FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.6, nº1, p.12-38, jan.-jun., 2019
SILVA, Debora Linhares da
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– Coitado! A gente se queixa é da sorte! Ele como meu senhor, exigia o jornal,
exigia o que era seu!
– Seu ou não seu, acabou-se! E vida nova! [...] Entretanto, a tal carta de
liberdade era obra do próprio João Romão [...]. O senhor de Bertoleza não teve
sequer conhecimento do fato; o que lhe constou sim, foi que a sua escrava lhe
havia fugido para Bahia depois da morte do amigo. [...] daí a três meses, [...]
constou a morte do velho. A escrava passara naturalmente em herança a
qualquer dos filhos do morto [...] (AZEVEDO, 1977, p. 13-14).
Quem nos contou a história ficcional da escrava Bertoleza, no livro O Cortiço
(1890), foi o escritor maranhense Aluísio Azevedo (1857-1913), alguém que viveu boa
parte de sua existência durante a escravidão no Brasil, sabendo, portanto, ser factível
aquilo que escrevia no campo da ficção
1
. Através do estilo conhecido como “romance
social”, ele conseguia remeter-nos a determinada realidade vivida na segunda metade do
século XIX na Corte Imperial brasileira
2
. Azevedo tinha como marca de suas obras as
vivências coletivas, retratadas a partir de temáticas que, até então, não apareciam com
tal perspicácia de detalhes no meio literário. Em O Mulato (1881), por exemplo, ele
“surgirá” para a Corte discorrendo assuntos como aborto, miscigenação e racismo, o que
é, diga-se de passagem, uma abordagem pouco convencional ao período em questão
3
. Já
em O Cortiço, o autor retratou (como o título sugere), o surgimento de um cortiço e os
variados tipos sociais que lá viviam (prostitutas, lavadeiras, comerciantes, policiais,
donas-de-casa, etc.), dando conta de uma perspectiva microscópica de uma sociedade
urbana em transformação.
A história de Bertoleza chamou-nos atenção por trazer diversos aspectos que
faziam parte do cotidiano de muitos escravos urbanos, fossem eles do Rio de Janeiro ou
das demais capitais provinciais do país na segunda metade do século XIX
4
. A
personagem era uma escrava de ganho que, durante muitos anos, trabalhou na cidade
como quitandeira e cozinheira e, mesmo tendo que pagar o jornal de vinte mil réis
mensais ao seu senhor, conseguiu guardar algum dinheiro para tentar comprar sua
1
Sobre as relações entre o fictício e o factível, verdade e verossimilhança, enfim, sobre a literatura
ficcional e a literatura histórica como campos fundamentados em verdades, ainda que de formas
distintas, mas não excludentes, ver, entre outros trabalhos, Ginzburg (2007).
2
Sobre o romance social no Brasil, em seu viés naturalista, ver, por exemplo, Süssekind (1984).
3
Sobre o romance O Mulato, ver ainda: Ferreira (2012). Sobre as demais obras de Azevedo, ver: Fanini
(2003).
4
Sobre a escravidão urbana já existe uma quantidade significativa de trabalhos no Brasil, que nos
permitem perceber as semelhanças de experiências comuns sob o regime da escravatura, bem como as
semelhanças com que nos narrava Aluísio de Azevedo. Destacando entre esses estudos, mas não
somente, para as cidades de Porto Alegre: Zanetti (2002); de Desterro (Florianopólis): Popinigis (2012;
2013); de Curitiba: Pena (1999); do Rio de Janeiro: Algranti (1988), Karasch (2000), Soares (2007),
Chalhoub (1990); para São Paulo: Wissenbach (1998), Machado (2004), Bertin (2010); para Cuiabá: Pereira
(2016); para Salvador: Mattoso (1978); Andrade (1988); Reis (2003); para Recife: Carvalho (1998); para
Belém: Bezerra Neto (2002; 2009); Palha (2011); Laurindo Junior (2012; 2013); para Manaus: Sampaio
(2014); Costa (2016).