Recebido em: 15/02/2019
Aprovado em: 18/04/2019
História Oral, Territorialidades e Identidades
Quilombolas:
Furquim, Mariana, Minas Gerais
Oral History, Territoryality and Quilombolas Identities:
Furquim, Mariana, Minas Gerais
CARVALHO, Leonam Maxney
*
Resumo: Neste texto foram apresentadas algumas análises e discussões sobre questões
ligadas à reconstrução das identidades dos quilombolas da Comunidade de Santa
Efigênia e adjacências no distrito de Furquim, cidade de Mariana, estado de Minas Gerais
na contemporaneidade. Por meio das metodologias da história oral, discutem-se como as
histórias de vida destes quilombolas podem exibir aspectos da história e das memórias
locais. Ao mesmo tempo, a história oral e seus métodos de tratamento de histórias de
vida e memórias servem de base para conhecer sobre a relação sociocultural dos
habitantes do quilombo com a terra identificada como território quilombola , com a
alimentação extraída do trabalho com a terra e produzida nos limites da casa , e com
os cuidados com a saúde, utilizando elementos naturais produzidos e elaborados pelos
próprios quilombolas. Os depoimentos extraídos destas entrevistas são também
carregados de muita religiosidade, demonstrando que suas identidadeso
caracterizadas por representações de sua territorialidade e pelo relacionamento com
elementos naturais e espirituais.
*
Doutor em História pelo Programa de Pós-Graduação em História UFMG, Belo Horizonte, MG. Analista
Educacional da Superintendência Regional de Ensino de Ouro Preto/SEE-MG. E-mail:
leonam.carvalho@educacao.mg.gov.br.
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.6, nº1, p.39-61, jan.-jun., 2019
CARVALHO, Leonam Maxney
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Palavras-chave: território quilombola; alimentação; benzeção; representações sociais.
Abstract: In this text, it was showed some views and discussions about questions
connected to the quilombolas’ identities rebuilding from Santa Efigênia’ region, Furquim
district, Mariana City, Minas Gerais state. Through oral history methods, we discuss how
the quilombolas’ life histories can show local histories and memories aspects. At the
same time, oral history and its methods of treatment of life histories and memories serve
like a basis to know about social and cultural relationship of these population with the
land recognized like quilombolas’ territories , with food extracted from work at
the land and produced in the house limits , and with health care, using natural elements
and ways produced and made by themselves. The testimonials from these interviews are
also full of religiousness, demonstrating that your identities are featured by their
territoriality representations and by their relationship with naturals and spirituals
elements.
Key-words: quilombola’s territory; food; blessing, social representations.
Introdução
As conclusões aqui apresentadas fazem parte de um projeto de pesquisa
estabelecido pelo trabalho conjunto entre dois setores da Superintendência Regional de
Ensino de Ouro Preto
1
: a Diretoria de pessoal (DIPE) e a Diretoria Educacional (DIRE),
que visa desenvolver a educação quilombola na Escola Estadual Monsenhor Morais. Esta
escola atende ao distrito de Furquim, em Mariana, incluindo a referida comunidade
quilombola da Vila de Santa Efigênia e adjacências. Um dos objetivos desta empreitada é
incentivar os professores a traçar estratégias didáticas que envolvam a comunidade
escolar quilombola para que eles próprios possam contribuir para o desenvolvimento do
aprendizado dos alunos. Desta forma, buscou-se, por meio de entrevistas pré-
estruturadas e pesquisa documental e bibliográfica, investigar as histórias de vida de
alguns dos moradores da região quilombola, para em conjunto com os mesmos, tentar
compreender e caracterizar o que é ser quilombola na região. De primeira mão, o que se
percebeu é que estas concepções são plurais, movediças e possuem o poder de se
transformar cotidianamente, não podendo afirmar a existência de uma identidade
quilombola em Furquim, mas de várias identidades quilombolas.
Apesar de se reconhecer que poucos se envolvem realmente com estratégias
didáticas que valorizem a educação quilombola na escola, a parceria e o trabalho
daqueles que se debruçam sobre esta tarefa é essencial para a consolidação desta
1
A S.R.E. de Ouro Preto é uma das 47 regionais do Estado de Minas Gerais que têm como função principal,
fazer a ligação entre as escolas estaduais e a Secretaria Estadual de Educação. Além dos dois setores
citados, também possui uma Diretoria de Administração e Finanças (DAFI) e um setor de Inspeção Escolar.
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temática no ensino básico. Principalmente porque se valoriza uma parcela da população
que foi marginalizada no decorrer da história brasileira, e que a cada dia conquista
espaço para amplificar a sua voz por meio das poticas afirmativas que debatem e
legislam a seu respeito.
Shirley Miranda (2012) revelou-se otimista, afirmando que desde a publicação da
LDBEN n. 9394/1996 (BRASIL, 1996), o contexto da educação quilombola e temas
correlatos têm se pautado de um arcabouço jurídico mais favorável. Principalmente a
partir de 2009, quando também foi publicado o Plano Nacional de Implementação da Lei
nº. 10.639/2009 (BRASIL, 2009), e a resolução nº. 4/2010, que definiu as Diretrizes
Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica (BRASIL, 2010). A publicação das
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola, por meio da
Resolução nº. 8, de 20 de novembro de 2012 (BRASIL, 2012a), assim como o Parecer
CNE/CEB nº 16 (BRASIL 2012b), aprovado em cinco de junho do mesmo ano, completam
o quadro favorável das legislações a respeito do tema (MIRANDA, 2012, p. 371).
Em Minas Gerais, duas resoluções importantes sobre educação quilombola foram
publicadas pela Secretaria de Estado de Educação: a de nº. 3.677 de 5 de janeiro de 2018
(MINAS GERAIS, 2018) e a de nº. 3.658 de 24 de novembro de 2017 (MINAS GERAIS,
2017). Enquanto esta última institui as Diretrizes para a organização da Educação Escolar
Quilombola em Minas Gerais, a primeira dispõe sobre critérios e define procedimentos
para inscrição e classificação de candidatos concursados e/ou quilombolas para
trabalharem nas escolas localizadas em Territórios de Remanescentes de Quilombo, e
geralmente é atualizada anualmente.
O que se quer ressaltar, dentre outros fatores importantes, é que estas
resoluções e poticas afirmativas pregam sobre a necessidade do diálogo constante com
as comunidades quilombolas, seus líderes e seus costumes. Isto se dá, por exemplo,
quando se obriga que a construção dos Projetos Políticos Pedagógicos das escolas
quilombolas mineiras ocorra (conforme art. 9 e 10 da res. 3658/17, MINAS GERAIS, 2017,
p. 3): “[...] de forma coerente, articulada e integrada com a realidade histórica, regional,
política, sociocultural e econômica das comunidades quilombolas”. Ou seja, a educação
quilombola “[...] deverá ser elaborada de forma aunoma e coletiva, pautada em
diagstico da realidade e mediante o envolvimento e participação de toda a comunidade
escolar, em processo dialógico com as lideranças e as diversas organizações existentes
no território” (MINAS GERAIS, 2017, p. 2). Além disso, o projeto político-pedagógico
ainda deverá considerar, de acordo com o mesmo artigo, a memória coletiva, as línguas
reminiscentes, os marcos civilizatórios, as práticas culturais, os acervos e repertórios
orais, os festejos, usos, tradições, a territorialidade e o respeito aos processos históricos
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de luta pela regularização dos territórios tradicionais dos povos quilombolas, o
reconhecimento dos quilombolas como povos ou comunidades tradicionais, a superação
do racismo em vários aspectos, e também:
II os conhecimentos tradicionais, a oralidade, a ancestralidade, a estética, as
formas de trabalho, as tecnologias e a história de cada comunidade quilombola;
III as formas por meio das quais as comunidades quilombolas vivenciam os
seus processos educativos cotidianos em articulação com os conhecimentos
escolares e demais conhecimentos produzidos pela sociedade mais ampla; IV - a
possibilidade de articulação entre Escola Quilombola e instituições de Ensino
Superior, devidamente apoiadas por agências de fomento à pesquisa; V os
processos de aprendizagens com os próprios moradores e lideranças locais
(MINAS GERAIS, 2017, p. 3).
Campos e Gallinari analisaram a trajetória histórica da educação quilombola no
Brasil e enfatizaram alguns aspectos importantes, presentes na legislação vigente sobre
o tema, suas respectivas poticas públicas e coloniais, e a intenção de “considerar a
inter-relação que possuem com as dimensões históricas, políticas, econômicas, sociais,
culturais e educacionais, remetendo ao período inicial da instalação dos quilombos no
Brasil” (CAMPOS e GALLINARI, 2017, p. 207).
Considera-se, como já afirmado, que não há como desvincular o conceito de
quilombola deste passado colonial. Contudo, é necessário ir além, reconstruindo este
conceito sob uma nova visão. Para Miranda, entre os desafios para a inauguração dessa
modalidade educacional, está a definição do que vem a ser uma comunidade quilombola
no século XXI, considerando que o conceito tem mais de quatro séculos de história
(MIRANDA, 2012, p. 370-371).
Imagem 1. Distância da sede do município de Mariana ao distrito de Furquim, Minas Gerais
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Fonte: Google Maps
2
Em 2010, a Vila Santa Efigênia, no subdistrito de Crasto (Furquim, Mariana) teve
sua formalização como terra de remanescentes de quilombolas pela Fundação Cultural
Palmares. De acordo com L.K.A.P.
3
tudo começou quando um aluno da Universidade
Federal de Ouro Preto (UFOP) visitou as comunidades do Crasto, Vila De Santa Efigênia
e Imbaúba para uma pesquisa. De acordo com a entrevistada, alguns estudos foram
feitos, até que foi expedido o documento que atesta a identidade quilombola atribuída à
região. A entrevistada afirma que a maioria das pessoas gostou que suas comunidades
fossem reconhecidas como remanescentes de quilombolas. Ela se confirma quilombola
“com orgulho”: “eu gosto, meus amigos gostam, gostam das apresentações, eu acho bem
interessante”. Quando indagada sobre o que teria contribuído para este reconhecimento
e autovalorização de sua identidade quilombola, respondeu que:
2
Disponível em:
https://www.google.com/maps/dir/Furquim,+Mariana+-
+State+of+Minas+Gerais/Mariana,+State+of+Minas+Gerais/@-20.3714075,-
43.3812441,21330m/data=!3m2!1e3!4b1!4m13!4m12!1m5!1m1!1s0xa47cd71c4d3571:0xc56fb5496ff4933!2m2!1d
-43.2073984!2d-20.3539249!1m5!1m1!1s0xa47406526f605d:0xd833f5a1f41650a4!2m2!1d-43.4150073!2d-
20.3652719. Acesso em 14 abr. 2019.
3
Entrevista cedida em 14/08/2018. Os nomes dos entrevistados serão apresentados em siglas, para
preservar a identidade dos mesmos.
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foi a valorização das pessoas envolvidas, aonde a gente vai as pessoas tratam a
gente bem, tratam com igualdade, entendeu? E as coisas que a gente produz,
que a gente faz aqui, coisas que ninguém imaginou que alguém ia valorizar, ou
dar alguma coisa por aquilo, as pessoas valorizam, acham interessante, acham
bonito, até os artesanatos que a gente faz em casa, é bem interessante assim
ver que as pessoas lá fora valorizam isso (L.K.A.P., entrevista, 14 ago. 2018).
Entretanto, em conversas informais com moradores do Quilombo e com
estudantes e professores que atuam no distrito, percebeu-se que muitos moradores
destas regiões, inclusive jovens em idade escolar, ainda têm alguma resistência em se
assumir quilombolas. Por outro lado, outros sentem orgulho e se veem como
descendentes de africanos, como quilombolas, e buscam cada vez mais se inserir nos
debates sobre relações étnico-raciais e temas correlatos.
L.K.A.P. disse também que “algumas não gostam de participar ou não se
autoaceitam”. O mesmo ocorre entre os alunos da escola: “alguns deles têm meio que
dificuldade de se autoaceitar”. Continua, “eles têm meio que vergonha, não sei se é medo
de alguém criticar, ou alguém ter preconceito por causa da cor, ou de ele dizer que é
quilombola. Eu acho que é isso, que os meninos daqui são assim” (L.K.A.P., entrevista, 14
ago. 2018).
Isto se deve, dentre outros, ao fato de que antes de 2010 não existia esta ligação
consciente entre o conceito de quilombola e as comunidades em foco. Ou seja, até cerca
de uns seis ou sete anos por volta de 2010 , os moradores do quilombo não se
reconheciam ou não se enxergavam como quilombolas.
Esta forma de se identificar faz parte do conceito legal de quilombo, descrito no
inciso I, do artigo 3º da Resolução nº 8 de 20 de Novembro de 2012, conforme descrito
anteriormente. Se por um lado o conceito de quilombola é historicamente consolidado,
por outro pode ser considerado uma construção nova, original, relacionado à sua
identidade étnico-racial. Ao mesmo tempo em que as comunidades remanescentes
podem compartilhar aspectos culturais, históricos, políticos ou econômicos, também
apresentarão especificidades próprias. Um dos objetivos ao se exibir alguns aspectos
relacionados aos quilombolas do distrito de Furquim é reunir estas informações, analisá-
las em comparação com o que já foi constatado em outras comunidades e contribuir para
que estes conhecimentos possam ser disseminados, principalmente entre os próprios
protagonistas desta história.
Ainda há muito que ser pesquisado quanto a este assunto hoje no Brasil. Contudo,
um caminho importante já foi trilhado. Quando se fala de história e cultura de
quilombolas, pelo menos outros três temas emergem à superfície das discuses: (1) a
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educação quilombola, (2) a história da África, dos africanos e de seus descendentes no
Brasil e (3) as relações étnico-raciais. O pesquisador Anderson Oliva (2008) ressalta
alguns problemas que ainda existem com relação ao ensino de História da África. Ainda
há uma grande distância entre o que é produzido nas universidades e o que é ensinado
em sala de aula. Nas instituições de educação básica ainda é necessário “[...] retirar o
continente africano do espaço reflexivo marcado pelas generalizações, pelos
estereótipos e pelas vitimizações, e valorizar a perspectiva da África como um universo
histórico-cultural diverso e complexo” (OLIVA, 2008, p. 207).
Esta pesquisa se encaixa neste contexto, no sentido de buscar uma visão acerca
do que é ser quilombola na história contemporânea, com o objetivo de desvincular este
conceito, de certa maneira, de um passado ligado a criminosos, fugitivos da lei ou
simplesmente a pessoas oprimidas, que fugiram para viver às margens da sociedade. Ser
quilombola hoje é bem diferente disso. Não é objetivo mudar os fatos históricos,
obviamente, mas pretende transformar a interpretação destes fatos, realçando aspectos
que foram obscurecidos por fontes de pesquisa e compreenes preconceituosas e
depreciativas. Não se busca simplesmente estabelecer um conceito moderno de
quilombola e instit-lo em meio à comunidade, mas instigar os quilombolas, durante as
entrevistas, a descrever eles próprios suas visões de si mesmos, suas identidades e
representações sociais enquanto remanescentes de quilombolas.
O decreto nº. 4.887/2003 caracteriza as comunidades quilombolas como “grupos
étnico-raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria,
dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra
relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida”. Entretanto, é importante,
como afirma Miranda, que essa definição traga do exercício conceitual a tarefa de aplicar
a categoria “remanescentes de quilombos” aos casos concretos (MIRANDA, 2012, p.
373).
Neste sentido, Souza e Hot (2015) têm uma visão mais pragmática dos quilombos
e afirmam que estas comunidades “podem ser consideradas como um dos segmentos
sociais mais pobres, esquecidos e desconhecidos da nossa sociedade”, definindo-as
como:
populações negras que vivem no meio rural e se autoidentificam como
Comunidades Negras Rurais, Terras de Preto, Quilombos, Mocambos, e outras
designações correlatas. Elas são um segmento de população negra brasileira
marcada pela resistência, organização e, principalmente, pela luta em defesa de
direitos sagrados: Terra, Liberdade, Cidadania e Igualdade (SOUZA; HOT, 2015,
p. 58).
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A partir destes pressupostos, segue o principal questionamento que este texto
pretende discutir: quais características histórico-sociais específicas podem ser atreladas
à identidade, ou às identidades dos remanescentes quilombolas de Furquim?
Alexandra Santos, pesquisadora sobre o assunto, levantou uma questão
importante sobre a redefinição do termo “remanescentes quilombolas”. Atrelado
historicamente ao conceito de quilombo, reproduzido durante o período escravista
brasileiro, este termo ganhou novo sentido a partir da constituição brasileira de 1988 e
das posteriores leis relativas ao tema. Contudo, a autora critica as tentativas de se
descrever estas comunidades por meio de adjetivos de cunho racial. Ao definir o que são
remanescentes quilombolas e quilombo em nossa contemporaneidade, “é preciso chamar
a atenção, entretanto, para os riscos eminentes em se buscar os fatores de distinção
dessas comunidades, assumindo como base as questões estéticas, o que acaba por
incidir no debate sobre raças, há muito repensado nas ciências sociais” (SANTOS, 2012,
p. 61).
Por outro lado, entre as narrativas de alguns dos entrevistados neste projeto,
foram identificadas descrições específicas sobre caracteres físicos como diferencial dos
quilombolas de Furquim. L.K.A.P. comenta sobre isto: “Eu acho que começa também pelo
formato do rosto, algumas coisas como o formato do pé. O pessoal fica falando mesmo
que o formato do pé é bem parecido, mais gordinho, sabe? Já comentaram com a gente, o
nariz também, é bem parecido com o pessoal mesmo da África, realmente” (L.K.A.P.,
entrevista, 14 ago. 2018). A nossa intenção não é aprofundar nas discussões a este
respeito, destaca-se apenas que estas descrições parecem ocorrer com o intuito de dar
sentido à sua ligação histórico-cultural e biológica com os povos negros do continente
africano. Ao mesmo tempo, lhes confere uma autoidentificação visual própria, que pode
ser vista sem identificações pejorativas, mas de forma altiva.
Encontrar estes pontos de ligação entre as comunidades quilombolas atuais com
estereótipos raciais ou mesmo culturas do continente africano é uma empreitada
intelectual complexa que pode levar a compreensões anacrônicas e até mesmo distorcer
a própria autoidentificação histórico-social destas pessoas. Questiona-se, portanto, a
que ponto isto é importante em certos contextos. Logo, tão respeitável quanto ter em
mente estes aços, é compreender a situação presente, seu passado recente e suas
perspectivas de futuro. Conforme afirmou Santos:
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A considerar as dinâmicas sociais, que se encontram em constante estado de
reconstrução, não é possível esperar que as comunidades de remanescentes
quilombolas preservem, no sentido essencializado do termo, suas tradições. Ao
contrário, o que percebemos é que, como em qualquer grupo social, algumas
comunidades se afastam dessas tradições, em um processo de remodelagem,
reconstrução, (re) leitura, reescrita, ou até mesmo rasura do seu passado
histórico (SANTOS, 2012, p. 61).
Isto não significa o esquecimento total das tradições, mas evidencia seu caráter
movediço, múltiplo e com historicidade pluralizada. Isto também denota que sua
identidade é continuamente reconstruída, ressignificada. Michael Pollak discutiu sobre os
usos da memória, tanto individual quanto coletiva para grupos minoritários na escrita da
história. Segundo o pesquisador europeu, quando se faz parte de grupos reprimidos de
forma institucionalizada, o próprio fato de se pertencer a estes grupos é evitado durante
as narrativas. É o que o autor chama de “memórias enquadradas” (POLLAK, 1989, p. 12-
13).
Isto se faz visível quando se analisa comunidades quilombolas. Quando o intento é
desfazer o laço entre as noções de quilombola/quilombos do passado histórico oficial
brasileiro da noção contemponea a qual se busca construir, percebe-se que, em
algumas entrevistas, a identidade quilombola é construída nas narrativas das histórias de
vida sem nem mesmo mencionar o termo. As identidades vão sendo moldadas sutilmente.
Como afirmou Pollak, “através desse trabalho de reconstrução de si mesmo o indivíduo
tende a definir seu papel social e suas relações com os outros”. O narrador estabelece
um sentimento de segurança, ou seja, de ser compreendido sem ter que falar sobre isso
(POLLAK, 1989, p. 14).
Para instalar a educação quilombola numa escola, é necessário, portanto, que
conheça bem a comunidade a qual atende. Isto significa ter conhecimento sobre as
histórias de vida de seus moradores, suas visões de mundo, seu passado e sua memória
individual e coletiva. Para tanto, defende-se aqui que se deve primeiramente instalar
projetos de interação com esta comunidade, que possam levantar informações, objetos
materiais, narrativas, documentos que sirvam de matéria prima para que os gestores
escolares e professores possam utilizá-los em seus trabalhos. Enfatiza-se aqui que a
História, com suas metodologias e, principalmente por seus aspectos interdisciplinares,
possui arcabouço técnico e científico suficiente para levantar estas informações, com
destaque para as metodologias da História Oral.
Na primeira fase deste projeto, cujas conclusões encontram-se resumidas neste
artigo, buscou-se, por meio deste método, gerar uma espécie de diagnóstico das
potencialidades de pesquisa em história e em educação por meio das narrativas dos
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quilombolas da rego. O projeto segue para sua segunda fase onde serão feitas mais
entrevistas com outros membros quilombolas e mais estudos sobre o tema.
Os testemunhos orais, desde a antiguidade, são usados para se compreender o
passado. Mas foi somente na segunda metade do século XX que o interesse pelo método
pôde ser aprimorado e disseminou entre os pesquisadores (ALBERTI, 2004a, p. 18-19).
Paul Thompson (2002), na década de 1960, conceituou o método como “a interpretação
da história e das mutáveis sociedades e culturas através da escuta das pessoas e do
registro de suas lembranças e experiências”. Sua característica essencial é a
interdisciplinaridade, principalmente entre a sociologia, antropologia, história e
literatura. “Eu acredito que essa combinação interdisciplinar de métodos representa o
maior potencial para a pesquisa do futuro”. (THOMPSON, 2002, p. 9-11). Uma segunda
característica fundamental está no fato de que a pesquisa com histórias de vida abarca
tanto as experiências individuais quanto coletivas podendo ser feita com métodos e
apresentar resultados de forma qualitativa e quantitativa (THOMPSON, 2002, p. 13-14).
Ainda segundo Thompson, a experiência da velhice e as vozes das mulheres são
temas que, dentre outros, raramente são perceptíveis nas fontes tradicionais, e, apesar
de marginalizadas, exibem um potencial sócio-histórico de grande importância. A história
oral dá acessibilidade “às experiências daqueles que vivem às margens do poder, e cujas
vozes estão ocultas e porque suas vidas são muito menos prováveis de serem
documentadas nos arquivos” (THOMPSON, 2002, p. 16).
Em Furquim, constatou-se que desde o século XVIII, as mulheres têm um papel
social fundamental. Contudo, nada tem sido feito para mostrar que estas mulheres são
protagonistas reais de sua história. Nesta pesquisa foram feitas oito entrevistas até o
momento, mas neste texto priorizaram-se os depoimentos de três entrevistadas que
representam três gerações de mulheres quilombolas. Uma das entrevistas ocorreu em
torno do fogão à lenha da casa da matriarca, Dona G.V.P., de 93 anos de idade, junto à
sua nora, Dona V. e sua neta, L.K.A.P. Vozes ocultas, como afirmou Thompson (2002, p.
17), que por meio da história oral são agora trazidas à superfície da história.
A História Oral foi fecundada no Brasil pela necessidade de se registrar a memória
daqueles que tinham sido atores da história contemporânea em meados do século XX.
Mas só nasceria como método e com rigor científico na década de setenta, numa
empreitada do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do
Brasil (CPDOC), da Fundação Getúlio Vargas. Como afirmou Aspázia Camargo na
apresentação da primeira edição do “Manual de História Oral” de Verena Alberti (2004a),
o CPDOC floresceu como a:
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combinação entre as técnicas recém-difundidas da História Oral (constituída
por um conjunto sistemático, diversificado e articulado de depoimentos
gravados em torno de um tema) e o velhotodo de história de vida, que a
nosso ver, garantiria à história oral o rigor, a fidedignidade e a riqueza que a
técnica por si mesma não possuía: nada mais consistente do que uma longa vida
que se decifra, com a chancela de um gravador (ALBERTI, 2004, p. 12).
Desta forma, a “História Oral é legítima como fonte porque não induz a mais erros
do que outras fontes documentais e históricas”, como afirmou Camargo (apud ALBERTI,
2004, p. 13). Utilizou-se, portanto, de entrevistas pré-estruturadas sob a metodologia da
História Oral para caracterizar historicamente as identidades quilombolas da
Comunidade de Santa Efigênia e suas adjacências. Isto não significa que as fontes
documentais foram deixadas de lado, mas que estas serviram paralelamente às
entrevistas para se chegar ao produto final das análises. Importante ainda de se ressaltar
sobre a História Oral é a sua capacidade de gerar documentos e fontes históricas, que
podem se perpetuar com a finalidade de retornar para seus próprios autores como
produto de suas memórias e identidades históricas.
Têm-se, portanto, dois objetivos e usos da história oral nesta pesquisa. O primeiro
é enquanto metodologia, por meio da qual suscitam informações e análises históricas e
conceituais. E o segundo é o uso da metodologia para a criação de fontes orais que
possam servir para estudos variados, principalmente no sentido de auxiliarem os
profissionais que atuam na educação quilombola do distrito a elaborar suas estratégias
didático-pedagógicas. Este artigo se pauta na História Oral enquanto metodologia,
delegando, para uma segunda fase deste projeto, a organização das entrevistas enquanto
fontes documentais em um fundo organizado.
Este material e todo o processo de pesquisa realizado junto à comunidade podem
servir para que ela própria se reveja ou realize uma releitura de si mesma, de seu papel
social e de sua importância sociocultural para o distrito e para a o município de Mariana,
sob variados aspectos. Coloca-se, deste modo, a investigação histórica, suas
metodologias e resultados, como a base concreta por meio da qual vão se estruturar as
estratégias didático-pedagógicas para uma educação quilombola de qualidade no distrito
de Furquim.
Território, Alimento e Religião: Identidades Quilombolas
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Antes de instalar qualquer tipo de proposta educacional, é necessário conhecer a
terra onde se educa. O educador ou o sistema educacional que não leva em conta o
contexto em que a escola se insere, pode incorrer em erros graves. Daí a importância da
investigação histórica que está sendo executada neste projeto.
O distrito de Furquim surgiu com a mineração de ouro na região de Mariana ainda
no início do século XVIII. Sua fundação data de 16 de Fevereiro de 1718 e seu nome vem
do fundador do arraial, Antonio Furquim da Luz, que angariou sesmaria na região em 1711
(VASCONCELOS, 1904).
No século XIX, sua economia seguiu o fluxo mineiro na produção agrícola para
abastecimento interno e com tropas especializadas no transporte e comércio
interprovincial, principalmente de milho, arroz e feijão (ANDRADE, 1997, p. 114-117). A
região de Furquim era considerada propícia ao plantio e criação de animais,
caracterizada como local de terras planas, clima quente e úmido, terrenos acidentados e
cursos de água que beneficiavam a instalação de moinhos e engenhos hidráulicos, com
“largos trechos de terras transformadas em campos artificiais, cuja utilização como
pastos para o gado era perfeitamente possível” (ANDRADE, 1994, p. 40; apud TEIXEIRA,
2001, p. 41). Com população livre e escravizada, negra, mestiça e branca, suas fazendas
produtivas variaram de tamanho no século XIX, com grande quantidade de residências
lideradas por mulheres (ÂNGELO, 2001, p. 26-28).
Estas informações indicam, dentre outros, que a história do distrito de Furquim,
desde o século XVIII, esteve intimamente ligada à agricultura e ao comércio, com grande
número de escravizados, africanos e seus descendentes e à participação feminina na
produção econômica, fosse para o comércio ou para usufruto doméstico. Desta forma, a
história da região está vinculada a uma relação sociocultural com a terra e com aspectos
culturais afro-brasileiros.
Minas Gerais entre os séculos XVII e XIX, devido a variados fatores, como a
grande presença de escravizados africanos e seus descendentes atuando como
trabalhadores na mineração e, posteriormente, na agricultura e criação de animais,
constituiu-se de inúmeros quilombos em todo seu território. Não há como negar a
presença expressiva destes quilombos em Minas Gerais, cada um com suas
especificidades, estruturas e tamanhos próprios (SOUZA; HOT, 2015, p. 59).
Ainda não se sabe com exatidão qual a origem dos quilombolas de Furquim, se
foram escravos fugidos, se foram ex-escravizados libertados após a lei áurea que
migraram para a região, ou se sua origem descende ainda de outras explicações. A
pesquisa neste sentido ainda continua. Outros quilombolas serão ainda entrevistados.
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História Oral, Territorialidades e Identidades Quilombolas: Furquim, Mariana, Minas Gerais
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Este texto exibe algumas conclusões parciais, mas importantes, principalmente quanto
aos questionamentos que são levantados sobre como foram construídas as identidades
destes quilombolas.
Destaca-se também a existência de lacuna na história da região, que ocupa
praticamente todo o século XX, e que pode ser preenchida por meio da história oral.
Sobre o período após a abolição da escravatura, questiona-se: o que ocorreu com as
famílias de descendentes de africanos que estavam instalados na região? Como ocorreu
o seu acesso e sua relação social e cultural com a terra e seu território? Como estes
reconstruíram suas vidas e como estas histórias de vida podem caracterizar as
identidades quilombolas da região? Como suas casas e a produção de renda ocorrida em
suas propriedades são representadas por seus depoimentos, registrados nas entrevistas?
Segundo Verena Alberti (2004b), a História Oral, por meio das entrevistas, pode
resgatar os fatos históricos. As narrativas não são simples “sínteses” do passado, mas
“quando um entrevistado nos deixa entrever determinadas representações
características de sua geração, de sua formação, de sua comunidade, etc., elas devem ser
tomadas como fatos, e não como “construções” desprovidas de relação com a realidade”
(ALBERTI, 2004b, p. 9-10). A destarte que seu objetivo não é simplesmente preencher
lacunas, mas ir além, privilegiando a “recuperação do vivido conforme concebido por
quem viveu” (ALBERTI, 2004b, p. 16)
O conceito sócio-histórico de terra está vinculado às formas de sustento e de
economia, e à situação de território com características próprias: históricas, culturais e
políticas. Conforme afirmou Silva (2001):
No nível das representações, a terra possui duas materialidades:sica e
simbólica, cuja simbiose produz o lugar. Lugar de viver, lugar de morar, lugar de
criar os filhos, o lugar da gente. O lugar, enquanto materialidade simbólica, é
prenhe de significados que dizem respeito não somente ao momento presente,
mas ao passado e também ao futuro. Há um elo entre estes tempos,
reconstruídos pela memória individual e coletiva. A representação do lugar
traduz os aspectos identitários destas pessoas, não apenas daquelas que partem
como também daquelas que ficam (SILVA, 2001, p. 109).
“A territorialidade tem ação direta para a manutenção da identidade quilombola”,
(CAMPOS; GALINARI, 2017, p. 208). Portanto, por meio da história oral, buscou-se
investigar como são expressas as representações culturais dos quilombolas de Furquim,
incluindo a sua relação com a terra/território. A terra, como grifaram os autores, pode
representar “o sustento, o resgate da memória de seus ancestrais, as tradições, os
valores e a luta para garantia da sua territorialidade, assim como o direito de ser
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diferente” (CAMPOS; GALLINARI, 2017, p. 208). Mas como isto é perceptível nos
depoimentos e histórias de vida dos moradores das áreas quilombolas de Furquim?
A avó de L.K.A.P., Dona G.V.P., viúva, 93 anos de idade, contou um pouco de sua
história em entrevista concedida para este projeto
4
. Moradora da região do Crasto “de
cima”, desde seu nascimento, contou com orgulho e saudade sobre o tempo em que seu
marido era “feitor da rede” e ela cuidava das “obrigações de cá”. Sua história de vida está
intimamente interligada com o mundo do trabalho, com uma visão orgulhosa sobre a
produção de seu próprio alimento, da ciência de construir e cuidar de suas próprias
casas, ferramentas e utensílios, sempre com muita fé e religiosidade:
Você precisa ver como era aqui meu filho, tinha criação de gado, tinha porcada,
tudo aqui, porco gordo que só ocê vendo. (...) Cuidava de tudo. Eu penso bem
como que eu dava conta da obrigação, cuidando de família hein! E dava conta de
tratar de porco, tinha debulhador, desfazia milho no debulhador, não faltava
porco gordo aí, quando matava um, outro já estava quase no ponto de matar, só
você vendo! Vaca? Tinha muita vaca aí. Nós fornecia leite lá pro asfalto.
Leiteira? Duas leiteira dessa altura, tudo cheia de leite. Mandava tudo pro
asfalto. (Dona G. V. P., entrevista, 31 ago. 2018).
Altiva, Dona G.V.P. conta sobre a opulência do tempo em que criavam vários tipos
de animais, a ponto de ter alimentação não somente para a família, mas para o comércio:
E tropa? Nós tinha tropa! E a tropa que nós tinha! Tinha tropa, tinha porco,
tinha muita galinha, muito gato, muito cachorro, tinha de tudo menino! Muita
vaca! Esse pasto aqui era todo batido, tudo limpinho! Tudo, pagava trabalhador,
limpava tudo! Só cê vendo! Criação de gado, tinha muito! Só ocê vendo! Quando
nós não fornecia leite, nós fazia queijo! (Dona G. V. P., entrevista, 31 ago. 2018).
Nos depoimentos de Dona G.V.P. percebe-se nitidamente o orgulho que tem dos
frutos de seu trabalho com a terra, seja na plantação, na colheita ou na criação de
animais. Como atestou Silva, “a terra é vista como uma espécie de espaço protetor, de
reenraizamento, de porto seguro, de paraíso perdido” (SILVA, 2001, p. 103). Interessante
também como ela caracteriza a divisão do trabalho com a terra e seus frutos entre ela e
seu falecido marido e nivela igualmente a importância e as dificuldades das funções
exercidas por ambos. Havia um espaço no cotidiano da vida dos dois que era só dela e
que era ela quem dominava e ditava as regras. Um espaço que refletia sua identidade e
4
Entrevista concedida em 31 ago. 2018.
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que tem um significado edificante, fortalecedor, digno de orgulho, relacionado ao
trabalho árduo, que exigia muita força, inteligência e outras virtudes, como ilustra o
seguinte trecho de seu depoimento:
Ah, oh V., depois tira um pedaço de queijo pra eles provarem do queijo que eu
fiz. Ainda lembro até hoje! Tem um resto de queijo aí que eu fiz, V., depois cê
tira pra eles [entrevistadores] comer! Que eu fiz! Só ocê vendo! Nós tinha muito
gado! (...) Ele empregado na rede, lá tinha o serviço dele! E eu tomava conta da
obrigação cá! Depois meus filho foi crescendo, eu tomava conta das criação e
ele trabalhando lá. Ele era feitor da rede, empregado lá! Só ocê vendo as criação
que nós tinha, muita criação! Era égua criadeira, era vaca, criação de gado, tinha
tropa, isso tudo nós tinha aqui! Era confortável aqui. (Dona G. V. P., entrevista,
31 ago. 2018).
Como também refletiu Silva (2001), “a terra, tal como a casa, é o primeiro lugar de
acolhimento do ser que vem ao mundo, é também o escudo protetor contra as
intempéries da natureza e da sociedade. Na terra, há o sentimento de pertencimento, de
identificação” (SILVA, 2001, p. 111). Nela, não somente se criava os animais, conforme
afirmou, mas também possuíam o conhecimento da ciência de preparar alimentos, desde
as plantações e o pasto para as criações, até o preparo da carne dos animais, para
consumo doméstico e para o comércio.
Ao mesmo tempo, Dona G.V.P. parece falar de algo que não existe mais, é
saudosista ao ponto de parecer que não vive mais no mundo que sua memória recria
durante sua narrativa, como se fosse uma imigrante que descreve sua terra natal como
se estivesse num lugar muito distante e sem retorno. Como afirmou Silva (2001) sobre a
memória dos migrantes,
ao descrever sobre sua própria história, transformam-se em narradores e
lembradores que sentem saudades. [...] Lembra do outro mundo, do outro
espaço, do outro tempo. [...] Manifesta o desejo, a vontade de voltar. Imagina,
chegando até mesmo a duvidar que está fora de seu mundo. Parece até que é
um indivíduo fora de seu mundo (SILVA, 2001, p. 114).
Alexandra dos Santos pesquisou sobre hábitos alimentares de quilombolas no
interior de Minas Gerais. A autora parte do pressuposto das ciências sociais de que a
comida, mais do que nutricional, tem significado social, que se relaciona diretamente
com as práticas alimentares dos quilombolas. Sendo assim, “os alimentos têm
nacionalidade, têm status, têm poder, tal qual aquele que os prepara e/ou que os ingere”,
e fazem parte da construção da identidade étnica de quilombolas. Traduzindo
representações e valores de sua cultura, mapeando signos do cotidiano, materializando
escolhas, práticas e hábitos alimentares de quilombolas. (SANTOS, 2012, p. 55-57).
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Ao focarmos nosso olhar para as representações sociais presentes nas práticas
diárias que envolvem a alimentação, entretanto, percebemos que, para além das
panelas, os quilombolas estabelecem critérios de aceitação dos alimentos e dos
utensílios da cozinha, que muito revelam sobre a forma que desejam
representar a si mesmos. Foi a partir das práticas e dos hábitos alimentares que
conseguimos analisar as múltiplas reconstruções que quilombolas de Piranga
fazem de sua memória do passado e as redes de significação que essas possuem
no presente (SANTOS, 2012, p. 64).
A alimentação dos quilombolas está diretamente relacionada com a terra e o
trabalho realizado sobre ela. As plantações e pastos ao redor da casa, de onde se extrai a
alimentação para as criações e a família, erigidos e cuidados no trabalho árduo do dia a
dia; o moinho, o paiol e as estruturas relacionadas ao trabalho da terra, que, muitas
vezes, é compartilhado com trabalhadores de outras famílias, compõem e se
transformam em território quilombola. Este território está envolto ainda em
representações do sagrado. Para Dona G. V. P., o preparo de alimentos é mais que
trabalho, é um dom divino. Quando perguntada sobre como os filhos aprenderam a fazer
doces, direcionou orgulhosa a conversa para a nora, Dona V., mãe da L.K.A.P., que estava
fazendo doce de coco e de amendoim à beira do fogão à lenha durante a entrevista:
Ah essa daí não precisou ensinar ela não, que ela faz de tudo. Graças a Deus!
Essa tem o dom! Essa já nasceu com o dom. O dom dela! Deus já deu ela o dom
dela, já nasceu com o dom! Essa faz tudo óh. (...) Boas mãos que ela tem que ela
sabe fazer. Essa já nasceu com o Dom. Deus já deu ela o dom! Glória a Deus óh!
Deus que abençoe! ... sem desfazer das outras, que as outras sabem fazer
também. (...) Tudo ela sabe fazer (Dona G. V. P., entrevista, 31 ago. 2018).
Ao analisar outras comunidades de quilombolas, Santos (2012) reflete sobre a
simbologia do milho. Segundo a autora, o acesso ao produto e seu beneficiamento no
moinho era restrito durante o período escravista e no pós-abolição. Contudo, “hoje os
quilombolas plantam o milho em suas próprias hortas, armazenam o alimento em seus
próprios paióis, cozinham nas cozinhas de casas que são suas e servem a família e as
visitas, longe das lembranças dos cativeiros e das punições das privações da escravidão”.
Continua a autora, “o acesso ao alimento se mostrou como um evento digno de orgulho
para esses grupos, na medida em que, como disseram, representa o fato de não mais
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História Oral, Territorialidades e Identidades Quilombolas: Furquim, Mariana, Minas Gerais
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necessitarem de trabalhar dia e noite para que possam comer milho” (SANTOS, 2012, p.
65).
Dentro desta lógica, a relação que estabelecem com o milho é, a todo o
momento, interpelada pela presença do moinho. Da mesma forma que não
precisam trabalhar para alguém para ter sua saca de milho, não precisam
depender de ninguém para a produção de sua farinha. Se o milho simboliza a
independência no sistema [de] produção, o moinho a representa no processo
transformador. Ou seja, podemos perceber que não somente o milho, mas
outros elementos simbólicos da prática alimentar quilombola são instrumentos
que traduzem as relações, as mudanças e as reconstruções ocorridas em
relação ao passado desses grupos (SANTOS, 2012, p. 66-67).
Em Furquim, Dona G.V.P. também relembra da produção e debulha do milho em
equipamento próprio: “tinha debulhador, desfazia milho no debulhador”. Nos arredores
de sua casa ainda existe o moinho, mas necessita de manutenção. Alguns fatores
culturais estão agregados ao plantio e à colheita não somente do milho, mas também do
feijão. Contou que quando iam começar a “plantar a roça”, organizava-se um tipo de
trabalho coletivo, “nós trabalhava, outros trabalhava pra nós”.
Nós tinha um paiol ali na frente, mas o paiol rapaz, lotava de milho, só ocê
vendo. Tropa tinha pra puxar. Só ocê vendo como é que era! Só ocê vendo o
paiol como é que lotava de milho, nós comia era muito milho. Feijão? Três,
quatro saco de feijão! (...) Mas colhia muito feijão! Depois ia bater! Aí precisava
chamar trabalhador pra soprar! Chamava as dona pra soprar feijão, mas era
muito feijão! Era quatro, cinco saco de feijão, colhia! Também nós não comprava
nada não, quase nada nas venda não! Uai, plantava, colhia os mantimento né.
Não precisava comprar! Só ocê vendo, éh! (Dona G. V. P., entrevista, 31 ago.
2018).
Esta relação histórico-cultural com criações, plantações e as respectivas
ferramentas usadas em sua produção podem ser estendidas para outros tipos de
alimentos, além do milho e do feio. É interessante como a entrevistada (Dona G. V. P.,
entrevista, 31 ago. 2018)
conta da produção do leite, registrada anteriormente, o orgulho
ao descrever o tamanho das leiteiras para armazenamento do leite que ia ser vendido:
“Duas leiteira dessa altura, tudo cheia de leite. Mandava tudo pro asfalto”. No mesmo
sentido, a grande quantidade de feijão que colhiam, necessitando de chamar “as dona pra
soprar feijão!”. Da mesma forma, a criação e alimentação do rebanho de gado bovino e
de suíno ganham significado quando se valoriza o trabalho que era feito sobre o pasto
para prepara-lo para o gado: “Esse pasto aqui era todo batido, tudo limpinho! Tudo!
Pagava trabalhador, limpava tudo! Só cê vendo! Criação de gado tinha muito!”.
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A criação e alimentação do rebanho de porcos, assim como o preparo e
armazenamento de sua carne, também constituem parte das tradições que são passadas
de pai para filho e está presente com ares altivos na memória e nas narrativas de Dona
G. V. P.:
(...) Porco, nós não comprava gordura, tinha porco direto pra matar! Ele (o
marido) que matava, os filhos mais velhos que matava, eles matava, picava tudo,
fritava tudo, tinha uns baldão assim cheio de gordura. Gordura com carne,
torresmo! Hein V., o balde tá até ali dentro ali. Um baldão, enchia de gordura
com carne, com torresmo, com tudo. (...) Até hoje eu tenho saudade ainda do
meu tempo, que eu mexia com minhas criação! Fazia queijo, dia que queria,
tirava o leite, fazia queijo pra nós comer, eh. Carne pra nós não faltava, não
comprava, porque os balde tava tudo cheio lá, os balde tava tudo cheio! (Dona
G. V. P., entrevista, 31 ago. 2018).
De fato, muitos elementos encontrados entre os quilombolas apontam para a
importância social, política, econômica e espiritual da alimentação e dos trabalhos
realizados em torno deste universo, em sua terra/território. A entrevista com Dona
G.V.P. e mais duas gerações de mulheres de sua família: Dona V., sua nora, e L.K.A.P.,
sua neta ocorreu na cozinha do fogão à lenha. Nesta cozinha, foram recebidos os
“outros” (nós entrevistadores e pesquisadores), sendo neste lugar onde as histórias as
memórias quilombolas , puderam ser reinventadas, reavaliadas, reverenciadas, e, deste
modo, consolidadas e repassadas aos mais jovens. De acordo com Santos, o fogão à
lenha é outro signo essencial para a identidade étnica quilombola:
O fogão a lenha tem uma série de implicações na lógica social dos grupos em
que realizamos a pesquisa. Uma delas é a função de demarcar a localização da
cozinha enquanto cômodo da casa. Independente de quaisquer outros objetos
presentes no cômodo, chama-se de cozinha o local onde o fogão é construído. O
fogão a gás não tem o mesmo status e pode se encontrar na área ou em algum
cômodo, junto à geladeira. O fogão a lenha é a centralidade da cozinha, que
pode ser também o espaço de lavar roupas, guardar mantimentos ou de prosear
(SANTOS, 2012, p. 67).
O fogão à lenha da casa de Dona G.V.P. foi construído por seu marido (e outros
trabalhadores) na época de seu casamento, por volta das décadas de 1950-60, conforme
seu próprio depoimento e de sua neta. Também é neste ambiente que os doces são
feitos. Foi em torno das chamas do fogão à lenha, usando as brasas do mesmo, que Dona
G.V.P. realiza seu ritual de “benzeção”. De pé, ao lado das chamas do fogão à lenha, com
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um copo de água em uma mão e um garfo na outra, pediu que sua nora ficasse do lado
oposto, com o intuito de protegê-la de algo que proveria daquela situação: “Passe pra lá.
Passe pro lado de lá pra você não receber!”, ordenou Dona G.V.P. Fez o gesto do rito
católico do “Nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”, e passou a retirar com um garfo,
alguns pedaços de brasa do fogão. Para cada benzeção, fazia o “nome do pai” segurando
o pedaço de brasa com o garfo, e os lançava ao copo com água, recitando sua oração:
“Te benzo (nome de quem vai ser "benzido") em nome das três pessoas da Santíssima
Trindade, Pai, filho e Espírito Santo”. Repetia os versos para as cinco ou seis brasas que
retirava para cada pessoa que era "benzida". Trocava a água do copo e descartava os
pedaços de carvão no ralo do quintal, por onde passava a água corrente que vinha de um
tanque. Tem-se, portanto, alimentação, tradição, memória e religo se entrelaçando em
torno do fogão à lenha, de forma peculiar na cultura desta família de quilombolas. Não se
deve esquecer que a lenha que dá sentido à existência do fogão e de tudo que se
relaciona com este instrumento vem da terra ou das árvores que se nutrem desta
(G.V.P. entrevista, 31 ago. 2018).
Além da ciência e dos conhecimentos no preparo de alimentos, ainda havia a
ciência médica no tratamento de algumas doenças. Afinal, o acesso a hospitais, postos de
saúde ou farmácias era raro e difícil no passado narrado por Dona G.V.P.:
O que? Manjerona minha filha. Dava é Manjerona com mel, isso é que era o
remédio que a gente dava pra eles, manjerona com mel. Fazia um chá de
manjerona, e pegava o mel, adoçava com mel. É isso é que fazia! Era o remédio,
porque não podia nem levar pro médico. Quedê? Era difícil médico. Tinha que
aplicar remédio em casa. Uma gripe que não queria acabar! (...) Quando matava
galinha, que nós tinha muita galinha, galinha gorda aí, tirava aquela gordura,
punha num pote daquele ali, tampava o óleo. Colocava rapaz, o óleo no chá,
dava pra eles, minha filha oh, a gripe sumia, oh. É isso que eu dava a ês. Não
precisou dar outro remédio não. Meus filho tudo foi criado assim. Só ocê vendo
como é que ês é forte! Num é forte V.? Meus filho como é que ês é forte! Graças
a Deus, quase nem adoece! Tá aquês baita! Forte! João era mais mdo, V., agora
ta ficando forte também! Graças a Deus! Ficava doente não! (...) Num vê ês
reclamando de doença! Òh o outro que tocando capoeira do outro lado ali óh!
É Zezé! Reclama de doença não! Graças a Deus! (...) Ih minha fia, era difícil pra
sair. Era difícil pra sair. Carro difícil. Agora não, agora tem estrada aí (...), corre
carro aí óh, mas mesmo assim, corre carro, mas não carro pra pegar passageiro.
Isso aí é difícil, você tem que arrumar um carro, pagar tudo, pra levar pra
Mariana. Antigamente era pior minha filha. Antigamente era pior ainda, né V.,
não tinha estrada, era pior, antigamente era pior! (Dona G. V. P., entrevista, 31
ago. 2018).
A cura ou a prevenção para as doenças vinha da terra, das ervas, da horta, das
plantações, da alimentação. O território quilombola se trata de uma área onde se
encontra tudo o que é necessário à sobrevivência e reprodução de uma família: abrigo,
alimento, remédio para o corpo e para a alma, para a espiritualidade, dentre outros. No
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mesmo sentido, o nascimento dos filhos também era uma situação singular, que Dona
G.V.P. conta gloriosa e bem humorada: “Contando os que morreu é treze. É pouco?”,
sorriu Dona G.V.P., contando sobre seus treze partos:
Óh! Você sabe quantos bebês que eu ganhei no hospital? Meu caçulo! Tá com 46
anos. Fez 46 agora em agosto! Ele é do dia 2 de agosto. (...) Esse que eu ganhei
no hospital, os outros todos em casa. Teve uns que eu mesma fiz o parto!
(Sozinha? foi perguntada:) - Sozinha não, com Deus! Sozinha não, com Deus
ah lá! Ah lá! Óh ele lá! (aponta para o céu) Minha caçula, eu e Deus! Né V.? (...)
Aquela, eu fiz o parto! Com Deus, Áh Deus, como é que Deus é bom pra mim!
Falar com você, eu casei, oi! Quando eu casei, num instantinho, construí a
minha vida! Graças a Deus! (Dona G. V. P., entrevista, 31 ago. 2018).
Conclusões e considerações finais
As entrevistas realizadas neste projeto foram programadas de acordo com o
contexto dos entrevistados, de forma a deixá-los num ambiente que pudesse instigar a
sua memória e as suas narrativas. No caso de Dona G.V.P., por exemplo, foi feita na sua
“cozinha de lenha”, em sua própria casa, ou seja, no território onde se sente mais
protegida, na presença de seus familiares, respeitando aspectos como sua idade, gênero,
posição social e familiar, maneiras de se expressar etc. A pesquisa com História Oral
ainda segue e outros textos ainda serão escritos sobre os quilombolas da Vila de Santa
Efigênia e adjacências.
Por meio destas narrativas que não se esgotam nos trechos aqui descritos ,
observa-se que conceitos, ideias e as relações histórico-sociais entre trabalho, família,
alimentação, medicina e religião estão intimamente interligados com as experiências de
vida dos quilombolas. Estas experiências se traduzem em mecanismos de construção e
manutenção dos aspectos culturais, que desenham suas identidades, mas que estão em
constante revisão. Ao mesmo tempo, fazem parte da construção sócio-histórica do
território quilombola, área na qual as relações com a natureza, ou seja, com o biológico,
com o químico e com o físico, se confundem com as relações com o sobrenatural, com o
espiritual, e o religioso. A territorialidade quilombola não está relacionada apenas com a
luta por um pedaço de terra para se viver com a família após a abolição, mas também
com aspectos culturais profundamente enraizados em suas histórias de vida.
A maioria destes aspectos não pode ser lida pela história das fontes escritas e
oficiais. Para serem desenterrados dos túmulos erigidos pela história oficial e
comparecer na historiografia contemporânea, são necessárias metodologias sensíveis às
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História Oral, Territorialidades e Identidades Quilombolas: Furquim, Mariana, Minas Gerais
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suas vicissitudes. A História Oral, por seu método de abordagem, análise e construção de
fontes históricas, é vista como um dos melhores senão, o melhor caminho para se
reconstruir a história social dos quilombolas e de sua cultura.
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