uma palavra subitamente dita, que se dissimula a
singularidade fugitiva do sentido” (CLASTRES, 1995, p.11).
Tal perspectiva passa a ser apresentada e problematizada em relação às
dificuldades enfrentadas por esta população indígena para poder estabelecer e manter a
autonomia para os usos próprios que concretizam a sua existência cultural. Isto, desde o
seu deslocamento da localidade que anteriormente habitavam, a saber, a aldeia de
Pariquera-Açu, também localizada no litoral sul do estado de São Paulo. Além disso, se
consolida em sua ocupação e utilização do espaço social, isto é, seu Nhanderekó. De
acordo com Meliá (1989), “com um claro sentimento de singularidade falam dele, como a
expressão mais cabal da sua identidade e de sua diferença” (MELIÁ, 1989, p. 293).
As narrativas que foram colhidas juntamente aos Mbyá Guarani da Tekoá Mirim,
e que se constituem como nexos das reflexões e problemáticas a serem apresentadas e
desenvolvidas neste artigo, derivaram em sua maioria das conversas com o Xeramo’i
Karaí Mirim (Maurício) e com o cacique Karaí Ñee’re (Edmilson), respectivamente
representante espiritual e político daquela Tekoá, além de serem pai e filho. Entretanto,
uma série de outras conversas com os demais integrantes daquele grupo populacional
compõem o material coletado para a concretização deste trabalho.
Deve-se considerar que a aldeia Tekoá Mirim e o grupo Mbyá protagonista dessas
considerações se instalaram em novembro de 2010 numa área circunscrita pelo
município de Praia Grande, litoral do estado de São Paulo. De maneira específica, a
concretização da aldeia se efetivou no interior do Parque Estadual da Serra do Mar.
O deslocamento espacial, tão caro aos Mb, como história e como projeto,
constitui um traço característico dos Guaranis. Concretiza-se, mediante a vivência
cultural da sua estrutura mitológica “Como estrutura do modo de pensar do guarani, dá
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forma ao dinamismo econômico e a vivência religiosa que lhes são tão próprios é a
síntese histórica e prática de uma economia vivida profeticamente e de uma profecia
realista, com os pés no chão” (MELIÁ, 1989, p.294). É fundamental notar que este autor
manifesta a percepção sobre a espacialidade, como sendo na contemporaneidade, o
elemento seminal do Tekó (modo de ser) Guarani, e que ela seria concretizada como
movimentação da busca por lugares, tanto geográfica quanto espiritualmente, ambos
pré-concebidos. Esta busca se confirma, de maneira simultânea, pela procura de “novos”
solos (para que sejam sanadas as demandas socioeconômicas) e pelo manifestar-se de
inspirações divinas.
Contudo, de maneira complementar ao entendimento a respeito das motivações
da mobilidade e dos deslocamentos característicos entre os Mbyá, nosso propósito é
evidenciar, também, em decorrência da etnografia realizada, as motivações de ordem
pragmática, inseridas e distribuídas no plano do cotidiano daquela realidade. Na
experiência contemporânea dos Mbyá, em que o problema da terra se caracteriza de
forma premente, há a consequência imediata, que tal processo histórico transforma as
concepções e usos do espaço entre essa população. Segundo Almeida e Mura (2004,
p.73) “que a noção nativa de “tekoha” seja compreendida como elaboração indígena
produzida nos contextos de relacionamento intercultural, [...] e não como categoria já
determinada, que se conservaria a despeito das alterações das suas condições de
existência” (apud PISSOLATO, 2007, p.116). Segundo estes autores, deve-se entender “o
tekoha como resultado e não como determinante” das formas de concepção e
organização da espacialidade. Consideraremos, por outro lado, as dinâmicas políticas
internas àquele grupo, os aspectos da estrutura do parentesco e a emergência de novas
lideranças. Todas estas, importantes variáveis constituintes da realidade pragmática do
cotidiano Mb, e que, portanto, também contribuem, em vista disso, para uma
apreensão mais correta do complexo conjunto das motivações da mobilidade espacial
que antecedeu a constituição da Tekoá Mirim.
Desta maneira, a análise sobre as motivações geradoras do processo de
mobilidade Mbyá, que viria a constituir a Tekoá Mirim, sublinhará o contexto de
complementariedade que assumem as suas variações cosmológicas e míticas, assim
como, aquelas que caracterizam as instabilidades políticas peculiares, definidoras do
pragmatismo cotidiano e concretizadas no convívio do grupo indígena em questão.
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Uma síntese cosmológica como impulso para o deslocamento Mbyá na constituição
da Tekoá Mirim
De maneira específica, as reflexões desse texto se referem ao fato de que os
Mbyá, ao se estabelecerem para a concretização da Tekoá Mirim, o executaram em plena
manifestação de concretude da sua cosmologia, mesmo esta, sendo ressignificada.
Ressignificação derivada dos dinâmicos processos que caracterizaram a historicidade
peculiar desta situação. Pois, a história da fundação da Tekoá Mirim foi narrada como
consequência de um contexto, em que a mobilização de um grupo familiar extenso
passou a ocupar determinado lugar após um sonho que o teria indicado à liderança
espiritual e religiosa do grupo, neste caso, ao Xeramo’i Karaí Mirim (Maurício). Vê-se
mantida na práxis cotidiana dos Mbyá, a reminiscência cosmo-mitológica que
compreende as “Terras sonhadas (por xamãs), tekoa po, que devem possibilitar a vida
social e ritual dos indivíduos em sua plenitude, lugares onde se tornaria possível a vida
harmoniosa, que compreende as relações sociais e o respeito ao sistema antigo
(PISSOLATO, 2007, p.115). Ao longo das coletas e registros referentes à historicidade da
Tekoá Mirim, junto ao Xeramo’i, sempre prevaleceu na sua narrativa, o amparo na
concepção cosmo-mitológica de que as principais e reais motivações do deslocamento
de sua parentela, para o início do núcleo que se constituiria de fato, como a “nova”
aldeia, devia-se às suas inspirações divinas que lhe haviam sido entregues em seus
sonhos por Nhanderú.
O percurso de deslocamento que fundaria a Tekoá Mirim se iniciou como
concretização de uma jornada pautada pela cosmologia Mbyá, a partir da aldeia em que o
protagonista deste contexto o Xeramo’i Karaí Mirim, vivia com seus demais parentes em
Pariquera-u, também no litoral paulista. Quando questionado a respeito das
motivações que o impulsionaram a deixar a aldeia em que viviam e se deslocarem até o
local devido para a sua fixação, o Xeramo’i relata a explicação que segue transcrita:
O principal motivo, foi que eu comecei a ficar ruim, incomodado. Não conseguia
mais ter sono bom, não dormia mais. Também passei a não comer mais, comia e
já vomitava. Ficava só triste. Toda hora triste, ficava muito mal, toda hora, o
tempo inteiro. Daí passei a rezar muito. Ficava todo o tempo em Opy’i, comecei
dormir e acordar lá. Na hora da reza, do M’boraí tinha muita força. E também, o
Petyng, eu fumava muito o Petyng. Outra coisa é a comida. Deixei pra mim
só a comida Guarani, awati (milho), mandió (mandioca), jyty (bata-doce), pindó
(palmito), Ka’a (chimarrão) e não comia carne de jeito nenhum. Eu sabia que
tinha problema muito grande, muito sério né. Então, comecei a rezar muito,
cada vez mais. Pedia ajuda para Nhanderú, precisava saber o que tinha de
errado. Foi daí então que aconteceu, eu tinha ficado uma noite inteira e um dia
também, ele todo; numa reza muito forte, ouvindo Nhanderú dizer pra eu
dormir, que aí vinha a solução. E trabalho foi assim, quando acabou o trabalho
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estava muito cansado, eu nem lembro, mas me contaram que eu fiquei lá na
Opy’i dormindo, mais de um dia. Daí tudo resolveu, foi sim, no sonho. Nhanderú
me mostrou que problema era lá, não era mais pra fica lá, tinha que ver e depois
achar o lugar, a nossa Tekoá. Nós tínhamos que ir embora pra lá. Foi Nhanderú
que veio ajudar, mostrar qual era o problema e dar para nós a solução. No
sonho. E foi depois de muitos trabalhos e de muita reza na Opy’i, feita nos
outros dias, que em outro sonho, é; quando eu sonhava que Nhanderú me
mostrou o lugar da Tekoá, o lugar pra onde nos tínhamos que ir. Ir para lá, pra a
nossa Tekoá, lá é que nós tínhamos que ficar. E Nhanderú já tinha me mostrado
onde. E mostrou no sonho. (Xeramo’i Karaí Mirim, entrevista, 17 de jan. 2018).
Uma vez alcançada a compreensão da transcrição acima, pode-se revelar a partir
da perspectiva própria da liderança espiritual e religiosa do grupo indígena estudado, de
modo literal, como se caracterizou o complexo processo de inspiração divina que o
acometeu e que, a partir disso, desencadeou ostart” ao que se refere à composição e
articulação dos preceitos cosmo-mitológicos Mbyá que, segundo a sua perspectiva, se
constituem como o principal motivo de explicação para a mobilidade territorial do seu
grupo de parentes que vieram a constituir o primeiro núcleo populacional da Tekoá
Mirim. Afinal, tudo que se compõe, mesmo que parcialmente, enquanto experiências dos
vivos mantendo-os como tal, depende do que os Mbidentificam como “a vontade de
Nhanderu, a quem sempre se deve “pedir” (jejure), “perguntar” (porandu), “escutar
(endu). E surge, então, o “fortalecimento” (mbaraete) ou a “coragem” (py’a guaxu) para
continuar na Terra” (PISSOLATO, 2007, p.228). E mais ainda, já que “na sua definição de
povo a mensagem divina a eles revelada por Nhanderu e por eles cumprida, a de que
devem procurar seus verdadeiros lugares” (LADEIRA, 2007, p.23).
Todo o processo de concretização das condições que determinaram o
deslocamento ritual (Oguatá) deu-se como consequência da reprodução, no cotidiano, da
mitologia Mb. Sua motivação, então, derivara de questões míticas e religiosas,
culturalmente peculiares deste grupo indígena. Desta forma, a composição cosmológica
em que esta se expressa, mediante a “antevisão onírica”, ou seja, a motivação
ritualisticamente percebida e a demonstração da nova localidade a se fixar, ocorridas em
um sonho, assim como a inspiração dada por Nhanderu, foram etapas vivenciadas, e
apresentadas nas transcrições dos depoimentos dados pelo Xeramo’i Karaí Mirim.
Frente a essa análise, lembremos, também, da extrema relevância que o sonho
concentra na cultura Mbyá. Em alguns contextos podem ser propiciadas experiências
especiais perceptivas, visto que a concentração de dinâmicas subjetivas implicitamente
os preencheria. Aparece claramente o elevado grau de importância que o sonho possui.
Importância esta que permanece ainda na contemporaneidade, mantida e circunscrita
pelo complexo cosmo-mitológico. Dito de outra maneira, relacionada com significações
que orientam os processos de mobilidade intensa dos grupos Mbyá, determinadas pela
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busca milenar e incessante de “Yvy marãeý”, por meio de suas “Belas Caminhadas”,
sempre conduzidas pela liderança espiritual e religiosa do grupo que se desloca.
O subgrupo Mbya, continuando a tradição de todo o povo Guarani conforme
preceito mítico, segue em busca da yvy marãeý, conhecida entre os juruá como
terra sem mal. A razão para esses deslocamentos está alicerçada na crença dos
Mbya em alcançar uma Terra Prometida, a terra sem mal, cujas dimensões
espaciais não são dadas em uma escala cartograficamente definida a partir de
latitudes e longitudes. A terra sem mal, segundo a cosmologia guarani, é um
lugar que seria o paraíso em sua cultura, representando o fim de qualquer tipo
de sofrimentos ou privações que viessem a acometer um dado grupo familiar.
Esse lugar, que pode ser alcançado em vida, é buscado tendo como guia um
líder espiritual do tekoa, que se responsabiliza em indicar as coordenadas a
serem seguidas conforme os presgios forem surgindo, como sonhos, contatos
com espíritos antepassados ou até mesmo sinais vindos da natureza. De todo
modo a terra sem mal parece ter um sentido mais ou menos fixo, orientando o
caminho sempre a leste, onde, atravessando a “grande água”, se encontra o
paraíso. Nesse sentido pode-se fazer uma analogia dessa “grande água” com o
oceano Atlântico, tomando-se a posição das aldeias estabelecidas na faixa
litorânea do Brasil (LADEIRA, s/d, p. 3).
De maneira precisa, é explícito nos estudos realizados a partir dos depoimentos
cedidos pelo Xeramo’i, que a composição cosmológica, mítica e religiosa, peculiares aos
Mbyá foi, de fato, co-impulsionadora do processo de mobilidade da parentela indígena
que, sob a sua condução, deslocou-se norteada pela perspectiva de constituição de uma
“nova” Tekoá, capaz de circunscrever a concretização do seu Nhanderekó.
Desta forma, se constata que:
a história Mbyá é resgatada cotidianamente [...] para os Mbyá, especialmente os
que ainda não têm definido um lugar para um assentamento mais duradouro,
viver os mitos, não se distingue da vida cotidiana, pois o cotidiano está
impregnado de relações míticas com o universo” (LADEIRA, 2007, p.77).
Contudo, os motivos responsáveis por impulsionarem à mobilidade o grupo Mbyá
aqui tratado, até o local específico e pré-determinado pelo contexto e práticas rituais
descritas, não devem ser compreendidos como os únicos impulsos responsáveis por este
deslocamento. Os processos e dinâmicas relativas às inter-relações próprias dos Mbyá,
questões dispostas no âmbito da potica, pragmática e cotidiana, constituídas entre as
famílias extensas, ou seja, as parentelas, e mesmo as relões de contato com a
sociedade envolvente, são tão relevantes quanto as determinações cosmológicas. Fatos
necessários para um entendimento adequado sobre as causas que impulsionam os
grupos indígenas Mbyá na concretização do seu contexto de mobilidade espacial tão
característico a eles. Consideramos, na elaboração deste trabalho, relevância similar e
complementarmente composta entre a cosmologia e a práxis, a religiosidade e a
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historicidade Mb, como articulação necessária para uma precisa apreensão das
motivações dos seus deslocamentos espaciais.
A práxis e o pragmatismo político cotidiano dos Mbyá: outros impulsos a motivar o
deslocamento para a constituição da Tekoá Mirim
Em primeiro lugar, abordaremos discussões que se dirigem ao parecer sobre os
registros etnográficos colhidos a partir dos depoimentos do cacique Karaí Ñee’re
(Edmilson) e de seu irmão mais velho, Werá Pyty (Edson). Os interlocutores acima
mencionados propiciam, em decorrência das análises das suas falas, uma exposição e
consequentemente, um entendimento, complementares às motivações do deslocamento
Mbyá aqui em questão. Em outras palavras, apesar de suas falas denotarem extrema
importância aos aspectos cosmológicos e míticos que caracterizaram os principais
motivos de impulso, a detonar o processo de mobilidade espacial entre os Mb que
estabeleceram a Tekoá Mirim e que puderam ser claramente apreendidos por meio de
observações realizadas sobre as falas do Xeramo’i Kar Mirim, revelam, nas entrelinhas,
que fatos, dinâmicas e processos característicos da convivência cotidiana entre
parentelas distintas que coabitam, dividindo uma mesma Tekoá limitação territorial ,
produzem cismas associadas às limitações materiais e práticas. Por outro lado, a
acessibilidade de condições às vezes elementares para a sobrevivência se torna, também,
motivações concretas que impulsionam os processos de deslocamentos territoriais entre
os Mbyá.
Devendo, então, serem associadas como causas pragmáticas de motivação da
sua mobilidade espacial, tal como as complexas relações destes com a sociedade
envolvente em seus múltiplos aspectos, sejam eles poticos, sociais e ecomicos.
Segue a transcrição das falas do cacique Karaí Ñeere ao responder os
questionamentos acerca dos motivos que causaram a mobilização do seu grupo de
parentes, e que os impulsionaram a deixarem a localidade que já viviam a Tekoá de
Pariquera-Açu:
Nós conversávamos muito, eu e o meu pai, o Xeramo’i. Lá na aldeia de Pariquera
estava muito difícil. Começaram muitos problemas. Nós chegamos lá depois; eu,
minha família, meu pai,e, meus irmão e irmã, os meu sobrinhos e outros
parentes. A aldeia já existia e eram outras família que já estavam lá. É tudo
parente nosso, nós todos somos parentes. Nós no começo vivíamos todos bem.
Mas daí foi passando o tempo, foi ficando mais difícil. Lá já tinha outro Xeramo’i
também. Nos organizávamos para plantar, cuidávamos para as nossas casas
ficarem limpas. E toda noite, meu pai rezava, mas não era na Opy’i, o outro
Xeramo’i é que rezava lá. O meu pai só ia até a Opy’i depois, quando ela estava
vazia. Mais começou ir cada vez mais parentes no trabalho do meu pai. E
também, começou a crescer a aldeia, começou a ficar com muita gente, aí era
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difícil o espaço, a aldeia era pequena, ficou difícil a água. Muita gente começou a
não se entender mais” (Cacique Karaí Ñee’re, entrevista, 15 jan. 2018).
A transcrição de algumas das falas do cacique Edmilson registradas acima e,
circunscritas no contexto da investigão proposta, transmitem a verificação de outras
motivações e impulsos que estimularam o deslocamento do grupo indígena Mb que
viria a constituir a Tekoá Mirim.
Cabe ressaltar que a parentela da qual o cacique Karaí Ñee’re fazia parte
compunha um núcleo familiar: uma família extensa e diferente em relação àquela que, já
antes deles, vivia na Tekoá de Pariquera-Açu. Apesar da intensa solidariedade e
cooperação que permeiam todas as relações entre os indivíduos, parentelas e grupos
Mbyá inevitavelmente, a partir daquele momento se estabeleciam divergências latentes a
respeito das intenções, dos interesses e das perspectivas de cada um daqueles grupos.
Também, deve-se estar atento às passagens da fala do cacique quando ele se
refere a seu pai, o Xeramo’i Karaí Mirim, e, sobretudo, ao fato de que ele na condição de
liderança espiritual, chegava a uma Tekoá cuja função social já era ocupada e
desempenhada por outro Xeramo’i. Constatações estas que derivadas das análises e
interpretações realizadas sobre os registros etnográficos produzidos em campo, revelam
a proximidade desta situação com as conclusões já consagradas de P. Clastres (1978) e H.
Clastres (1978). Conexões que se efetuam no sentido de que as reflexões do primeiro
autor, apresentam os processos de diluição do poder entre os ameríndios em condições
específicas; sendo que esta diluição, como foi articulada pelas reflexões da autora em
questão, se concretizaria pela ação dosderes religiosos, em contextos de
desmembramentos e fragmentação das sociedades indígenas.
Nota-se ainda, como outro possível impulso para o deslocamento da parentela do
cacique Karaí Ñee’re da Tekoá de Pariquera-u, o processo de aumento do seu
prestígio junto aos demais habitantes daquela aldeia, já que o ainda jovem Xondáro
passava a atrair à sua órbita de influência, enquanto liderança, uma grande quantidade
de indivíduos.
Então, entende-se aqui, que tais questões ao expressarem rivalidades políticas, de
disputas pela predominância na condução do contexto ritual e religioso e mesmo as que
atestaram as limitações físicas quanto à utilização da espacialidade da Tekoá de
Pariquera-Açu frente ao aumento demogfico na mesma, se apresentam de modo
bastante claro nas falas do cacique Karaí Ñee’re; e concretizam o entendimento de que
outros motivos complementares àquele circunscrito na cosmologia e que foram tratados
anteriormente, também estão diretamente caracterizados como impulsos da mobilidade
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dos Mbyá. Podendo, por sua vez, tornar-se mais explicito este contexto, ao se analisar a
transcrição de algumas das falas de mais um dos importantes informantes Mbyá que
colaboraram decisivamente para a elaboração desta investigação. Trata-se do irmão mais
velho do cacique, Werá Pyty (Edson).
Ainda vivendo com a sua parentela na Tekoá de Pariquera-Açu, Werá Pyty havia
praticado várias atividades que lhe valiam um tratamento bastante ambíguo por parte de
seus parentes, mesmo após já terem se passado alguns anos e estas atividades não
serem mais realizadas. Tais atividades tratavam-se do fato de que, por um determinado
período, Werá Pyty assumira na Tekoá de Pariquera-u a ocupação de Agente de Saúde
Indígena e de coordenador para a implementação dos serviços de saneamento. Contexto
que o aproximava da instância estatal exógena à dinâmica da aldeia, e que era
responsável pelas questões relativas à prestação dos serviços para a saúde e ações
sanitárias junto aos povos indígenas - a Funasa (Fundação Nacional de Saúde). Com isto,
este contato direto que Werá Pyty adquirira junto a Funasa garantiu-lhe, além da
possibilidade de articular diretamente com ela, o salário e a atribuição em definir como
os demais membros da aldeia deveriam trabalhar nas questões relativas à implantação
dos serviços de saneamento, a percepção de que ele passava a ser um catalisador dos
conflitos latentes que existiam entre as parentelas da Tekoá de Pariquera-Açu. Pois,
junto à sua parentela, o “cargo” que ocupara era encarado como um facilitador para a
superação de múltiplos problemas que enfrentavam: tanto para a superação de
demandas essenciais para a manutenção da vida, como para garantir alguma renda em
um contexto de dificuldades materiais que se acercava da fome; passando pela maior
possibilidade de articularem os seus interesses junto aos profissionais representantes do
Estado; até a maior aproximação que passou a se concretizar por parte de muitos outros
indivíduos de outras parentelas junto a eles, fato que lhes aumentava o prestígio na
aldeia.
Porém, frente às outras famílias extensas da Tekoá de Pariquera-Açu, Werá Pyty
e a sua parentela passaram a ser vistos e tratados com alguns senões, pois, segundo
aqueles, a renda de Werá Pyty e sua parentela, interferia diretamente em aspectos
basilares da convivência Mbyá, tais como a reciprocidade e a comensalidade. Por outro
lado, também efetuava interferências na ordem política daquela Tekoá, visto que a
atribuição de atividades dos membros da aldeia, quando caracterizadas como benefício
coletivo, como articulação dos problemas, como disputas entre os indivíduos e
parentelas, como estabelecimento de contatos e como mitigação de problemas entre a
Tekoá e a sociedade envolvente se tornam ações de responsabilidade direta do cacique,
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do Xeramo’i e demais lideranças. Posicionamentos sociais que não indicavam as
atribuições nem de Werá Pyty e nem de nenhum de seus parentes diretos.
Há de se considerar que as dimicas expostas acima, que determinaram
parcialmente o contexto de convivência entre as parentelas da Tekoá de Pariquera-Açu,
em um período imediatamente anterior ao deslocamento do grupo Mb, viria a
constituir a Tekoá Mirim. E, somadas às análises a serem realizadas a seguir, a partir da
transcrição de partes das falas de Werá Pyty, contribuem claramente para a proposição
aqui assumida. Dito de outro modo, de que processos pragmáticos permeiam o cotidiano
Mbyá, e articulam suas dinâmicas políticas internas e externas, e como devem ser
caracterizados quanto à sua complementariedade, principalmente por questões de
ordem cosmológicas. Propiciando assim, mesmo na contemporaneidade, uma correta
apreensão e entendimento dos motivos que impulsionam o tão peculiar processo de
mobilidade deste povo indígena.
Abaixo, segue a transcrição de parte do depoimento de Werá Pyty quando fora
questionado sobre os impulsos causadores do deslocamento da sua parentela.
Lá na aldeia, em Pariquera? Ah, era muito difícil, estava tudo complicado.
Ninguém estava entendendo o outro, os parentes estavam uns sem entender os
outros. Daí também, estava crescendo aldeia, ficava cada vez menos espaço pra
plantar. O que saia da roça não dava para todo mundo. E a água era pouco
também, não era boa. Também, aldeia estava muito suja, cheia de bicho das
doença, tinha muito lixo, rato, baratinha, deixava as crianças todas doentes. Não
tinha comida todo dia, as criança tinham fome né. Era muito difícil. Então meu
pai falou com Nhanderú, pediu pra ele nos ajudar, fez trabalho, acertou tudo, e
nós saímos. Foi assim que nós saímos de lá (Werá Pyty, entrevista, 19 jan. 2018).
Desta forma, acentuamos, com trecho acima, a predominância dos aspectos
práticos e materiais presentes no cotidiano dos Mbyá que habitavam a Tekoá de
Pariquera-u antes de iniciar o deslocamento da sua parentela; sendo, então, possível
compreender os mesmos como impulsos complementares à sua cosmologia, no contexto
da mobilidade territorial de sua família extensa. Também os conflitos políticos internos
àquela Tekoá, como os relacionamentos com a sociedade envolvente, tal como se
estabeleceram historicamente, são elementos também a se considerar.
Verifica-se,
assim, que esses indígenas, por variarem as condições de acesso ao território e mudarem
as relações políticas entre as famílias ampliadas, podem também definir e redefinir os
lugares onde realizam seu modo de ser, ou seja, o tekoha contemporâneo” (ALMEIDA &
MURA apud PISSOLATO, 2007, p.117, tradução nossa)
1
.
1
No original: “Se constata, de ese modo, que esos indígenas al variar las condiciones de acceso al territorio
y cambiar las relaciones políticas entre las familias extensas, pueden también definir y redefinir los lugares
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Entretanto, é também bastante perceptível na fala de Werá Pyty que, por haver a
conclusão de que as causas elementares que detonaram o processo de migração da sua
parentela, mesmo que tenham sido elementos cotidianos tanto de ordem econômica
como de ordem potica, juntamente as dimicas sociais que caracterizam a
historicidade presente dos Mbyá os contextos de contato com a sociedade envolvente
e constituintes da sua práxis não anula a relevância atribuída à cosmologia e aos
processos rituais e religiosos peculiares a cultura Mbyá, para o pleno entendimento dos
impulsos causadores da mobilidade territorial do seu povo.
O deslocamento entre a Tekoá de Pariquera-Açu e a Tekoá Mirim. A mobilidade Mbyá
propriamente dita
Pode-se assumir a convicção de que os impulsos motivadores do processo que
impeliu o deslocamento da parentela do Xeramo’i Karaí Mirim, desde a Tekoá de
Pariquera-Açu no litoral sul de São Paulo, até a localidade definida por ele a ser o ponto
de fixação do grupo e da constituição da Tekoá Mirim, área localizada no município de
Praia Grande, também no sul do litoral paulista, sendo consequência de um complexo
processo sociocultural, onde concepções e práticas cosmológicas, rituais e religiosas
interpenetraram-se em alguns aspectos derivados da vida imediatamente prática dos
Mbyá. Em outras palavras, situações derivadas das condições socioeconômicas, das
relações políticas internas e do contato com a sociedade envolvente que concretizavam a
práxis daquele grupo. Pretende-se, a partir de então, pensar de que modo específico
circunscreve as questões relacionadas ao processo de mobilidade espacial, propriamente
dito, dos Mbyá e como se concretizou o deslocamento do grupo indígena estudado,
levando-se em conta circunstâncias de caráter sociais, políticas e econômicas, tal como,
contextos cosmológicos, rituais e religiosos, culturais enfim, entre o ponto de partida e o
local de fixação para o estabelecimento da sua Tekoá Mirim.
Após concretizadas as circunstâncias que configuraram a inspiração divina
realizada nos sonhos do Xeramo’i, e que lhe foi entregue por intermédio de Nhanderú,
determinando que devesse conduzir seus parentes na jornada mítica do Oguatá para
constituírem uma nova localidade de habitação outra Tekoá, deve-se considerar que,
“a escolha do lugar onde possam viver “conforme os nossos costumes” (Nhanderekó)
parece hoje constituir-se na motivação básica das “andanças” (Oguatá) Mb” (AZANHA
& LADEIRA, 1988, p.23). E mais, que “Incluem na sua definição de povo a mensagem
donde realizan su modo de ser, es decir, el tekoha contemporáneo” (ALMEIDA & MURA apud PISSOLATO,
2007, p.117).
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divina a eles revelada por Nhanderu e por eles cumprida, de que devem procurar seus
verdadeiros lugares, por meio de caminhadas (guatá)(LADEIRA, 2007, p.23).
Com relação aos fatos e processos que trouxemos durante o texto passaremos à
transcrição colhida em conversas junto ao Xeramo’i Karaí Mirim que se ocupam, de
modo específico, em apresentar o contexto posterior à sua inspiração ocorrida em sonho
e que alertava sobre a necessidade de se transferirem da localidade em que viviam.
Depois do meu sonho eu entendi porque estava tudo ruim, porque estava muito
difícil para nós vivermos lá em Pariquera. Foi Nhanderú quem explicou, ele
mostrou para mim, eu vi no sonho. Não era mais para nós ficar lá. Tinha que ir
pra outro lugar, outra Tekoá; nós é que tínhamos que achar. Nhanderú ia
mostrar onde era. Como fazia para chegar lá. Mas agora tínhamos que preparar
tudo. Depois disso tudo então, tinha que rezar muito, Mbora’i. Pra Nhanderú me
mostrar. Fui rezando muito, toda noite, bastante tempo, até Nhanderú mostrar”
(Xeramoi Karaí Mirim, entrevista, 17 jan. 2018).
De acordo com as informações coletadas, se iniciaram uma série de trabalhos
diários, que começavam sempre ao anoitecer e se estendiam por muitas horas, mesmo
até nas horas mais avançadas da madrugada. E não raras as vezes que se estendiam até o
amanhecer seguinte. E, à medida que se sucediam ao longo das noites, as presenças
nestes trabalhos passaram a ser restritas ao Xeramo’i Karaí Mirim e à sua esposa Pará
Pyty, quando entoados ininterruptamente sucessivos mbora’i (cantos/rezas sagrados)
pelo Xeramo’i, acompanhados pelas músicas que sua esposa tocava no Mbaraká (violão).
Os períodos eram intercalados a outros períodos onde se fumava de maneira intensa o
Petynguá (cachimbo).
À vista disso, seguiam-se trabalhos com grande intensidade das rezas, dias de
orações, jejuns, cantos e danças sagradas. Até que ao longo da realização de uma sessão
de trabalhos, em que apenas participavam o Xeramo’i e sua esposa, foi então indicado a
ele, por Nhanderú, em inspiração ritual e uso do Petynguá, que em breve ocorrer-lhe-ia
a inspiração que lhe indicaria exatamente o novo local a se instalarem e se fixarem em
nova Tekoá.
Segundo Pissolato (2007, p.319): “A bem da verdade, dizem os Mbyá que a
qualquer hora do dia ou lugar em que se esteja, pode-se ter alguma percepção de algo
que Nhanderu conta (...)”.
Aproximadamente um mês depois de iniciarem estas sessões sucessivas de
trabalhos xamânicos que objetivavam a inspiração divina, para que o Xeramo’i pudesse
“ver” a localidade exata para onde deveria conduzir o deslocamento de seus parentes no
processo de estabelecimento de uma “nova” Tekoá, é que este fato viera a se
concretizar. E, finalmente, fora revelado para o Xeramo’i Karaí Mirim a nova área a ser
ocupada em seu ancestral território. Depois de antevisto em contexto ritual, onde a
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inspiração dada por Nhanderú ao Xeramo’i se realizara, passaria, então, a ter início o
processo de deslocamento propriamente dito daquele grupo Mbyá.
Por conta de todo este processo, se iniciou ainda na Tekoá de Pariquera-Açu, uma
série de reuniões entre o Xeramo’i e os demais membros da sua parentela. Nestas
reuniões, definidas pela peculiar oratória Guarani, eram apresentados os contornos
daquela situação que os impelia a se deslocarem em busca da sua “nova” Tekoá.
Buscava-se o apoio e a garantia de participação dos seus parentes. Mas, a adesão
imediata dera-se apenas por parte de alguns jovens casais. O que passou a demandar um
maior esforço do Xeramo’i e do seu filho Karaí Ñee’re para o convencimento dos seus
demais parentes. Processo, portanto, que se estenderia por mais algumas semanas.
Contudo, como afirmara Karaí Ñee’re em algumas conversas, simultaneamente,
nos momentos em que buscavam o convencimento de seus parentes, os trabalhos do
Xeramo’i continuavam a ser realizados diariamente. E neles, se intensificava a percepção
de que a partida da Tekoá de Pariquera-Açu e o consequente deslocamento do grupo
deveria se iniciar o quanto antes. Mediante incerteza do grupo, em um acordo, o
Xeramo’i Karaí Mirim e o seu filho Karaí Ñee’re decidiram, inicialmente, que apenas eles
partiriam para realizarem a localização exata daquela espacialidade a ser estabelecida a
sua nova Tekoá. Dinâmica esta que se materializaria inteiramente determinada, por meio
da prática de rituais que revelariam as inspirações divinas propiciadas por Nhanderú.
O Xeramo’i e seu filho partiam da Tekoá de Pariquera-Açu em uma jornada
rituastica que os imerge num contexto de ressignificação tempo espacial, por se
consumar na contemporaneidade, reproduzia a Oguatá Po(Bela Caminhada),
milenarmente executada por seus ancestrais.
Desta forma, sempre guiados pelos trabalhos realizados todas as noites pelo
Xeramo’i, os dois viajantes distanciavam-se da Tekoá de Pariquera-Açu em direção ao
norte; viajaram a pé, por entre as matas da Serra do Mar e trilhas centenárias, mas, às
vezes, se utilizaram os ônibus circulares. Passaram pelas aldeias Guarani de Itanhaém, de
Mongaguá, até cruzarem o limite de município com Praia Grande, onde penetraram no
interior do território da Serra do Mar, mantenedora de ampla cobertura vegetal de Mata
Atlântica ainda bastante preservada. Nesta noite, segundo o relato de Karaí Ñee’re, o
trabalho concebido por seu pai resultara na “visão” inspirada que tanto aguardavam, isto
é, fora-lhe apresentado por Nhanderú a localidade exata em que deveriam fixar-se e com
seus parentes constituírem a sua aldeia.
Estando exatamente determinado o local para o “novo” estabelecimento da
parentela do Xeramo’i, ele e seu filho retornam à Pariquera-Açu, para a Tekoá em que os
seus parentes os aguardavam. Após a chegada de ambos, e descrito minuciosamente por
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meio da peculiar oratória Mbyá Guarani, o contexto ocorrido em sua viagem, com
facilidade realizara-se o convencimento de uma significativa parte de seus parentes.
Então, se iniciara o deslocamento do grupo Mbyá em questão, e que
concretizariam a aldeia Tekoá Mirim. Como já fora registrado, a determinação quanto à
espacialidade exata de onde deveria se realizar a fixação do grupo Mb e se daria o
momento final de sua jornada, mitologicamente concebida e tornada real através da
prática do Oguatá Porã, a sua “bela caminhada” ocorreu após se deslocarem de maneira
similar pelo mesmo percurso que o Xeramo’i Karaí Mirim e seu filho Karaí Ñee’re haviam
transposto anteriormente. Determinação definida pelos contextos mítico-religiosos que
se manifestaram para estas situações e para a ação ritualística que, ao longo do período
em que esteve sendo revivida, o processo rituastico secular da Oguatá esteve atuando
como aquele que concentra o poder político frente a todo o grupo, somando-o a posse
do já anterior poder espiritual/religioso. Portanto, todo o processo de deslocamento
ritualístico (Oguatá) deu-se como consequência da reprodução, no cotidiano, da
mitologia Mbyá Guarani. Sua motivação, derivada de questões míticas (a busca da “Terra
sem Mal”), religiosas (a incompatibilidade de mais de um Xeramo’i em cada um dos
grupos Mb), até questões culturalmente peculiares deste grupo indígena, que se
especificam e concretizam nas relações políticas, espirituais e sociais.
Na localidade definida mediante complexos processos ritualísticos que se deram
na realidade contemporânea, parcialidades ressignificadas da ancestralidade
cosmológica, mítica e religiosa Mbyá, constituía-se este novo núcleo sociocultural a ser
ocupado por representantes daquele povo, ou seja, pelos membros da parentela do
Xeramo’i Karaí Mirim.
Naquela “nova” Tekoá, fixaram-se, inicialmente, alguns indivíduos que
compunham parcialmente a família extensa do Xeramo’i Karaí Mirim: o próprio
Xeramo’i (Maurício) e sua esposa Pará Pyty (Marta), seu filho Karaí Ñee’re (Edmilson) e
a sua esposa Pará Yry (Venância) e seus dois filhos que tinham, na época, Karaí Jecupe
(Edicleison) e Kwaraí Papá (Juca). Ainda formavam aquele grupo, seis netos do Xeramo’i
Karaí Mirim, todos menores de idade, além de outros dois sobrinhos seus, maiores de
idade e casados. Sendo que o primeiro casal vinha acompanhado de dois filhos menores
de idade, enquanto o segundo casal, com seus quatro filhos, todos também, menores de
idade.
Determinava-se o início da constituição da Tekoá Mirim.
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Considerações finais
Percebe-se, afinal, como as concepções acerca do deslocamento territorial
interpenetram-se e se constituem de maneira complementar, da mesma maneira que se
define a proposição deste trabalho para a realização acertada da apreensão e
entendimento deste peculiar processo cultural dos Mbyá. O ethos caminhante” deste
povo envolve necessariamente a busca por lugares; mas esta busca não aparenta ser
motivada por um ideal plenamente determinado de vida e lugar, mesmo que dados
antecipadamente. Ao buscar lugares, parece que, justamente, se busca um modo mais
apropriado para se viver num mundo, como afirmam os Mbyá, em que se encontre um
lugar realmente bom e adequado. Mesmo que a argumentação se faça paradoxal, é
exatamente a plena consciência a respeito desta condição precária que torna contínuo o
deslocamento e a busca por contextos melhores para se viver.
Desta forma, a “antevisão onírica” da efetuação da Oguatá, ou seja, a motivação
ritualisticamente percebida, a demonstração da nova localidade a se fixar “vista” em um
sonho, a inspiração dada por Nhanderú, foram etapas vivenciadas pelo Xeramo’i. Como
também o local compreendido como aquele que lhe foi revelado e indicado pela divindade
para ser concebido como sua nova Tekoá. Neste caso, a área da Serra do Mar, presente
no território do município de Praia Grande, litoral sul de São Paulo. Localidade esta, que
teve também, sobreposta a si, a decisão estatal que a deixou circunscrita ao Parque
Estadual da Serra do Mar. Entretanto, para os Mbyá, esta espacialidade fora confirmada
enquanto localidade exatamente correta, em relação à sua presença e permanência.
Confirmação que seu deu por uma série de rituais realizados pelo Xeramo’i Karaí Mirim
com esta finalidade específica. Reproduzindo-se desta maneira, na contemporaneidade,
as complexidades que caracterizam, talvez, o principal aspecto desta cultura
milenarmente mantida naquela área geográfica a sua mobilidade espacial, a
constituição incessante de diversas Tekoá, quando compreendidas em suas inter-
relações e interatividade características, passa-se a uma real percepção do entendimento
que, de modo correto, define a territorialidade Mbyá Guarani.
Referências
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1988.
CLASTRES, H. A Terra Sem Mal. Tradução: J. Ribeiro. São Paulo: Brasiliense. 1978.
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CLASTRES, P. A Sociedade contra o Estado: pesquisas de antropologia política.
Tradução: T. Santiago. Rio de Janeiro: Francisco Alves. 1978.
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Paraguai. Tradução: Tânia Lima. Rio de Janeiro: 34. 1995.
LADEIRA, M. I. O Caminhar sob a Luz: território Mbyá à beira do oceano. São Paulo. Ed.
UNESP/FAPESP. 2007.
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geográfica. Disponível em:
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R835BR835&oq=yvy+maraey+maria+ines+ladeira&aqs=chrome.0.69i59.11223j1j7&source
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MELIÀ, B. A experiência religiosa Guarani. In: O Rosto Índio de Deus. Tradução: J.
Clasen. São Paulo: Vozes. 1989.
PISSOLATO, E. A Durão da Pessoa: mobilidade, parentesco e xamanismo mbya
(guarani). São Paulo: UNESP: ISA; Rio de Janeiro: NuTI. 2007.
Fontes orais
Cacique Karaí Ñee’re, entrevista, 15 jan. 2018.
Werá Pyty, entrevista, 19 jan. 2018.
Xeramo’i Karaí Mirim, entrevista, 17 de jan. 2018.