FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.6, nº1, p.312-336, jan.-jun., 2019
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milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em
conseqüências. Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas
instituições, nossas idéias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente
muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa
terra (HOLANDA, 1995, p. 31).
Obviamente que na sociedade brasileira, fundamentada na escravidão, essas
ideias europeias iriam se adaptar facilmente, principalmente as que enfatizavam a
superioridade racial. “É possível dizer, (...), que os modelos deterministas raciais foram
bastante populares, em especial no Brasil.” (SCHWARCZ, 1993, p. 62). Houve, por parte
das autoridades e na alta sociedade, a tendência de associar pobreza com imoralidade e
criminalidade. Os indivíduos que não estivessem no mundo do trabalho; eram
classificados como desocupados e criminosos; conhecidos como classes perigosas. “Os
legisladores brasileiros utilizam o termo ‘classes perigosas’ como sinônimo de ‘classes
pobres’. O fato de ser pobre torna o indivíduo automaticamente perigoso à sociedade.”
(CHALHOUB, 1998, p. 58). Segundo Chalhoub,
Por outro lado, os pobres passaram a representar perigo e contágio no sentido
literal mesmo. Os intelectuais – médicos grassavam nessa época como miasmas
na putrefação, ou como economistas em tempo de inflação: analisavam a
"realidade", faziam seus diagnósticos, prescreviam a cura, e estavam sempre
inabalavelmente convencidos de que só a sua receita poderia salvar o paciente.
E houve então o diagnóstico de que os hábitos de moradia dos pobres eram
nocivos à sociedade, e isto porque as habitações coletivas seriam focos de
irradiação de epidemias, além de, naturalmente, terrenos férteis para a
propagação de vícios de todos os tipos (CHALHOUB, 1996, p. 29).
A intelectualidade nacional cultivava um enorme desprezo pelo tipo nativo
brasileiro, sendo classificado como um produto da degeneração racial, inclinando-se
para a ignorância, a preguiça e a imoralidade. No trecho abaixo de Urupês, Monteiro
Lobato descreve seu personagem Jeca Tatu de maneira racialmente depreciativa:
Porque a verdade nua manda dizer que entre as raças de variado matiz,
formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e o
aborígene de tabuinha no beiço, uma existe a vegetar de cócoras, incapaz de
evolução, impenetrável ao progresso. Feia e sorna; nada a põe de pé. [...]. O
caboclo continua de cócoras, a modorrar... Nada o esperta. Nenhuma ferroada o
põe de pé. Social, como individualmente, em todos os atos da vida, Jeca, antes
de agir, acocora-se. [...]. Seu primeiro movimento após prender entre os lábios a
palha de milho, sacar o rolete de fumo e disparar a cusparada d'esguicho, é
sentar-se jeitosamente sobre os calcanhares. Só então destrava a língua e a
inteligência. [...]. De noite, na choça de palha, acocora-se em frente ao fogo para
“aquentá-lo”, imitado da mulher e da prole. Para comer, negociar uma barganha,
ingerir um café, tostar um cabo de foice, fazê-lo noutra posição será desastre
infalível. Há de ser de cócoras. Nos mercados, para onde leva a quitanda
domingueira, é de cócoras, [...]. Pobre Jeca Tatu! Como és bonito no romance e
feio na realidade! (LOBATO, 1972, p. 146-147)