FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.6, nº1, p.86-101, jan.-jun., 2019
MARTINS, Fábio do Espírito Santo
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estava muito cansado, eu nem lembro, mas me contaram que eu fiquei lá na
Opy’i dormindo, mais de um dia. Daí tudo resolveu, foi sim, no sonho. Nhanderú
me mostrou que problema era lá, não era mais pra fica lá, tinha que ver e depois
achar o lugar, a nossa Tekoá. Nós tínhamos que ir embora pra lá. Foi Nhanderú
que veio ajudar, mostrar qual era o problema e dar para nós a solução. No
sonho. E foi depois de muitos trabalhos e de muita reza na Opy’i, feita nos
outros dias, que em outro sonho, é; quando eu sonhava que Nhanderú me
mostrou o lugar da Tekoá, o lugar pra onde nos tínhamos que ir. Ir para lá, pra a
nossa Tekoá, lá é que nós tínhamos que ficar. E Nhanderú já tinha me mostrado
onde. E mostrou no sonho. (Xeramo’i Karaí Mirim, entrevista, 17 de jan. 2018).
Uma vez alcançada a compreensão da transcrição acima, pode-se revelar a partir
da perspectiva própria da liderança espiritual e religiosa do grupo indígena estudado, de
modo literal, como se caracterizou o complexo processo de inspiração divina que o
acometeu e que, a partir disso, desencadeou o “start” ao que se refere à composição e
articulação dos preceitos cosmo-mitológicos Mbyá que, segundo a sua perspectiva, se
constituem como o principal motivo de explicação para a mobilidade territorial do seu
grupo de parentes que vieram a constituir o primeiro núcleo populacional da Tekoá
Mirim. Afinal, tudo que se compõe, mesmo que parcialmente, enquanto experiências dos
vivos mantendo-os como tal, depende do que os Mbyá identificam como “a vontade de
Nhanderu, a quem sempre se deve “pedir” (jejure), “perguntar” (porandu), “escutar”
(endu). E surge, então, o “fortalecimento” (mbaraete) ou a “coragem” (py’a guaxu) para
continuar na Terra” (PISSOLATO, 2007, p.228). E mais ainda, já que “na sua definição de
povo a mensagem divina a eles revelada por Nhanderu e por eles cumprida, a de que
devem procurar seus verdadeiros lugares” (LADEIRA, 2007, p.23).
Todo o processo de concretização das condições que determinaram o
deslocamento ritual (Oguatá) deu-se como consequência da reprodução, no cotidiano, da
mitologia Mbyá. Sua motivação, então, derivara de questões míticas e religiosas,
culturalmente peculiares deste grupo indígena. Desta forma, a composição cosmológica
em que esta se expressa, mediante a “antevisão onírica”, ou seja, a motivação
ritualisticamente percebida e a demonstração da nova localidade a se fixar, ocorridas em
um sonho, assim como a inspiração dada por Nhanderu, foram etapas vivenciadas, e
apresentadas nas transcrições dos depoimentos dados pelo Xeramo’i Karaí Mirim.
Frente a essa análise, lembremos, também, da extrema relevância que o sonho
concentra na cultura Mbyá. Em alguns contextos podem ser propiciadas experiências
especiais perceptivas, visto que a concentração de dinâmicas subjetivas implicitamente
os preencheria. Aparece claramente o elevado grau de importância que o sonho possui.
Importância esta que permanece ainda na contemporaneidade, mantida e circunscrita
pelo complexo cosmo-mitológico. Dito de outra maneira, relacionada com significações
que orientam os processos de mobilidade intensa dos grupos Mbyá, determinadas pela