FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.6, nº1, p.447-471, jan.-jun., 2019
FRANCISCON, Moisés Wagner; PONCE MARTINS, Gelise Cristine
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filmes carregados de propaganda política não eram os mais assistidos. A população
apreciava, acima de tudo, as comédias portadoras do escapismo, da diversão suave e da
sátira. Ao contrário dos filmes valorizados pelo regime e difundidos nos jornais
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, estas
comédias foram tão influentes a ponto de algumas de suas frases passarem a compor o
vocabulário popular, permanecendo na mentalidade dos soviéticos
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.
O sistema de produção e distribuição privados da época czarista foi substituído
pelo modelo estatal, com a nacionalização e expropriação de cinemas, estúdios e
instrumentos, em 1919. A partir de 1929, o regime descentralizado foi substituído pelo
centralizado. O cinema passou a contar com um ministério e agências de fomento e
controle. As constantes reorganizações burocráticas também atingiram os órgãos
estatais encarregados do cinema. A antiga Sovkino, que cuidava da distribuição, foi
extinta. Seu lugar foi preenchido com a maior e mais poderosa Soyouzkino
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. A produção,
distribuição e previsão de público passaram a ser previstas numericamente pelos planos
manipulação da opinião? [...] Eu posso estabelecer com segurança, todavia, que em particular, os métodos
leninistas-stalinistas de mobilização de massas e a de doutrinação foram aspectos essenciais para o Estado
de propaganda. Por um lado, não se pode imaginar o regime soviético funcionando sem esta mobilização de
massas sistêmica; por outro, os vários métodos de propaganda que os bolcheviques usavam faziam sentido
apenas no ambiente político dado”. O sistema político-social soviético inteiro se apoiava na propaganda e
esta era realizada, acima de tudo, pelo cinema (KENEZ, 1985, p. 106-111; 251, tradução nossa).
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Segundo Overy, havia a “convicção de que a cultura tinha uma extraordinária capacidade de influenciar o
estado de espírito e as crenças do observador. Não fosse assim, os esforços para arregimentar cada
manifestação individual da palavra impressa, ou a imagem pictórica, ou o ambiente construído teriam sido
redundantes. Os critérios para medir o valor da produção artística ou literária refletiram as aspirações
sociais e as necessidades políticas da ditadura. A arte oficial não era inteiramente cega à realização
estética, mas tinha como principal propósito expressar valores sociais e ideais políticos aprovados, para
que fossem apreciados pelo público comum, e não pelo mundo mais estreito de críticos e patronos da arte”
(OVERY, 2009, p. 362-363).
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Ferro chama a atenção para a importância junto ao público do filme Tchapaev (FERRO, 1992), mas
Tchapaev é mais uma exceção do que a regra para o filme engajado na retórica oficial do regime. Ele foi
produzido num momento em que a planificação econômica havia reduzido a produção de filmes (KENEZ,
2008), limitando o espectador a vê-lo repetidas vezes. Ainda assim, as piadas surgidas sobre o filme
concentraram-se em seus momentos de humor, como no romance entre o estafeta de Tchapaev e a
operária combatente.
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“O sol branco do deserto (1970), de Vladimir Motyl (1927-2010), é o primeiro “faroeste passado no
Oriente” asiático da URSS que, por tradição, é sempre assistido pelos astronautas russos antes de irem a
missões no espaço. O filme se tornou tão popular que várias expressões que fizeram sucesso na tela
entraram no vocabulário do dia a dia do russo: “O Oriente é uma coisa sutil”; “Alguma pergunta? Nenhuma
pergunta”; “É mais calmo quando se está morto, mas também é mais chato” (SEGRILLO, 2012, p. 64). Os
Osterns, os faroestes produzidos na URSS e em outros países comunistas, continham uma boa dose de
humor (SEGRILLO, 2012 p. 267-268).
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A primeira entidade destinada a controlar a produção e distribuição cinematográfica foi a VFKO, Seção
de Fotografia e Cinematografia de Todas as Rússias (1919-22) (TAYLOR; CHRISTIE, 1991); sucedida pela
Goskino, ou Comitê Estatal de Cinematografia (1922-24); que foi substituída pela Sovkino (1924-30) que,
por sua vez, o foi pela Soyuzkino (1930-33); esta trocada pela GUKF, Diretoria Geral da Indústria
Cinematográfica e Fotográfica (1933-39); abolida pelo Comitê Central de Assuntos Cinematográficos (até
1946), substituído pelo Ministério do Cinema (1947). Em 1963, a Goskino foi relançada, primeiro como
Comitê de Estado do Conselho de Ministros da URSS em Cinematografia (1963-65), em seguida, como
Comitê de Cinematografia do Conselho de Ministros (1965-72), depois, como Comitê Estatal de
Cinematografia (1972-78) e, por fim, tornou-se o Comitê do Estado da URSS em Cinematografia (1978-91).
Em russo, a sigla VFKO significa Vserossiyskiy fotokinootdel; Goskino, Gosudarstvenii komitet po
kinematografii; GUKF, Gosudarstvennoe upravlenie kinofotopromychlennosti (TAYLOR; CHRISTIE, 1991).
Sovkino, além do nome departamental, faz referência a “filmes soviéticos” – Sov-kino; Soyuzkino a “filmes
da União” – Soyuz-kino.