FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.6, nº1, p.472-477, jan.-jun., 2019
Sobre prazeres, percepções e apropriações: um convite à leitura de 1913, de Florian Illies
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Essa percepção de que a grande guerra mundial não estava inserida no campo das
probabilidades, em 1913, emerge no olhar microscópico lançado por Illies sobre o período.
Um olhar que focaliza o cotidiano de determinados integrantes – ou daqueles que viriam
sê-los, em breve – das elites culturais, políticas, intelectuais, acadêmicas e científicas do
continente europeu, em especial, das “capitais do modernismo” – Viena, Paris, Berlim e
Munique. Illies pouco ou nada nos diz sobre os pobres e os camponeses europeus, nem
sobre o cotidiano nos trópicos ou nos continentes asiático e africano. Um historiador,
por outro lado, que empregasse um olhar instrumentalizado pelo telescópio
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, sobre o
mesmo período, talvez pudesse afirmar, pautado em elementos – que o próprio Illies
menciona – como o aumento dos gastos militares, o incremento no contingente do
exército austro-húngaro ou o aumento das tensões políticas nos Balcãs, que já estaria
sendo tramado um cenário de guerra. E, assim, estaríamos diante de um bom exemplo
das variações interpretativas proporcionadas pelos chamados jogos de escalas (REVEL,
1998).
Porém, Florian Illies não é esse historiador, não é essa sua intenção, nem, muito
menos, é esse o seu olhar. Ele prefere nos deliciar com as intimidades da vida dos outros.
Prefere nos contar a ida de Hitler para a Alemanha, em maio, fugindo do recrutamento
do exército austríaco; a intensa paixão do feioso Oskar Kokoschka com a belíssima Alma
Mahler, que lhe promete casamento se ele pintar uma “grande obra-prima” (ILLIES, 2016,
p. 138); a apreensão de Freud para o encontro com seu ex-colaborador Jung, no IV
Congresso da Associação Psicanalítica; e as indecisões de Kafka, suas “gagueiras por
escrito” (ILLIES, 2016, p. 191), nas cartas trocadas com sua amada Felice Bauer.
Aliás, Kafka é um dos personagens mais proeminentes da narrativa de Illies e
merece aqui um comentário mais detido. Quando finalmente consegue se decidir, um dos
maiores escritores do século XX, pede Felice Bauer em casamento de uma forma no
mínimo sui generis. Escreve Kafka:
[...] pondere Felice, diante desta incerteza é difícil pronunciar as palavras e
também deve ser estranho ouvi-las. Ainda é cedo demais para dizer. Mas depois
será tarde demais, não haverá mais tempo para discutir essas coisas, como você
menciona na última carta. Mas não há mais tempo para hesitar demais, pelo
menos é o que sinto, e por isso pergunto: dadas as condições acima, difíceis de
eliminar, não quer pensar em se tornar a minha esposa? Você quer isso? [...]
Considere, Felice, as mudanças que se sucedem conosco em um casamento, o
que cada um perderia, o que cada um ganharia. Eu perderia a minha solidão,
assustadora na maioria das vezes e ganharia você, a quem amo acima de todas
as pessoas. Você, porém, perderia a vida que tem agora, com a qual tem estado
quase inteiramente satisfeita. Perderia Berlim, o escritório de que tanto gosta,
as amigas, os pequenos prazeres, a perspectiva de se casar com um homem
saudável, alegre e bom, de ganhar filhos bonitos e com saúde, algo que você,
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Quando me refiro aos olhares telescópicos e microscópicos faço alusão ao comentário de José Gonçalves
Gondra sobre o trabalho de Jacques Revel. Sobre esse tema, consultar: GONDRA, 2012; REVEL, 1998.